Escrevo este artigo ainda sem conhecer o conteúdo da renomada sentença do tribunal constitucional espanhol que declara a nulidade do estado de alarme, decretado em março de 2020 pelo governo espanhol. Tudo quanto é conhecido sobre a dita decisão é através das filtrações da impressa. Mais um elemento que demostra a intenção do tribunal constitucional de incidir na agenda política espanhola. Seja como for, o certo é que sabemos qual é o núcleo da decisão: o governo não deveu ter declarado o estado de alarme, senão o de exceção, já que a limitação do direito fundamental de se mover livremente foi completa.

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TC, por 6 a 5: El primer decreto de estado de alarma por la pandemia es inconstitucional - Confilegal

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Certamente, a solução jurídica ótima não semelha ser a sugerida pelo TC: a configuração legal do estado de alarme estabelece que este é o instrumento idóneo em caso de crise sanitária. Em câmbio, o estado de exceção esta pensado para casos de alteração profunda da ordem pública. Certamente o estado de alarme não habilita para a suspensão completa do direito fundamental de se mover com liberdade, o que si faz o estado de exceção. Contudo, é um sem sentido que na sua pretensão de esboçar um relato que lhe permita à direita espanhola acusar à esquerda espanhola de liberticida, o tribunal constitucional recomende a adopção dum instrumento que, no fim de contas, habilita o governo a restringir com mais severidade mais direitos fundamentais.

Para além das extravagancias do que com certeza é o tribunal constitucional mais ativista e direitista da história do Estado, o certo é que as medidas do governo são muito questionáveis. Deixando aparte a ideia de que a pandemia tem sido um pretexto para criar um clima de pânico e avançar na ampliação de medidas de exceção contra a população, o certo é que as medidas adotadas pelo governo tiveram um rigor desnecessário.

Assim foi denunciado por numerosas associações em defesa dos direitos e liberdades públicas, como Esculca, que já o ano passado pujo ao dispor do público um modelo de alegações contra sanções impostas durante o estado de alarme. As restrições da mobilidade foram em essência muito amplas. A própria Lei Orgânica que regula o estado de alarme acorda que o governo poderá “limitar a circulação ou permanência de pessoas ou veículos em horas e lugares determinados, ou condiciona-las ao cumprimento de certos requisitos”. É dizer: a legislação não permite mais do que limitar a mobilidade (através do toque de recolher, da limitação de espaços e atividades, etc.), mas não habilita para derrogar o direito de se mover livremente.

Em efeito, inúmeros foram os problemas que esta postura rematou por suscitar no nosso país, já que o confinamento total é incompatível com a vida nos pequenos núcleos de povoação e mesmo desnecessário. Por exemplo, o real decreto que ordenava o confinamento não previa como exceção à proibição de sair do domicilio a necessidade de cuidar das hortas, plantações ou colmeias. Também é justo se preguntar se era preciso para afrontar a pandemia confinar os pequenos núcleos de povoação, onde as pessoas em contato são muito menos numerosas do que nas cidades e o espaço para o passeio e o lecer é muito maior. Sem dúvida, uma das grandes eivas do instrumento jurídico que regulava o confinamento é o seu desconhecimento da realidade rural, que teve que ser corrigido de forma serôdia e errada.

É difícil também compreender que o confinamento afetasse toda a povoação durante todo o dia. Em outros estados europeus, foi sempre possível praticar desporto e passear ao ar livre, mesmo com amplas limitações horárias e perimetrais. Essa desconfiança por parte dos poderes públicos traduziu-se num grande sofrimento, especialmente para as pessoas que moram soas, ou em vivendas pequenas ou mal acondicionadas. Semelha lógico relacionar este tipo de medidas com o aumento de condições mentais na população, em particular de transtornos de ansiedade, depressão e estres. A gravidade desta nova pandemia não deve ser subestimada: segundo dados do CIS, perto do 7% da povoação do estado acudira aos serviços da saúde mental durante os últimos meses, à sua vez a OMS tem alertado que o aumento de casos provocou uma grave perturbação ou paralização dos serviços de saúde mental no 93% dos estados do mundo. Com tudo, surpreende a passividade dos poderes públicos perante esta problemática: as pessoas com problemas de saúde mental não estão a ser tratadas com prioridade nos planos de vacinação, não há mesmo a dia de hoje uma política decidida para abordar o problema e nem sequer se tem reforçado a assistência psicológica em centros educativos. Bem é certo que se trata duma doença que afeta mais pessoas de classe trabalhadora e de género feminino, o que, se calhar explique a desídia.

Um tratamento aparte merecem as proibições da atividade política, especialmente na rua após o fim do confinamento e o relaxamento das medidas. Se a finais de abril de 2020 era a manifestação do dia dxs trabalhadorxs convocada pela CUT em Vigo a que ficava proibida pelo delegado do governo espanhol e o tribunal superior de justiça, mais adiante eram as concentrações da CIG as que eram objeto de denúncias por parte da polícia. Cumpre lembrar que a proposta da CUT passava por uma caravana de carros conduzidos por pessoas individuais e sem contato entre elas. Tão só dias depois a ultradireita exercia o direito de manifestação em Madrid sem separação entre pessoas e sem proibições nem sanções por parte dos agentes.

Enfim, a listagem de agravos é ampla: desde a negativa à liberação de pessoas presas em terceiro grau penitenciário, até a desnecessária rigorosidade com as crianças, passando pelo desconhecimento do princípio de tipicidade nos milhares de denúncias formuladas pela polícia naqueles dias. Não é despropositado afirmar que o governo atuou com desprezo a direitos fundamentais básicos. Contudo, a solução proposta pelo tribunal constitucional espanhol, longe de proteger esses direitos, abre portas para uma maior degradação dos mesmos no futuro.