Angela Davis e a abolição que não houve                                   Angela Davis

 

 

“A favela é a nova senzala”, cantou, em 1986, compositor popular carioca. Era falácia. A favela, mesmo em tempos de “intervenção militar constitucional”, guarda mais as sementes de um novo quilombo.

A nova senzala, segundo o pensamento de Angela Davis, é o que ela chama de “complexo industrial-prisional”, que escraviza preferencialmente cidadãos de origem africana, indígena e de outras minorias étnicas, além de imigrantes de todo o planeta. Há mais de 2,5 milhões de encarcerados nos Estados Unidos e mais de 8 milhões no mundo todo, denuncia a autora, que faz daquilo que denomina “abolicionismo prisional” a bandeira central de A Liberdade É uma Luta Constante.

“Se quisermos imaginar a possibilidade de uma sociedade sem racismo, tem de ser uma sociedade sem prisões. Sem o tipo de policiamento que vivenciamos hoje”, afirma, apontando que o aprisionamento de corpos negros é uma estratégia adaptada de segregação racial.

“Ainda vivemos sob o famoso mito de que (AbrahamLincoln libertou a população escravizada, mito que continua a ser perpetuado pela cultura popular, até mesmo pelo filme Lincoln. Ele não libertou a população escravizada”, escreve.

 

HandsOffAngelaDavise1491093379367.jpg                                Protestos a favor da filósofa (Foto: Wikimedia)

 

“Não sabemos falar sobre o genocídio infligido aos povos indígenas. Não sabemos falar sobre escravidão”, acrescenta, em referência não a qualquer país formado pelo que chama, com tristeza, de “populações excedentes, descartáveis”, mas da “pátria da liberdade”. “Não podemos entender por que (a pena de morte) continua a existir nos Estados Unidos da forma como existe sem uma análise sobre a escravidão”, sintetiza, em combate franco contra a privatização e a apropriação capitalista das questões de segurança, educação e saúde.

Se noutras obras Angela se preocupou com a discriminação e a violência preferencial da sociedade contra mulheres negras, hoje ela se abre a transversalidades que tentam explicar como cada partícula dos nossos problemas se conforma num todo.

A chamada “intersecionalidade” advogada por ela busca combater, em bloco, a “dinâmica de violência, supremacia branca, patriarcado, poder do Estado, mercados capitalistas e políticas imperiais” – não é à toa que o país em que nasceu (ao Sul) procure mantê-la apartada de seus semelhantes planeta afora. Por conta disso, grande parte da energia de A Liberdade É uma Luta Constante é dissipada no ativismo pelo abolicionismo prisional também na Palestina, “uma luta talvez tão improvável como parecia ser abolir a escravidão”.

Angela lembra que os Estados Unidos Racistas e Imperialistas da América (como nomeia o próprio país a certa altura) subsidiam 8 milhões de dólares diários a Israel para promover o aprisionamento de palestinos, e que a G45, a terceira maior corporação privada do mundo, administra prisões privatizadas, promove repressão a presos políticos em Israel e fornece segurança privada a estrelas do rock e do esporte.

Para ela, a discriminação contra muçulmanos, amplificada com a “guerra contra o terror” pós-11 de setembro de 2001, “talvez seja a forma mais virulenta de racismo atualmente”. É aberto o libelo de Angela contra o apartheid israelense (que compreende como equivalente ao apartheid sul-africano vigente oficialmente entre 1948 e 1994) e pelo movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) contra o governo israelense. Ao protestar contra “o monopólio da violência cobrado dos oprimidos”, Angela refere-se, num só golpe, às estratégias diárias pelas quais criminalizamos palestinos pelo apartheid israelense, homens-bomba pelas guerras no Oriente Médio, mulheres pelo estupro, homossexuais pelos crimes homofóbicos, Angela Davis pela luta antirracista, Marielle Franco pelo próprio assassinato.

“O espaço da cadeia ou da prisão não é apenas material e objetivo, mas também ideológico e psíquico. Internalizamos essa noção de um lugar onde colocar as pessoas más”, ensina, num fio lógico que, no limite, expõe as escaladas fascistas como o desejo de aprisionar corpos e mentes, inclusive os dos próprios fascistas.

É nessa linha que Angela decifra os EUA pós-abolição (ou o Brasil pós-conquistas sociais do início do século XXI). Para ela, os avanços civilizatórios ao final da Guerra Civil(1861-1865) foram combatidos com violência capaz de atrasar as lutas pela liberdade em um século. Quando puderam voltar, nos anos 1960, tiveram de se confinar a movimentos pelos direitos civis, para ela muito mais restritos que a luta pela liberdade humana com L maiúsculo.

Ao apregoar a interseção entre as lutas contra o racismo, a misoginia e a homofobia (ou, de modo ampliado, contra a islamofobia e o ataque genocida a diversos grupos humanos), Angela Davis define o individualismo capitalista como um inimigo a ser neutralizado. A ideia-força é de que um único indivíduo discriminado representa a discriminação de todo o coletivo humano.

Assim, são irmãs gêmeas a execução brasileira de Marielle Franco, a morte do símbolo feminino anti-apartheid Winnie Mandela (aos 81 anos, em 2 de abril) e a vitalidade resistente de Angela Davis e das muitas angelas-winnies-marielles que vêm por aí.

Fonte: Carta Capital