O mais importante filósofo francês, fala do momento de esvaziamento diante da ofensiva inimiga e do enfraquecimento das velhas

 

Especialista em Platão, de quem traduziu do grego A República, o ex-maoísta Alain Badiou é hoje um dos filósofos franceses mais lidos e estudados no mundo. Apaixonado por política, ele publicou, em 2016, um curto ensaio sobre os atentados de 13 de novembro de 2015 intitulado Notre Mal Vient de Plus Loin.

Suas posições contra a política colonialista de Israel e em defesa de um Estado Palestino fizeram dele alvo de sionistas franceses, que chegaram a acusá-lo de antissemitismo. A imprensa mais à esquerda o respeita e lhe abre espaço em longas entrevistas, como recentemente no Libération, ou lhe oferece páginas inteiras, como em julho no Le Monde, onde ele assinou o artigo “Le capitalisme, seul responsable de l’exploitation destructrice de la nature”.

CartaCapital: Tocqueville dizia que “a França tem a paixão pela igualdade”. Como explicar que as páginas sobre as lutas sociais quase desapareceram mesmo dos jornais de esquerda, com exceção do comunista L’Humanité? 

Alain Badiou: Tenho uma visão histórica um pouco diferente. A questão da igualdade foi colocada em pauta na França pela Revolução Francesa e isso criou uma corrente indubitável, reconhecida no mundo inteiro, em torno das ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, incluindo a igualdade como um dado fundamental. Mas isso é apenas um aspecto da França. Ela foi também, de maneira persistente, um país contrarrevolucionário extremamente violento.

A França é também os 30 mil mortos da Comuna de Paris, é também a capitulação de Pétain e o antissemitismo oficial do Estado francês durante a Segunda Guerra Mundial. Foi também, durante 20 anos, o governo para os ricos sob Napoleão III, e é Macron hoje. Tudo isso com um pano de fundo do colonialismo, que conta no inconsciente francês. Não há uma França única, há duas. Há a França dos episódios revolucionários, porém minoritários e limitados no tempo, inclusive da Revolução Francesa a Maio de 1968.

E depois há uma França contínua, estável, uma base que é profundamente reacionária, hostil às manifestações de igualdade. A gente subestima sempre esta França por causa da glória da França revolucionária. As duas coexistem, mas a continuidade pertence mais à França reacionária que à outra. 

CC: A pluralidade da imprensa francesa está ameaçada pelo fato de que grandes grupos capitalistas tenham comprado jornais importantes? Penso no Figaro, no Libération, no Le Monde e no Les Échos, sem falar nas redes de tevê.

AB: A pluralidade está ameaçada, em estado crítico. Na França, fala-se de pensamento único e penso que estamos próximos da informação única. Os números comprovam. A imprensa escrita foi comprada por grandes grupos capitalistas (exceto o L’Humanité) e, quanto às tevês, é a mesma coisa.

Os canais de informação dirigidos à população em geral estão nas mãos da oligarquia financeira. Você lê um jornal ou um outro e vai encontrar os mesmos temas, as mesmas ideias. Vão lhe dizer que Maduro é ditador, que quem não defende Israel é antissemita, que o neoliberalismo é a melhor alternativa, que é preciso privatizar as empresas porque a economia coletiva não funciona, “abaixo o comunismo”.

É isso que vamos ver em quase toda a imprensa. No nosso país existe um totalitarismo parlamentar. Sim, temos um Parlamento, eleições, mas a economia está nas mãos de um pequeno grupo, idem para a informação, e é preciso ser o eleito dos EUA.

CC: Foi este o problema de Lula, ele não era o “eleito” dos Estados Unidos. Lula, um ex-metalúrgico eleito presidente duas vezes, nunca foi aceito pelas elites dominantes do Brasil. Nem ele nem as políticas sociais que implementou para diminuir as desigualdades. Com o golpe disfarçado de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e que acabou levando à prisão de Lula. O senhor acompanha o que se passa na América Latina?

