No contexto de uma pandemia global, só a invasão russa da Ucrânia conseguiu mudar as manchetes. Vivendo numa hiper-realidade, como definido por Jean Baudrillard, pode parecer que apenas dois grandes eventos tiveram lugar nos últimos dois anos: a Covid-19 e a guerra na Ucrânia.

 

 

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A extradição de Julian Assange e a deriva autoritária do Reino Unido

No contexto de uma pandemia global, só a invasão russa da Ucrânia conseguiu mudar as manchetes. Vivendo numa hiper-realidade, como definido por Jean Baudrillard, pode parecer que apenas dois grandes eventos tiveram lugar nos últimos dois anos: a Covid-19 e a guerra na Ucrânia.

Entretanto, este paradigma tem funcionado como uma cortina de fumo para encobrir questões domésticas vitais no Reino Unido. As festas organizadas pelos Conservadores durante a parte mais sensível da pandemia são bem conhecidas, assim como a participação de Boris Johnson em algumas delas. Mas para além destas anedotas que ilustram o desprezo das elites britânicas pelas classes mais baixas, uma ideologia que cresceu na imaginação desde os tempos da aristocracia inglesa, a legislação está a ser alterada de uma forma alarmante. A realidade é que os direitos das pessoas que vivem no Reino Unido estão a ser restringidos. Tudo isto é feito de forma subtil, mas implacável, sem fazer muito barulho, mas com o potencial de consequências terríveis.

A 28 de abril, foi aprovada a lei conhecida como a ‘Nationality and Borders Bill’ um regulamento que tornará mais difícil para os refugiados virem para o Reino Unido. No mesmo dia, a Lei da Polícia, do Crime também foi aprovada no Parlamento o projeto de lei PCSC (Police, Crime, Sentencing and Courts), o que imporá limitações ao direito de protestar.

Apesar das manifestações de massas que tiveram lugar no último ano e meio no Reino Unido, os governantes não demonstraram nenhuma intenção de ouvir as exigências populares. Houve protestos importantes em 1 de maio de 2021 e 15 de janeiro de 2022 contra o Projeto de Lei do PCSC. Sob o lema ‘Kill the Bill’, esses movimentos sociais acabaram na frente do Parlamento britânico, onde em 17 de janeiro seria tomada a decisão de passar a lei para a próxima fase. E embora naquela ocasião a Câmara dos Lordes tenha atrasado a implementação da legislação e removido alguns aspetos desta, meses mais tarde foi aprovada.

Também tem havido numerosos protestos contra a ‘Nationality and Borders Bill’. A primeira teve lugar em 20 de outubro de 2021, depois de Priti Patel, ministra do Interior e deputada do Partido Conservador do Reino Unido, ter proposto este projeto de lei para reduzir o afluxo de imigrantes ao Reino Unido. Esta reforma prevê a externalização do rastreio dos candidatos para países terceiros e prevê sanções mais severas contra os migrantes que chegarem ao Reino Unido. Há um mês, o Partido Conservador chegou a um acordo com o Ruanda para enviar os requerentes de asilo para lá.

Há um mês atrás, o Partido Conservador chegou a um acordo com o Ruanda para enviar os requerentes de asilo para lá

Sobre esta lei, o historiador Richard Evans escreveu no Twitter, estabelecendo uma comparação entre o regime nazi e o atual governo britânico: “Não sou o único historiador especializado na Alemanha contemporânea a ver um paralelo entre a estratégia do governo britânico de deportar os requerentes de asilo para África e o plano falhado dos nazis de deportar judeus para Madagáscar”.

Se a liberdade de manifestação e a liberdade de movimento foram prejudicadas por estas leis aprovadas em 28 de abril, a liberdade de imprensa também está em risco. Priti Patel está encarregue de decidir sobre a extradição de Julian Assange para os Estados Unidos. O fundador do WikiLeaks enfrenta uma sentença de 175 anos por fuga de segredos de estado, incluindo documentos gráficos de soldados americanos a matar civis no Iraque, e informações sobre tortura e massacres no Afeganistão.

