Patrulha policial em um mercado noturno perto da Mesquita de Id Kah na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, na China, em 25 de junho de 2017, um dia antes do feriado de Eid al-Fitr.Patrulha policial em um mercado noturno perto da Mesquita de Id Kah, na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, na China, em 25 de junho de 2017, um dia antes do feriado de Eid al-Fitr. Foto: Johannes Eisele/AFP/Getty Images

 

 

FOI EM 16 de setembro de 2001, cinco dias depois dos ataques de 11 de setembro, que o então presidente dos EUA George W. Bush declarou a famigerada “guerra ao terrorismo”. Outros governos em todo o mundo seguiram o exemplo, mas poucos com a rapidez, a intensidade e o absoluto cinismo com que os autocratas de Pequim se alinharam ao governo Bush.

Os chineses, obcecados pelos protestos e revoltas de uma minoria muçulmana que fala um idioma próximo do turco, os uigures, na vasta região autônoma na fronteira centro-asiática chamada Xinjiang – e historicamente denominada pelos uigures Turquestão Oriental – viram ali uma boa oportunidade. Nas semanas e meses que se seguiram ao 11 de setembro, Pequim começou a apresentar à ONU documentos que alegavam que o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, também chamado ETIM, um grupo conhecido por poucos e cuja existência sequer era confirmada, seria um “componente de vulto da rede terrorista liderada por Osama Bin Laden” e “parte importante de suas forças terroristas”. Em setembro de 2002, tanto a ONU quanto os Estados Unidos já haviam listado a ETIM como “organização terrorista”, o que jogou os uigures aos leões geopolíticos.

 

Um. Milhão. De pessoas. Há aproximadamente 11 milhões de uigures vivendo em Xinjiang, o que significa que quase um a cada 10 foram presos.

 

Transcorrem 17 anos: na sexta-feira (10), um painel de especialistas em direitos humanos da ONU declarou que os uigures de Xinjiang estavam sendo tratados como “inimigos do estado” e anunciou ter recebido relatórios confiáveis sobre “o aprisionamento em massa e arbitrário de quase um milhão de uigures” em “centros de contraextremismo”.

Um. Milhão. De pessoas. É um número absurdamente alto. No contexto da população total uigur, é ainda mais chocante: há aproximadamente 11 milhões de uigures vivendo em Xinjiang, o que significa que quase um em cada 10 deles foram presos, segundo a ONU. Como é possível que essa não seja uma das maiores e menos divulgadas crises humanitárias do mundo atualmente?

 

Uma bandeira chinesa tremula sobre uma mesquita local que havia sido fechada pelas autoridades, enquanto uma mulher de etnia uigur vende pão em sua padaria, em 28 de junho de 2017, na cidade antiga de Kashgar, no extremo oeste da província de Xingjiang, na China.Uma bandeira chinesa tremula sobre uma mesquita local que havia sido fechada pelas autoridades, enquanto uma mulher de etnia uigur vende pão em sua padaria, em 28 de junho de 2017, na cidade antiga de Kashgar, no extremo oeste da província de Xingjiang, na China. Foto: Kevin Frayer/Getty Images

 

De forma objetiva, os chineses lançaram investidas violentas contra os uigures em diversas oportunidades depois do 11 de setembro, com destaque para a campanha “ataque duro e punição”, de 2009. Desde que as forças comunistas chinesas conquistaram e ocuparam a República do Turquestão Oriental durante sua breve existência, em 1949, e a transformaram na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, todas as tentativas dos uigur de pleitear mais liberdade ou autonomia foram reprimidas com violência por Pequim. Aparentemente, é assim que os chineses praticam “assimilação”.

Obviamente, isso não ocorrerá. Como Bequelin comentou, “o governo chinês não consegue em hipótese alguma assegurar lealdade suficiente do povo uigur”. Os chineses, diz ele, irão na verdade “criar uma geração marcada por um rancor profundo, porque estão presos fora de qualquer enquadramento legal e são tratados como súditos coloniais”. E continuou, dizendo que todo projeto colonial “produz seu próprio projeto anticolonial”.