AB: Sim, interesso-me muito pelo que se passa na América do Sul, sobretudo porque durante um momento houve a ideia de que aconteciam coisas muito interessantes na América Latina. E a catástrofe atual nos atinge também, não somente porque representa um enfraquecimento mundial, mas também por sua violência e radicalidade.

É impressionante ver o que se passa com Lula e com sua política atualmente no Brasil. É uma inversão brutal de algo que acompanhávamos com simpatia, mesmo se tivéssemos críticas aqui e ali. Víamos com simpatia alguém tirar uma parte da população brasileira da miséria extrema. O que se passa no Brasil, na Argentina e na Venezuela tem um alto significado estratégico mundial. 

CC: Donald Trump disse que não excluía a opção militar na Venezuela. Isso não chocou a Europa? Macron e os jornais franceses tratam Nicolás Maduro como ditador.

AB: Mesmo Libération e Le Monde fazem campanha contra os venezuelanos. É o sinal da submissão dos vassalos europeus aos Estados Unidos, que se manifesta mais uma vez em relação à América Latina. A informação dada sobre essa região é uma informação que vem dos EUA.

Por exemplo, não se explicou aqui que o que aconteceu no Brasil foi um golpe de Estado. Todo mundo repete: “Sim, Lula se corrompeu”. Isto faz parte da perda de referência quando se trata de conhecer os processos políticos reais. Contam apenas a fábula dominante.

CC: Nesta moldura, que representa Macron?

AB: Macron é um personagem destinado a integrar, mais ainda, a França no neoliberalismo mundial. As forças políticas francesas, a direita e depois a esquerda, estavam em crise. A direita enfraquecida e a esquerda a mostrar que não fazia algo muito diferente da direita. Foi preciso encontrar uma alternativa e Macron, que já tinha tido uma pequena carreira de ministro da Economia, encaixou-se no papel. O programa dele é essencialmente negativo, pretende destruir a totalidade das conquistas sociais do Pós-Guerra, nos anos 40 e 50 do século passado.

Trata-se de privatizar a totalidade dos setores que escaparam à privatização e, no nível internacional, trata-se também de encontrar um acordo com a Alemanha para empurrar a Europa mais ainda para o campo neoliberal. Macron é uma figura em total sintonia com a situação mundial.

É o representante francês do vasto movimento de neoliberalismo desenfreado, cabe na tradição francesa diante da crise dos partidos tradicionais e um homem providencial aparece. Foi o caso de Napoleão III, de De Gaulle em 1958, em plena Guerra da Argélia. Macron é personagem um pouco menor, mas tem a mesma função. E vivemos uma espécie de ditadura política dos grandes grupos financeiros e industriais nacionais, e também midiáticos.

CC: O que significa para o mundo a eleição de um businessman para governar os Estados Unidos?

AB: É um símbolo. A potência dominante de todo o capitalismo ocidental escolheu um personagem como Trump, um personagem anormal. Porque no interior do Partido Republicano, a direita tradicional dos Estados Unidos, ele não era uma figura dentro da norma. Eu me interesso e me preocupo com o fato de que em muitos lugares do mundo o poder político tende a ser diretamente colocado nas mãos de personagens que não são políticos profissionais, são representantes diretos da oligarquia mais limitada, mais violenta.

Desse ponto de vista, vejo a democracia parlamentar em crise no mundo inteiro porque não é mais o regime dos grandes partidos tradicionais republicanos e democratas, socialistas e conservadores, aquela que dominou no mundo nos anos do Pós-Guerra.

Verifica-se um deslocamento para personalidades patológicas, que representam interesses financeiros os mais violentos e que têm como programa reformas brutais de destruição de conquistas sociais, de racismo renovado, de hostilidade aos estrangeiros. Parece que o capitalismo sente a necessidade de uma nova etapa de sua ditadura. Qual o sentido exato dessa orientação é uma pergunta que me faço. Ainda não tenho uma resposta.