Não se trata apenas de impedir a sua extradição, mas de abandonar a prisão de Belmarsh, um buraco comparável ao de Guantánamo e onde o jornalista australiano se encontra detido há três anos em condições abomináveis

O facto de Priti Patel não se curvar aos interesses do grande aliado do Reino Unido é um salto de fé a que os defensores da liberdade de imprensa se agarraram desesperadamente. Mas para além de termos depositado as nossas esperanças numa figura chave do Partido Conservador, no dia 17 de maio marchámos em frente ao Ministério do Interior para exigir a libertação de Julian Assange. Não devemos esquecer que o australiano foi perseguido pelas autoridades britânicas em aliança com os serviços americanos por mais de uma década, e teve que residir como refugiado político na Embaixada do Equador durante anos. Ou seja, não se trata apenas de impedir a sua extradição, mas de abandonar a prisão de Belmarsh, um buraco comparável ao de Guantánamo e onde o jornalista australiano se encontra detido há três anos em condições abomináveis.

Julian Assange: um sequestro da democracia

Desde o surgimento do WikiLeaks em 2006, milhares de documentos relacionados com segredos de Estado de numerosos países foram publicados globalmente. Quatro anos mais tarde, Julian Assange fez uma das revelações mais chocantes que colocou a administração de Barack Obama em xeque. Foi, primeiro, a divulgação de 77 000 documentos militares e, meses depois, a publicação de 400.000 relatórios sobre a guerra no Iraque. Pessoas em todo o mundo viram imagens de tortura deliberada e assassinato de civis por soldados americanos.

O fundador da WikiLeaks, nomeado o homem do ano da revista Time em 2010, declarou que a organização internacional de notícias tinha a missão de “trazer à luz as políticas governamentais de conspiração e medo”.

Sob esta premissa, em 5 de abril de 2010 o WikiLeaks publicou um vídeo mostrando como soldados americanos mataram civis em Bagdad e dois funcionários da Reuters. Desde então, a imagem de Julian Assange começou a chegar às primeiras páginas dos jornais, e hoje ele é declarado como um dos maiores inimigos da América.

Pouco depois da divulgação dos vídeos das atrocidades no Iraque, o WikiLeaks publicou 91 000 documentos, a maioria dos quais segredos de estado militares sobre a invasão dos EUA no Afeganistão. Em outubro desse ano, o WikiLeaks publicou 400 000 documentos classificados sobre a intervenção dos EUA no Iraque. No mês seguinte, divulgaram milhares de conversas de diplomatas americanos, falando sobre líderes estrangeiros e alegadas ameaças à segurança nacional.

Em paralelo, Assange foi acusado de alegadas violações pelo tribunal judicial sueco. Ele negou as acusações, mas foi preso no Reino Unido. O fundador do WikiLeaks explicou que os esforços para extraditá-lo se deviam à pressão dos Estados Unidos para eventualmente o julgar no país americano.

Embora em abril de 2012 o Reino Unido tenha decidido que ele deveria ser extraditado para a Suécia, Assange pôde refugiar-se na embaixada do Equador em Londres. O jornalista australiano recebeu asilo na embaixada do Equador quando Rafael Correa era presidente do país latino-americano, e um defensor declarado da causa do WikiLeaks.

De acordo com Leslie Wehner, o gesto foi de fundamental importância simbólica para o então presidente do Equador: “Correa mostra-se à comunidade internacional como um defensor da liberdade de informação”, diz o investigador do Instituto de Estudos Latino-Americanos (ILAS) em Hamburgo, mas quando Lenín Moreno o substituiu no cargo após as eleições de 2017, a situação deteriorou-se. Aliado aos poderes neoliberais e querendo evitar a inimizade com os Estados Unidos, o novo presidente do Equador não fez segredo da sua antipatia para com Assange, e começaram a espalhar-se rumores da embaixada do Equador sobre um alegado comportamento inapropriado do australiano Assange. Esta narrativa deu a Lenín Moreno legitimidade para expulsar o fundador do WikiLeaks. Assim, em abril de 2019, a polícia britânica obteve autorização para entrar na embaixada e capturar Assange, que nessa altura já se encontrava no edifício há sete anos.

Enquanto Assange foi condenado à prisão, o Departamento de Justiça dos EUA exigiu que o Reino Unido extraditasse o jornalista australiano para enfrentar acusações de hacking nos computadores oficiais do governo e de violação das leis de espionagem. Por sua vez, a Suécia reabriu as investigações contra ele por abuso sexual, embora meses depois desistisse por falta de provas.