 

Uma mulher uigur varre o lado de fora de sua casa no dia 1º de julho de 2017, na cidade antiga de Kashgar, no extremo oeste da província de Xinjiang, na China.Uma mulher uigur varre o lado de fora de sua casa no dia 1º de julho de 2017, na cidade antiga de Kashgar, no extremo oeste da província de Xinjiang, na China, Foto: Kevin Frayer/Getty Images

 

COMO ACONTECEU COM a presença dos EUA no Afeganistão e no Iraque, e com a ocupação de Israel sobre Gaza e a Margem Ocidental, a guerra ao terror que a China está empreendendo em Xinjiang pode se tornar uma profecia autorrealizável. Os chineses, porém, assim como os americanos e os israelenses, não estão nem aí para as supostas ameaças terroristas. Trata-se muito mais de política do que de segurança. Pequim está impondo seu controle a uma província rebelde que faz fronteira com oito países, incluindo o Paquistão e o Afeganistão. Outros fatores econômicos também estão em jogo: Xinjiang abriga as maiores reservas do país de carvão e gás natural.

A luta contra o terrorismo, porém, se tornou uma desculpa útil para governos autoritários de todo o mundo. Bequelin, que é diretor para a Ásia Oriental na Anistia Internacional e já foi professor visitante no Centro Chinês da Faculdade de Direito de Yale, traça uma “linha direta” entre a declaração de guerra ao terror feita por Bush em 2001 e a repressão aos uigures em 2018. “O discurso da guerra ao terror beneficiou imensamente os chineses”, diz ele. “Houve uma guinada de 180 graus no discurso do Estado chinês a respeito de suas possibilidades em Xinjiang: se antes minimizava e tentava esconder, agora denomina seus esforços e a supressão de qualquer forma de divergência de ‘contraterrorismo’. Com isso, percebe-se uma linha direta.”

 

“O discurso da guerra ao terror beneficiou imensamente os chineses.”

 

Isso não quer dizer que os grupos militantes uigures sejam apenas um mito. Os poucos que existem, porém, são pequenos, fracos, e representam muito pouca ameaça ao Estado chinês. A maior parte deles são movidos por questões locais, não por alianças internacionais. Citando Michael Clarke, um pesquisador australiano que estudou a região de Xinjiang, “não é que a China não deva estar preocupada [com as conexões terroristas internacionais], mas o cerne da questão é que o governo chinês tem exagerado nessa vinculação”.

Para Bequelin, não é o encorajamento do Estado Islâmico ou da Al Qaeda, mas a perseguição em curso em Xinjiang que irá “levar certas pessoas a abraçar formas radicais de protestos contra o Estado, inclusive a violência”, talvez até mesmo “usando a gramática da jihad para se opor ao Estado”. Basta pensar: desde o 11 de Setembro, grupos jihadistas conseguiram recrutar jovens muçulmanos revoltados de todas as partes do mundo, alegando que seus inimigos teriam declarado “guerra ao Islã”. Mas por que os uigures precisariam assistir vídeos de propaganda online quando podem simplesmente ver o que está acontecendo diante de seus olhos?

O governo chinês parece determinado a praticar abusos e humilhações contra os muçulmanos de Xinjiang. Nos últimos anos, Pequim proibiu os pais uigures de darem a seus filhos o nome de “Mohamed”; proibiu crianças de entrarem em mesquitas; e proibiu funcionários do governo de fazerem jejum durante o Ramadã. Homens muçulmanos estão proibidos de deixar crescer barbas longas “anormais”, e mulheres muçulmanas não podem usar em público um véu que lhes cubra o rosto.

Existem ainda os “campos políticos de doutrinação”, mencionados pelo painel da ONU na semana passada, onde centenas de milhares de presos são obrigados a gritar slogans do Partido Comunista e a declarar lealdade exclusiva ao ditador chinês, presidente Xi Jinping, e recebem “lições sobre os perigos do Islã”.

O adjetivo “orwelliano” não chega a fazer justiça às espantosas narrativas de abuso que chegam de Xinjiang, denominado, com razão, um “estado policial” e “apartheid à moda chinesa” pela revista The Economist. O painel da ONU disse que se tratava de um “imenso campo de internação”  – “uma espécie de ‘zona sem direitos’”.

