Num dia comum, entre seis e sete pessoas, em média, morrem em homicídios na Alemanha, e a tendência está em queda. Em 2017, a polícia contou 2.379 homicídios. Apenas uma ínfima parcela deles desperta interesse fora das regiões onde ocorreram. O caso do homem de 35 anos que foi ferido mortalmente em Chemnitz, no fim de semana passado, provavelmente seria um deles. Porém, esse caso, ocorrido às margens de um festejo citadino, evoluiu para um acontecimento que desperta as atenções de toda a Alemanha.

 

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Quais os antecedentes da história?

O fim de semana deveria ficar na lembrança como uma grande festa, pois Chemnitz festeja em 2018 seus 875 anos de existência. Às margens dos festejos, vários homens se envolveram numa briga na noite de sábado. Ainda não está bem claro o que exatamente aconteceu. Certo, porém, é que alguém puxou uma faca, e três homens foram feridos. Um deles morreu mais tarde, já no hospital. Logo as redes sociais foram tomadas pela discussão sobre as origens do homicida – ou dos homicidas – e da vítima. O morto é Daniel H., de 35 anos, um alemão aparentemente de origem cubana. Como homicidas foram apontados um sírio e um iraquiano.

O que se sabe sobre o homicídio?

Os dois suspeitos, um iraquiano de 22 anos e um sírio de 23 anos, estão desde segunda-feira em prisão preventiva. Eles são acusados de homicídio em grupo. Os detalhes do crime e também o motivo ainda não estão claros. Nesta terça-feira, os promotores não quiseram fornecer detalhes, apenas descartaram que se trate de legítima defesa por não haver situação de risco. A promotoria também não confirmou que Daniel H., que nasceu em Chemnitz na época da Alemanha Oriental, quando a cidade ainda se chamava Cidade Karl Marx, tenha de fato origem cubana.

Quais fake news surgiram em seguida?

Além da morte, o debate nas redes sociais girou em torno do boato de que a briga teria origem num assédio sexual cometido contra uma mulher. Um dia depois, a polícia afirmou que não havia qualquer indicação de que isso fosse verdade.

Nas redes sociais, porém, Daniel H. era apresentado como um “jovem corajoso” que teria tentado defender uma mulher de um assédio sexual e por isso recebeu 25 facadas.

Segundo especialistas, a narrativa do jovem alemão que tenta defender uma mulher também alemã de ataques de estrangeiros é típica dos círculos de extrema direita, o que reforça a suspeita de que as fake news tenham origem nesse meio.

Outra fake news que circulou nas redes sociais afirmava que uma segunda pessoa teria sido morta na briga. Por fim, “as vítimas”, no plural, seriam alemães de origem russa, o que também é falso.

O que aconteceu em Chemnitz depois da morte de Daniel H.?

Os boatos de que um caso de assédio sexual estaria na origem da briga que resultou na morte de Daniel H. começaram a circular nas redes sociais.

No domingo, a notícia da morte e os boatos culminaram numa situação altamente explosiva quando um grupo de hooligans convocou “fãs e simpatizantes” para se encontrarem num local e numa hora determinados para, juntos, mostrarem “quem manda na cidade”. O grupo é vigiado pelas autoridades alemãs, que calculam que a cena de extrema direita em Chemnitz inclua entre 150 e 200 pessoas.

O chamado, que foi compartilhado inúmeras vezes, foi atendido por cerca de 800 pessoas, incluindo extremistas de direita violentos. Imagens de celular mostram agressões ocorridas às margens do protesto: alguns manifestantes intimidaram pessoas que eles consideravam serem estrangeiras e incitaram à violência contra elas.

Até o momento, três ocorrências foram registradas na polícia: uma alemã de 15 anos e seu acompanhante, um afegão de 17 anos, foram atacados; um sírio de 18 anos foi agredido; e um búlgaro de 30 anos foi detido e ameaçado.

A polícia não conseguiu manter o controle da situação durante toda a manifestação e reagiu com cassetetes e spray de pimenta. Vídeos mostram que manifestantes também agrediram policiais. A festa da cidade foi encerrada quatro horas antes do previsto.

 

      Grupos extremistas também convocaram um protesto na cidade, que resultou em enfrentamento com a outra manifestação (picture-alliance/dpa)

 

Na noite desta segunda-feira, milhares de pessoas se reuniram no centro de Chemnitz, em duas manifestações opostas. A convocação da associação de extrema direita Pro Chemnitz foi atendida por cerca de 6 mil pessoas, segundo a polícia. Na outra manifestação, convocada pela esquerda, compareceram 1.500 pessoas. Até as 21h, os policiais conseguiram manter os dois lados afastados. Aí voaram os primeiros sinalizadores, garrafas e outros objetos. A situação se tornou cada vez mais confusa, e a polícia, mais uma vez, ficou na defensiva. Um grupo de cerca de 35 pessoas mascaradas se refugiou atrás de uma barricada de mesas e cadeiras até ser dispersada pela polícia. Cerca de 600 policiais estiveram em ação em Chemnitz, e dois canhões de água foram usados para a dispersão.

