Parceria entre a Letramento Editorial e o site Justificando, O que é o encarceramento em massa?” de Juliana Borges, pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, será lançado na próxima quinta-feira, às 19h, na capital paulista (Taperá Taperá – Av. São Luiz, 187, 2º andar, loja 29 – Galeria Metrópole).

De forma didática, a obra trabalha questões como seletividade racial, genocídios e política de encarceramento da população negra, com foco nas mulheres em situação de prisão. “A maioria (68%) da população em situação de prisão é negra. Já a população que decide quem é usuário ou traficante, quem vai preso ou não, é composta por 98% de brancos”, destaca a autora.

Juliana traz, também, um panorama histórico sobre a formação da justiça criminal no Brasil, mostrando como os agentes do Poder Judiciário, desde os tempos coloniais, utilizam o poder para garantir os privilégios das elites, predominantemente brancas, fortemente racistas e barbaramente violentas.

Compondo o selo Feminismos Plurais, coordenado pela filósofa Djamila Ribeiro, o estudo se ancora em pesquisas recentes e uma bibliografia valiosa, grande parte produzida por intelectuais negras brasileiras e do exterior. “O livro é uma introdução, com várias referências, sobre o papel estruturante do racismo no Judiciário”, explica a autora. Confiram:

Como se dá a criação do nosso sistema de Justiça criminal?

Juliana Borges – Durante o Brasil colônia, nós seguíamos as Ordenações Filipinas, um conjunto de livros com regras aplicadas aqui por Portugal. Essas leis, obviamente, atendiam aos interesses corporativos e patrimoniais, garantindo os privilégios daqueles que realizavam as transações comerciais. O Brasil não surge como uma Nação, mas para atender fins privados. O capitalismo que aqui se instala tem o corpo negro, o corpo humano objetificado, como sua principal mercadoria. O regramento é, portanto, totalmente diferenciado para brancos e negros, considerados propriedade dos brancos e desprovidos de qualquer direito.

Eu traço um panorama histórico da justiça criminal, utilizando os estudos da Ana Flauzina, intelectual e advogada, em especial “Corpo negro caído no chão: projeto genocida do Estado brasileiro” (acesse aqui); e também os estudos da Michelle Alexander, referência na discussão sobre a reforma da justiça criminal nos Estados Unidos. Em “A Nova Segregação”, traduzida agora pela Boitempo, ela denuncia o encarceramento em massa nos Estados Unidos como a reedição da lei Jim Crow (conjunto de leis segregacionistas) e mostra que mesmo suspenso este ordenamento, na prática, a lei e o sistema de castas raciais imperam, mantendo os negros na base da pirâmide social e brancos no topo. A Ana Flauzina trabalha essas questões a partir do cenário brasileiro.

É a mesma coisa aqui?

Juliana Borges – Sim, basta vermos a primeira lei criminal do Brasil. Ela surge em 1830, quando temos uma forte onda de revoltas propalada por escravizados e abolicionistas. A lei criminaliza esses movimentos, mostrando a aplicabilidade da teoria da Michelle Alexander. O nosso sistema de justiça criminal não é apenas uma instituição “perpassada pelo racismo”, ela se funda e se estrutura no racismo mantendo um sistema de desigualdades que tem como base as hierarquias raciais. Até hoje, as penalizações são diferenciadas entre brancos e negros, mesmo que isto não esteja mais explícito na lei.

Você encontra documentos em que o proprietário de um escravizado preso dizia aos agentes policiais, “pode soltar, eu aplico a pena, ele é minha propriedade”; pedido de perdão de pena de morte, em que só foram perdoadas as penas de homens brancos. São vários casos que mostram a construção de um sistema de seletividade racial, como bem define a pesquisadora Winnie Bueno, e que persiste até hoje. A definição de quem será ou não encarcerado passa pela raça.

O que acontece após a abolição?

Juliana Borges – Nós discutimos muito o 13 de Maio e muito pouco o 14 de maio. O Brasil República foi feroz contra negros e ex-escravizados. Por conta da abolição, muitos se mantiveram monarquistas. Nas leis, a diferenciação de penas se mantém e surgem práticas explicitamente segregacionistas, como a necessidade de um passe para que ex-escravizados pudessem circular em determinados ambientes.

Durante esse período, temos também a criminalização da capoeira, a lei da vadiagem, a perseguição aos cultos de matriz africana. Estamos falando de uma massa de ex-escravizados que, sem qualquer indenização, precisou encontrar meios para sobreviver. As mulheres foram para o serviço doméstico, pequeno comércio, prostituição; para os homens sobraram poucos empregos, então, qualquer um podia ser preso pela lei da vadiagem.