O confinamento em Belmarsh e a deterioração física e emocional

Desde abril de 2019, Assange está preso na prisão de Belmarsh em uma situação traumática. Descrita como a “Prisão de Guantanamo no Reino Unido”, a deterioração da sua saúde foi tal que um relatório médico declarou que o seu estado físico e mental era tão vulnerável que ele estava em risco de morte. Precisamente por esta razão, a juíza Vanessa Baraitser recusou a extradição de Assange a 4 de Janeiro de 2021, quando este foi julgado em Londres. Nils Melzer, das Nações Unidas, avisara que “Assange mostrava sinais semelhantes aos das vítimas de tortura psicológica” porque “esteve preso em isolamento durante mais de um ano”

Como explicou Fidel Narváez, antigo membro da Embaixada do Equador durante a presidência de Correa, a decisão do Juiz Baraitser não foi uma vitória para a democracia. Além disso, advertiu que “os jornalistas devem estar atentos, pois, a liberdade de expressão está ameaçada”. Estas palavras ressoaram em dezembro desse ano, quando o Supremo Tribunal em Londres decidiu a favor da extradição de Assange para os Estados Unidos. Meses depois, a 20 de abril de 2022, esta decisão foi reafirmada quando o Tribunal dos Magistrados de Westminster emitiu uma ordem de extradição do australiano para o Ministério do Interior.

A punição de Julian Assange por expor as atrocidades dos EUA no Iraque e no Afeganistão é um exemplo da hegemonia americana no Ocidente

A punição de Julian Assange por expor as atrocidades dos EUA no Iraque e no Afeganistão é um exemplo da hegemonia americana no Ocidente. É um país que não contempla qualquer desvio ideológico ou pensamento crítico que prejudique os seus interesses nacionais. Isto foi reconhecido por Duane Clarridge, antigo chefe da CIA na América Latina, a John Pilger no filme documentário War on Democracy sobre o golpe de Estado de 1973 no Chile contra Salvador Allende. Não é de modo algum surpreendente que a CIA conspirasse para assassinar Julian Assange.

Um liberalismo ferido

As tendências autoritárias perpetradas pelos discursos do ódio, racismo e xenofobia têm vindo a espalhar-se de forma alarmante durante a última década. O impulso político dos líderes ocidentais em França, Brasil, Estados Unidos, Itália, Espanha, Hungria e Polónia catapultou uma deriva de extrema-direita que tem vindo a minar as democracias liberais.

Até mesmo o Reino Unido, o país onde surgiu a ideologia liberal, experimentou a ascensão de Nigel Farage com a sua campanha prenhe de retórica inflamatória para obter ganhos políticos. O cartaz contra os migrantes durante a campanha do Brexit de 2016 resumiu uma trajetória que continuou com a vitória de Donald Trump nesse ano. Atualmente, o Reino Unido está classificado em 24º lugar entre 180 países no Índice de Liberdade de Imprensa Mundial 2022 da Repórteres Sem Fronteiras, uma posição desonrosa para uma região que se orgulha dos seus ideais democráticos há séculos.

Pois foi em Inglaterra que se fez a primeira tentativa de estabelecer uma sociedade democrática. Na década de 1640 e em plena Guerra Civil, os ‘levellers’ exigiam liberdade de religião, igualdade perante a lei e o direito à representação parlamentar. Um século mais tarde, a teoria liberal anglo-saxónica atravessou o Atlântico, e foi representada no panfleto ‘Common Sense’ escrito por Thomas Paine e publicado em 1776. Este documento foi essencial na criação de uma consciência social nas treze colónias americanas, que acabaram por se tornar independentes da Inglaterra em 4 de Julho desse ano para eventualmente formarem os Estados Unidos.

Gradualmente, o pensamento liberal foi consolidado através de figuras como Mary Wollstonecraft, John Stuart Mill, Jeremy Bentham, John Bright e Bertrand Russell. Embora variando nos seus modelos de implementação, esta ideologia promulgou a expansão das liberdades e direitos numa altura em que o sufrágio universal ou a igualdade perante a lei representavam ideais utópicos.

