Donald Trump.jpg                                             Trump em entrevista coletiva em 16 de dezembro. Falta transparência às decisões

 

Enquanto hoje as estratégias e objetivos dos dirigentes russos e chineses são pragmáticas e objetivas – pode-se criticá-las ou lamentá-las, mas são razoavelmente claras – as do governo estadunidense são cada vez mais opacas e ambíguas, por expressarem intenções ainda não aceitáveis como discurso oficial, por tentarem satisfazer simultaneamente a grupos rivais ou por tentarem simplesmente eliminar certas realidades da consciência da sociedade, à maneira da novilíngua do 1984 de George Orwell.

Para quem não leu o livro, vale esclarecer que, apesar de conservadores gostarem de chamar de “novilíngua” o uso de conceitos para eles abstrusos ou intragáveis, originários das ciências e movimentos sociais e que apontam para realidades ou possibilidades não evidentes ao senso comum – tais como “alienação”, “consciência de classe”, “desconstrução”, “empoderamento”, “heteronormatividade”, “precarização” e “lugar de fala” – a novilíngua de Orwell era exatamente o contrário disso. Seu objetivo era empobrecer o discurso, removendo palavras e conceitos. Como explicava Syme, especialista do Ministério da Verdade, ao protagonista Winston Smith:

“Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimideia (o crime de pensar em desacordo com os princípios do regime) literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já na Décima Primeira Edição não estamos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. A cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menor.”

Um exemplo curioso é a proibição explícita da Casa Branca aos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC pela sigla em inglês), agência federal que provê informações para embasar decisões sobre saúde em parceria com departamentos estaduais e ONGs, de usar sete expressões: “vulnerável”, “direito (social)” (entitlement), “diversidade”, “transgênero” e “feto”.

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Cena do filme ‘1984’: inspiração para Trump?

Outras instruções mandam substituir “educação sexual” por “prevenção de riscos sexuais”, “ACA” (Affordable Care Act ou Lei de Assistência Acessível, nome oficial da reforma da saúde de Barack Obama) por “Obamacare” e “mercado” (marketplace) por “troca” (exchange) para descrever os locais onde se pode comprar seguro de saúde e “baseado em evidências” ou “baseado em ciência” por “baseado em ciência considerando os padrões e desejos da comunidade”.

Não são as primeiras a serem censuradas do discurso oficial – “mudança climática” e “aquecimento global”, por exemplo, o foram desde o início do governo Trump –, mas desta vez as razões são mais abrangentes e sutis. Expurgar termos como “(grupo) vulnerável”, “diversidade”, “transgênero” e “direito (social)” visa evidentemente varrer esses conceitos da consideração e da consciência pública ou pelo menos oficial, como se as realidades às quais se referem não merecessem ser mencionadas, ou melhor, como se oficialmente não existissem, como era o caso no século XIX.

Usar “troca” em vez de “mercado” elimina a ideia de que a compra de seguros de saúde seja uma relação desigual entre um consumidor desamparado e um poderoso grupo financeiro, pintando-a como se fosse uma barganha com o vizinho do lado.

Com o apagamento de “educação sexual”, vai-se qualquer sugestão sobre orientar positivamente a sexualidade: trata-se de ensinar a tomar precauções mecânicas ou, de preferência, a permanecer virgem e casto.

Se desaparece a palavra “feto”, irá junto (supõe-se) a ideia de que este possa não ser ainda um ser humano e o aborto seja permissível. E vincular obrigatoriamente a fundamentação em ciência a “padrões e desejos da comunidade” significa concretamente subordinar qualquer ética laica aos mandamentos cristãos tais como interpretados por fundamentalistas evangélicos, para não falar dos preconceitos racistas, homofóbicos e machistas dos chamados supremacistas brancos.

Tudo isto antes de se completar o primeiro ano do mandato de Donald Trump. Será interessante acompanhar as próximas edições e ver se restarão palavras adequadas para expressar qualquer desacordo com a política e moral republicanas.

António Luís M.C. Costa

Fonte: Carta Capital