A repressão continuou e você chega nas ditaduras de Vargas e a militar com a polícia invadindo cultos e terreiros, porque eles serviam como espaço de organização social. Houve um forte processo de demonização da religião de matriz africana. Daí a questão proposta pela Angela Davis: “quem define o que é o crime e o que é criminoso?” A capoeira era crime e quando foi assimilada, passou a ser cultura; os terreiros não são mais ordenações, então podem ser assimilados. Ao longo da história novas maneiras de criminalizar vão surgindo.

Eu utilizo o conceito de mito fundador da Marilena Chauí para apontar que o racismo é um dos mitos fundadores da sociedade brasileira. Ele está presente em todos os âmbitos e ao longo de todos os períodos históricos.

E ainda dizem que o Brasil é pacífico…

Juliana Borges –  De saída, temos a imposição de uma religião que prega a penitência e o castigo como instrumentos de salvação da alma, legitimando a escravidão das pessoas. Depois vem a ciência e as teorias eugenistas utilizadas pelas forças policiais para garantir a lei de segregação. O policial vai adquirindo mais poder, a cada mudança na lei. Desaparecem os juízes de mediação, cabe a ele saber quem vai preso por vadiagem ou não, agora quem é traficante ou usuário.

As forças policiais se organizam a partir dos princípios do sistema escravagista e passam pela aculturação, segregação até chegar na discriminação que cria os mecanismos que farão as diferenças raciais se tornarem desigualdades efetivas. Estas, inclusive, acirram-se no começo do século XX com a política de branqueamento, com a imigração.

A psicanalista Isildinha Nogueira, em sua tese de doutorado, Significações do Corpo Negro, destaca que o ex-escravizado não “vendia sua força de trabalho” porque até 13 de maio, ele era a própria força de trabalho. Em 14 de maio, ele não se concebia como um trabalhador sujeito de direitos. Realidade muito diferente dos imigrantes que aqui desembarcaram. Eles se compreendiam como trabalhadores, organizaram sindicatos, fizeram greves.

O ex-escravizado teve muita dificuldade de se conceber como “classe trabalhadora”. O Estado o desqualificava enquanto trabalhador; diferentemente dos imigrantes que passaram depois a ter comércio, o ex-escravo permaneceu no serviço braçal. Ele foi o ajudante do sapateiro, não o sapateiro; quem limpava a padaria, não o padeiro. Isso é fundamental para compreendermos o racismo dentro da classe trabalhadora.

O racismo é causa da desigualdade?

Juliana Borges –  Você não é negra porque você é pobre, mas certamente é pobre porque é negra. A pobreza não enegrece as pessoas, basta ver a diferença que existe entre negros e brancos dentro de um mesmo contexto de pobreza, por exemplo, o sistema prisional feminino. Em sua maioria, as mulheres em situação de prisão são pobres e possuem baixa escolaridade; mesmo assim, as mulheres negras são mais vulneráveis. Elas têm menor escolaridade, ficam com os piores trabalhos dentro da prisão e têm mais dificuldade de acesso a políticas de remissão de pena (trabalhos, leituras etc).

A punição das mulheres sempre foi diferente da punição dos homens, ela se dava no âmbito privado. O que era passível de punição para uma mulher? Ela não querer lavar a louça, por exemplo. Em “Are prisons obsolete?”, a Angela Davis mostra a ligação dessa punição no ambiente privado com a violência doméstica hoje. É um resquício desse tempo em que a mulher, legalmente um ser de segunda classe, era punida por qualquer coisa que o marido considerasse não cumprimento de tarefas. Ele tinha apoio legal do Estado para aplicar a pena.

Não havia prisões femininas?

Juliana Borges – Os primeiros presídios femininos surgem a partir dos anos 1950, mas como política sistêmica isso só começa a partir dos anos 1980. Antes, as mulheres ficavam nas mãos da Igreja, iam para conventos ou manicômios porque “mulher que não cumpre seu dever social só pode ser louca”. Agora, quando você vai para o convento, as mulheres brancas aprendem a ser boas esposas; as mulheres negras, boas empregadas.

Com os presídios femininos, gerou-se uma nova forma de violência. Um exemplo é a metragem de papel higiênico dada as mulheres. É a mesma metragem fornecida aos homens, sendo que nós vamos muito mais ao banheiro. As condições são terríveis, não há absorvente! São apenas quatro absorventes por ciclo. Nós usamos muito mais do que isso.

E o que dizer das mulheres grávidas? Somente agora, na semana passada, o STF definiu que mulheres com filhos até 12 anos e grávidas que são presas provisórias podem responder em prisão domiciliar. Até então as crianças ficavam presas com suas mães, em um ambiente de extrema violência.

 

 

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Quantas mulheres se encontram nesta situação?

Juliana Borges – Nós temos 42 mil mulheres presas no Brasil. Por conta da Lei Anti-Drogas, entre 2006 até agora, o encarceramento de mulheres subiu 570%. A Lei Antidrogas descriminaliza o usuário mas quem define quem é criminoso ou usuário é o agente policial. Qual o critério para essa diferenciação? É racial. Não há regulamentação que defina que xis gramas é usuário ou traficante. O filho da desembargadora vai fazer tratamento, o Rafael Braga, encontrado com 0,6 gramas, vai para a prisão.