Vários extremistas fizeram a saudação nazista, que é proibida na Alemanha. A polícia abriu inquérito para investigar dez casos. Dezoito manifestantes, dos dois lados, e dois policiais ficaram feridos. Segundo a polícia, quatro integrantes da marcha de extrema direita foram agredidos e feridos por cerca de 20 pessoas quando retornavam para casa. Dois foram internados num hospital.

Quais as reações?

Houve muitas críticas ao governo da Saxônia, que é comandado pelo partido conservador CDU, e à polícia local. O chefe da bancada do Partido Verde no Bundestag, Anton Hofreiter, acusou o governo estadual de ter negligenciado a luta contra o extremismo de direita, ecoando uma crítica frequente.

O secretário-geral da CDU na Saxônia, Alexander Dierks, rejeitou a acusação e elogiou o trabalho da polícia, que ele julgou preparada para enfrentar a situação e manter a ordem.

O governador da Saxônia, Michael Kretschmer, criticou a violência de extrema direita e disse que se trata de uma minoria que tenta agitar a opinião pública. Ele disse que o governo não vai tolerar essa situação e pediu aos cidadãos que defendam os estrangeiros que vivem no estado. “Não há lugar para o extremismo na Saxônia”, afirmou.

O sindicato dos policiais também elogiou o trabalho das forças de segurança. Já a própria polícia da Saxônia reconheceu ter subestimado o número de manifestantes.

A chanceler federal alemã, Angela Merkel, disse que cenas de agressão e incitação à violência como as vistas em Chemnitz são incompatíveis com o Estado de Direito alemão e não devem acontecer em nenhuma praça ou rua do país.

Por que na Saxônia?

O extremismo de direita e a xenofobia são fenômenos recorrentes no estado alemão da Saxônia, que tem 4 milhões de habitantes e um dos menores percentuais de imigrantes na população.

Até ser descoberto, em 2011, o grupo neonazista NSU esteve na clandestinidade na Saxônia. Em Dresden, a capital do estado, manifestações do grupo xenófobo Pegida (sigla em alemão para “Patriotas europeus contra a islamização do Ocidente”) acontecem regularmente desde 2014. Em 2015, uma turba entrou em confronto com a polícia em Heidenau para tentar evitar a construção de um abrigo para refugiados.

No início de 2016, um grupo de pessoas bloqueou a passagem de um ônibus com refugiados em Clausnitz, e a polícia os retirou do veículo com violência. Poucas semanas depois, pessoas aos gritos obstruíram, em Bautzen, os esforços para apagar as chamas num abrigo para refugiados. Em setembro, as atenções se voltaram mais uma vez para a cidade depois de 80 extremistas de direita e 20 refugiados entrarem em confronto no centro. Na pequena Freital, uma milícia civil terrorista planejou e executou ataques explosivos a centros de refugiados. Os responsáveis foram condenados à longas penas de prisão em março de 2018.

Em 2017, a Saxônia registrou 1.959 crimes de extrema direita (160 em Chemnitz), incluídos 95 crimes violentos (dos quais seis em Chemnitz).

Pesquisas mostram que o partido extremista AfD deverá ser o segundo mais votado nas eleições no estado, marcadas para 2019.

Poucas semanas atrás, a polícia da Saxônia foi criticada por impedir o trabalho de uma equipe de televisão da emissora ZDF, que acompanhava uma manifestação do partido extremista AfD e do Pegida contra Merkel. A equipe foi detida por cerca de 45 minutos. Antes, ela foi atacada verbalmente por um dos manifestantes, que se queixou à polícia. Mais tarde, a polícia investigativa do estado divulgou que o manifestante era seu funcionário.

Porém, extremismo de direita e xenofobia não são problemas exclusivos da Saxônia: há registros de ataques xenófobos em todos os estados alemães. A Fundação Antonio Amadeu e a ONG Pro Asyl contaram 1.713 crimes contra refugiados em toda a Alemanha em 2017. Destes, 240 ocorreram na Saxônia, ou 61 por milhão de habitante. O líder é Brandemburgo, com a proporção de 85 para cada milhão de habitante. Este ano, a tendência em todo o país era de queda.

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