Contudo, Alexis de Tocqueville percebeu que a suposta liberdade de pensamento não estava inevitavelmente ligada à realização de uma sociedade mais justa. As duas partes de Democracy in América publicados em 1835 e 1840, mostram perfeitamente o processo de análise realizado pelo cientista político nas suas pesquisas nos Estados Unidos da América. Enquanto no primeiro volume exalta o potencial da democracia, no segundo lamenta que a liberdade de pensamento individual leve ao crescimento do egoísmo pessoal e, portanto, a um declínio da sociedade. Em outras palavras, a liberdade requer esforço, determinação, pensamento crítico e interesse em participar da esfera pública, e foi por isso que ficou conturbado com a homogeneidade que observava numa sociedade que se vangloriava de ser livre. Apesar da ausência de um rei absolutista que impusesse ideias ou dogmas religiosos para orientar a sociedade, o poder era um produto perpetrado pelas redes sociais fundadas na tradição e na dificuldade de escapar do jugo da rotina. Estas conexões implantadas na sociedade foram aperfeiçoadas até hoje através de avanços tecnológicos, uma realidade brilhantemente exposta por Michel Foucault em The Order of Things.

O inimigo externo para legitimar a agonia democrática

A ‘guerra ao terror’ foi uma mudança de paradigma global. Após o desaparecimento da União Soviética e o suposto fim da história descrito por Francis Fukuyama, a hegemonia mundial dos EUA parecia consolidada.

Num mundo globalizado cada vez mais incompreensível, a falta de um inimigo externo para dirigir as frustrações pessoais representava uma ameaça para o governo dos EUA. Temiam tornar-se o alvo de agitação social. Isto foi vividamente ilustrado em 1999 durante os protestos em Seattle quando dezenas de milhares de pessoas começaram uma revolta global contra o neoliberalismo. Esta insurreição política teve eco nos Fóruns Sociais Mundiais e nas cimeiras do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do G20.

Os protestos reuniram demandas sociais para proteger o meio ambiente, alcançar a igualdade entre pessoas de diferentes grupos, redistribuir a riqueza e salvaguardar os direitos humanos. Esta rejeição da ideologia capitalista dificultou aos EUA aumentarem significativamente os gastos económicos em armamentos militares. Como um dos negócios mais lucrativos para as oligarquias, a cruzada contra o Médio Oriente após os ataques de 11 de setembro de 2001 deu a George W. Bush a legitimidade de que precisava para invadir o Afeganistão.

Dois anos mais tarde, as pessoas saíram novamente às ruas para se manifestarem contra a guerra no Iraque. Diante de mais uma invasão americana apoiada por países ocidentais, o 15 de fevereiro de 2003, manifestações massivas ocorreram em todo o mundo. Isto contrastou fortemente com a imagem de Bush, Blair e Aznar, representantes de uma cruzada imperialista. Entretanto, milhões de pessoas mobilizadas em Londres, com uma estimativa de 1,5 milhões de pessoas no Hyde Park.

Acabar com Assange, restringir a liberdade

Face a este desejo de procurar constantemente um inimigo externo, o WikiLeaks surge como um contraponto ao poder hegemónico ao fornecer informações verdadeiras sobre a intervenção americana em países estrangeiros. Embora Bush tenha explicado que os Estados Unidos foram ao Afeganistão para trazer a democracia, Joe Biden mostrou maior honestidade sobre as intenções americanas. O novo presidente explicou que o objetivo não era trazer a democracia para o país asiático, mas sim “prevenção de ataques terroristas”. Também se referiu ao “interesse nacional”, uma retórica empregada por membros da CIA que perpetraram golpes na América Latina, como John Pilger relata nos seus documentários.

E precisamente por causa disto, as fugas de informação de uma rede que visa democratizar a informação representam um perigo claro para os Estados Unidos. Porque o WikiLeaks visa destruir o pseudo-ambiente, um termo cunhado pelo jornalista Walter Lippmann para definir uma realidade impercetível para a opinião pública. Os meios de comunicação social oferecem uma imagem simplificada da própria realidade, que é fácil de compreender. Lippmann argumentou que temos conhecimento indireto do ambiente em que vivemos, devido às distâncias geográficas, às variações culturais e à impossibilidade de analisar tudo o que acontece. O quarto estado é, portanto, um elemento fundamental nas nossas sociedades.

A exposição de mais de 400 000 documentos mostrando que houve mais de 300 casos de tortura e abuso perpetrados secretamente pelas forças dos EUA no Afeganistão e a prisão de 180 000 iraquianos é uma rutura com a realidade moldada pelos meios de comunicação ocidentais. Julian Assange e WikiLeaks representam uma ameaça, e a sua extradição envia uma mensagem clara aos cidadãos que ainda acreditam na liberdade de imprensa.