Hoje, 98% dos juízes brasileiros são brancos e 68% dos presos são negros. Esse juiz tem um filtro racial e pertence a uma determinada classe. Ele julga de acordo com essas subjetividades. O Foucault mostra que quando as ideias iluministas promoveram a reforma das leis na Europa, ao aplicar as penas, o juiz passou ter como elemento não apenas o crime, mas o histórico do criminoso.

Isso poderia ser um aspecto positivo, mas aqui reverbera de forma profundamente negativa. Em vez de pensar, esse cara está em um contexto de maior vulnerabilidade social, o juiz utiliza o histórico para reafirmar seu racismo – “veio da Febem”, “é negro” – e as tendências eugenistas presentes no sistema criminal.

Há, inclusive, um documentário excelente da Maria Augusta Ramos sobre menores em conflito com a lei chamado “Juízo”, que mostra o dia a dia de uma juíza branca. Fica evidente o julgamento moral. Em determinado momento ela é substituída por um juiz negro e aí você percebe a diferença (Assista a íntegra do documentário no youtube).

Como você avalia o sistema de Justiça criminal hoje no Brasil?

Juliana Borges – O nosso sistema de Justiça criminal reforça, reproduz e intensifica o genocídio da população negra, porque antes da morte física, você tem a morte simbólica. A pena que temos nas prisões é uma pena de tortura. A política de encarceramento alimenta as facções criminosas que surgiram na luta por melhores condições dentro dos presídios. A pessoa encarcerada passa a ter relação com o tráfico e muitas não tinham nenhuma relação.

A prisão tem impacto na vida do preso, da família que acaba ficando presa, mesmo que simbolicamente com ele, na comunidade em torno da prisão, na comunidade do preso porque os familiares passam a ter obrigações com a facção e esta vai cobrar favores. Nós temos de ter uma reforma no sistema prisional, precisamos pensar uma política de desencarceramento e poderíamos começar por estes 40% de presos provisórios que sequer foram julgados. Eles precisam esperar o julgamento presos?

A gente precisa resolver com prisão problemas que são, na verdade, de desigualdade social? O horizonte estratégico é acabar com as prisões, na linha do que diz a Angela Davis: precisamos pensar essas relações menos como punição e castigo e mais como restauração e reconciliação de laços sociais e direitos. É isso que vai resolver.

Muita gente ainda não compreendeu o que é lugar de fala, você já falou sobre isso várias vezes, mas poderia explicar mais uma vez?

Juliana Borges – Quando nós falamos em “lugar de fala”, os brancos pensam que estamos querendo retirar o direito deles de falar. Isso não é verdade. Nós estamos querendo garantir que os povos que sempre foram silenciados possam falar também e ter, assim, o seu discurso autorizado. Em “O que é lugar de fala?”, também do selo Femininos Plurais, a Djamila Ribeiro mostra que todo mundo tem o seu lugar de fala.

Você não vai posar de branco que vai salvar o negro da opressão, mas enquanto branco que se preocupa com o racismo, você vai questionar os privilégios da sua branquitude. As pessoas ficam preocupadas em saber se são racistas ou não. A resposta de qualquer pessoa negra para uma pessoa branca será “é”.

A Grada Kilomba, em “Memórias da Plantação”, aponta aos brancos que eles devem perguntam: “o que eu posso fazer para desconstruir os meus privilégios?” Os brancos precisam compreender que eles são serem particulares e não universais. Não existe um discurso universal versus discurso racial porque não existe universalidade.

O debate contra o racismo está mais forte?

Juliana Borges – De fato, esses debates começam a ter mais visibilidade e isso passa pelas políticas afirmativas e pelo acesso às universidades de um contingente maior de negros. Há muitos relatos de negros que se perceberam negros ao entrar na universidade. Ali você percebe como esse espaço é branco, os professores são brancos e todas as pessoas que limpam a faculdade são negras. A segregação é visível. Ao mesmo tempo, você quer estudar sobre si e não encontra produção intelectual. Isso está sendo questionado, daí a quantidade de referências que apresento neste livro. Sobre

Mais algum para indicar?

Juliana Borges – Vários (risos), mas dois são fundamentais sobre a questão psíquica do racismo, porque além das econômicas e culturais, o racismo tem raízes psicológicas. Um é da Neusa Santos, psicanalista, “Tornar-se Negro”, em que ela fala sobre esse processo de se descobrir negro e as raízes psicológicas do racismo. O outro é “Virou Regra”, da Claudete Alves que analisa a existência de muito mais mulheres negras chefes de família solteiras do que mulheres brancas. São dois estudos excelentes.

Tatiana Carlotti