NA SEMANA PASSADA, a Interpol organizou um evento para demonstrar seu novo sistema de reconhecimento de voz, um projeto que levou quatro anos e 10 milhões de euros para ser desenvolvido. O Speaker Identification Integrated Project (Projeto Integrado de Identificação de Falantes, em tradução livre), conhecido pela sigla SiiP, é um marco na evolução da biometria de voz aplicada à atividade policial – e uma possível ameaça à privacidade.

A tecnologia de identificação de falantes usa amostras de uma determinada voz – capturando as particularidades físicas e comportamentais da fala de uma pessoa conhecida – para criar um padrão algorítmico conhecido como “impressão de voz” ou “modelo de voz”. Com impressões de voz e amostras suficientes, o sistema de identificação de falantes da Interpol poderá comparar uma voz desconhecida com seu banco de dados global – independentemente do idioma falado – e gerar uma lista de prováveis correspondências. O banco de dados do SiiP poderá ser acessado e alimentado por 192 organizações policiais de todo o mundo.

O SiiP vem se somar aos bancos de dados de impressões digitais e faciais já existentes da Interpol, e seu grande diferencial é facilitar um processo de identificação mais rápido – no caso de um sequestrador ao telefone, por exemplo –, mesmo na ausência de outros identificadores. Os desenvolvedores da plataforma também afirmam que ela é capaz de filtrar amostras de voz por gênero, idade, idioma e sotaque. Quando as gravações são feitas em condições acústicas similares, a taxa de acerto do sistema pode chegar a níveis extremamente altos.

Com as tecnologias de reconhecimento de voz, um indivíduo pode ser identificado e marcado assim que abre a boca para falar, o que, em termos práticos, acaba com a possibilidade de anonimato. Como explica um vídeo promocional da Interpol, as instituições usuárias do SiiP podem alimentar o sistema com chamadas telefônicas grampeadas e fazer buscas de voz nas redes sociais. O banco de dados do SiiP vai incluir amostras do YouTube, do Facebook, de conversas gravadas publicamente, de ligações via VoIP e de outras situações nas quais as pessoas gravadas podem não ter consciência de que suas vozes estão sendo transformadas em impressões biométricas. “As pessoas decidem publicar conteúdos na internet por diversas razões, mas duvido que uma delas seja alimentar um banco de dados secreto que pode ser acessado pela polícia de vários países”, diz Edin Omanovic, especialista em vigilância da Privacy International.

Cynthia Wong, pesquisadora da Human Rights Watch, adverte que, se não for limitado de alguma forma, o banco de dados pode crescer descontroladamente. “Dependendo da ocasião, podemos aceitar que nossa voz seja gravada para um determinado fim e não para outro – como para alimentar um banco de dados gigantesco de reconhecimento de voz”, diz. “Às vezes nem sequer temos a oportunidade de aceitar ou não, como no caso de gravações secretas ou acidentais, mas mesmo assim nossa voz pode acabar no sistema da Interpol”, completa.

 

O banco de dados do SiiP vai incluir amostras do YouTube, do Facebook, de conversas gravadas publicamente, de ligações via VoIP e de outras situações nas quais as pessoas gravadas podem não ter consciência de que suas vozes estão sendo transformadas em impressões biométricas.

 

O SiiP tem tudo para ser a maior iniciativa de coleta de vozes já realizada até hoje no mundo. Porém, como observa um relatório recente da Interpol, muitas instituições policiais já usam sistemas de reconhecimento de voz secretamente. Mais da metade das 91 organizações pesquisadas em 69 países já possuem programas automatizados de identificação de falantes. Em 2010, o México anunciou que havia criado o primeiro sistema nacional de reconhecimento de voz automático do mundo, com a ajuda do Centro de Tecnologia da Fala, da Rússia. Em janeiro, o The Intercept revelou que a Agência de Segurança Nacional americana, a NSA, usa a identificação de falantes para monitorar terroristas, políticos, chefes do tráfico, espiões e prestadores de serviço desde pelo menos 2004. O banco de dados HART, do Departamento de Segurança Interna dos EUA, que já contém uma parte dos dados biométricos da população mundial, também vai acrescentar impressões de voz à sua coleção de DNA, cicatrizes e tatuagens. Segundo um relatório bombástico da Human Rights Watch, publicado no ano passado, a China está desenvolvendo um sistema de última geração que, integrado a redes de telefonia, é capaz de identificar suspeitos em tempo real. Para Wong, o exemplo chinês deve ser seguido por outros países.

Não está claro se existem mecanismos legais de proteção contra a criação de bancos de dados biométricos internacionais, que podem acabar retendo essas informações por tempo indeterminado. Há pouca fiscalização no mundo do compartilhamento de informações entre órgãos de inteligência. “Como a Interpol pode garantir que as amostras de voz enviadas por outras agências foram interceptadas de acordo com a lei?”, questiona Wong. “Nosso trabalho nos mostra que diversos países deixam muito a desejar quando se trata de regular as atividades de inteligência”, afirma.

Wong, Omanovic e outros também demonstram preocupação com o plano de criação de uma “lista negra” de vozes de criminosos e suspeitos. Segundo Omanovic, não se sabe quem vai monitorar tal lista, como e quem vai alimentá-la, e o que aconteceria caso alguém fosse colocado nela por engano. Já Wong gostaria de saber se haverá alguma precaução contra governos que criminalizam e perseguem jornalistas e dissidentes.

Um relatório da Interpol sobre as questões éticas da biometria reconhece que a nova iniciativa pode causar muita inquietação. “O processamento de peças de áudio que não chegam a ser ouvidas por alguém não é invasivo por si só, mas pode conduzir a atos invasivos no futuro. (…) Particularmente durante a investigação de possíveis suspeitos para posterior averiguação. Mesmo quando nenhum operador humano acessa o conteúdo coletado, a aplicação de tais técnicas tem consequências similares à invasão de privacidade: as pessoas podem recear a difusão de suas informações, o que pode incentivá-las a evitar a vida associativa ou comportamentos pouco convencionais”, afirma o documento.

A Verint, uma multinacional do ramo da biometria, está à frente do desenvolvimento do projeto, mas não respondeu às tentativas de contato da reportagem. Como já documentado pela Privacy International, a empresa já desenvolveu e vendeu “sistemas invasivos de vigilância em massa para diversos países, inclusive para governos autoritários”. Para Omanovic, isso “diz tudo sobre a falta de preocupações éticas do projeto, A União Europeia está intensificando medidas de segurança sem nenhum debate público, e os grandes beneficiados de tudo isso serão aqueles que trabalham na indústria das armas”.

Tradução: Bernardo Tonasse

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Fonte: The Intercept