 

Manifestantes participam de um protesto na frente do consulado chinês em Istambul, em 5 de julho de 2018, para denunciar o tratamento dado pela China aos muçulmanos de etnia uigur durante um levante popular com mortos em julho de 2009.Manifestantes participam de um protesto na frente do consulado chinês em Istambul, em 5 de julho de 2018, para denunciar o tratamento dado pela China aos muçulmanos de etnia uigur durante um levante popular com mortos em julho de 2009. Foto: Ozan Kose/AFP/Getty Images

 

E AÍ, ONDE ESTÁ a indignação internacional? Onde estão os protestos dos governos ocidentais, que alegam com tanta frequência valorizar os direitos humanos acima de tudo? O presidente Donald Trump diz ter “muito respeito pela China”, e gosta de se gabar que Xi Jinping é “um amigo meu”. Em uma visita à China no começo do ano, a primeira-ministra britânica Theresa May foi aclamada pela imprensa estatal chinesa por ser “pragmática” e ignorar os jornalistas e ativistas ocidentais que “a importunavam para que criticasse Pequim” com relação às violações de direitos humanos. Outra líder europeia, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, visitou a China onze vezes em doze anos, mas nunca comentou publicamente a questão dos uigures em nenhuma dessas viagens.

 

Onde está a indignação dos governos dos países de maioria muçulmana, que com tanta frequência alegam falar em nome dos seus irmãos e irmãs muçulmanos oprimidos em todo o mundo?

 

Onde está a indignação dos governos dos países de maioria muçulmana, que com tanta frequência alegam falar em nome dos seus irmãos e irmãs muçulmanos oprimidos em todo o mundo? Eles são veementes ao condenar o jugo de Israel sobre os palestinos e a limpeza étnica de Myanmar contra os rohingya. E um milhão de muçulmanos atrás das grades? Barbas e véus proibidos? Imames humilhados? As notícias de Xinjiang têm sido recebidas com silêncio mortal pelos 57 estados-membros da Organização para a Cooperação Islâmica (OCI). Tome-se o governo turco, que no passado se levantou em defesa dos uigures e sua língua turca, mas atualmente está interessado em se aproximar de Pequim. Ou consideremos o governo iraniano, que há pouco tempo anunciou um “novo capítulo” nas relações entre Teerã e Pequim e elogiou a China por ter permanecido “ao lado da nação iraniana durante os dias difíceis”.

“Somos um território ocupado”, disse o líder da diáspora uigur Anwar Yusuf Turani, em 2015. “Nós conhecemos a situação dos nossos irmãos e irmãs muçulmanos na Palestina e em Kashmir, mas por que o mundo muçulmano não conhece a nossa luta?”

É uma boa pergunta. Alguns podem dizer que não seria realista esperar que países ocidentais ou do Oriente Médio se oponham à China, que possui tamanha influência política e econômica sobre eles. Para Bequelin, da Anistia, porém, a influência funciona para ambos os lados. Ele aponta que a União Europeia é o maior parceiro comercial da China, então obviamente “a UE pode fazer muito mais”.

“É uma desculpa fácil dizer que os países não podem fazer nada porque a China é um investidor ou parceiro comercial importante demais”, disse Bequelin. E ainda “se o Egito, a Turquia, a OCI ou uma frente ampla nas Nações Unidas começassem a fazer perguntas demonstrando preocupações legítimas, e não parecessem hostis (…) isso poderia colocar a China na defensiva, e em algum momento levar as lideranças [de Pequim] a alterarem os cálculos do que estão fazendo em Xinjiang”.

Até agora, porém, tanto os liberais no Ocidente quanto os muçulmanos no Oriente estão em falta com os uigures de Xinjiang. Os uigures estão sendo submetidos a uma campanha violenta e perversa de limpeza étnica, com uso de detenção em massa, tortura e lavagem cerebral nas mãos do Partido Comunista Chinês em Pequim, enquanto todos nós só assistimos de fora. Como isso pode estar acontecendo em 2018? Deveríamos estar envergonhados.

Tradução: Deborah Leão

READ IN ENGLISH

The Intercept Brasil