CC: Como as nações podem resistir à implantação no mundo inteiro do neoliberalismo que Trump e Macron representam, com estilos diferentes?

AB: O problema é que, por enquanto, não parece possível, pelo menos na Europa, apoiar-se ou confiar no que subsiste das organizações da esquerda tradicional. Elas parecem realmente derrotadas. Elas não perceberam a aproximação do fenômeno, não souberam enfrentá-lo, e perderam crédito junto às populações. É preciso recomeçar tudo. Estamos no início de uma recomposição ainda obscura. Há uma crise mundial da esquerda e é ideológica, de visão do mundo. Infelizmente, penso que essa situação não vai ser resolvida rapidamente.

CC: Quando se quer desqualificar um homem político se diz que “é um populista”. Os filósofos Chantal Mouffe e Ernesto Laclau teorizaram o “populismo de esquerda”, que afirma que a crise democrática é também uma oportunidade para radicalizar a democracia. O que o senhor pensa disso?

AB: O uso da palavra populismo para desacreditar um homem político, isto é, a identificação que se faz de populismo à extrema-direita como se fosse uma mesma coisa é um uso contestável porque, se populismo quer dizer uma política para o povo, não enxergo injúria. Concordo com Laclau e Mouffe quanto ao fato de que o populismo pode, ao contrário, ser tomado com significação positiva, de uma política que se preocupa em estar em ligação orgânica com a vontade popular.

O segundo ponto é que precisamos saber que a crise atual é a crise das representações políticas, em quase toda parte. Há qualquer coisa que não funciona mais de forma clara na relação entre a dominação econômica e a dominação política. Os Estados parlamentares estão desorganizados e então vemos aparecer Trump, Macron, ou os poderes de extrema-direita nos países da Europa do Leste.

Como pano de fundo de tudo isso há mutações agressivas e ambiciosas do capitalismo moderno. O problema, nada simples, é como utilizar esta crise para uma recomposição de esquerda, positiva. Para mim, isso supõe, antes de mais nada, uma reorganização estratégica do pensamento, da ideia.

CC: Mas, na França, com a France Insoumise de Mélenchon, e seus 20% de votos no primeiro turno da eleição presidencial do ano passado…

AB: As perspectivas reais da France Insoumise são confusas. Mélenchon ainda é um personagem muito ligado à velha esquerda e dela guardou muitas características, inclusive o fato de que sua visão ideológica e programática não é clara.

CC: E o que é a nova esquerda?

AB: Honestamente, não saberia citar um só exemplo no mundo inteiro. São períodos vazios, que já existiram na história. São momentos de esvaziamento, em face de uma ofensiva do inimigo muito violenta e diante de uma espécie de enfraquecimento das velhas ideias, das velhas maneiras de fazer. É preciso propor coisas simples para começar, fazer uma descrição precisa dos interesses que estão em jogo, quem representa o quê. Por que no Brasil houve a possibilidade de uma contraofensiva tão brutal, tão violenta da casta dirigente mais reacionária?

CC: Com a chegada ao poder da extrema-direita em vários países da União Europeia, a Europa está ameaçada em sua própria existência?

AB: Acho que o projeto europeu ficou um tanto obscuro. Mas o que era ele? Era um projeto do Pós-Guerra com duplo objetivo: criar as condições de uma paz fundamental na Europa, depois de duas guerras mundiais atrozes e, por isso, o cerne era uma reconciliação franco-alemã que poria um ponto final a um século de guerras e hostilidades.

Em segundo lugar, era também uma aliança com os EUA, para constituir uma barreira à expansão soviética. Mas, na atual situação, quais os objetivos exatos da construção europeia? Não são claros e não foram clarificados pela incorporação à Europa de uma parte da antiga zona soviética (Polônia, Tchecoslováquia, Hungria etc.) na qual há forças nacionalistas reativas, religiosas e que representam uma cultura política completamente diferente da dos países ocidentais como a França e a Inglaterra. 

CC: Como se explica isso?

AB: Por uma razão simples. Um projeto europeu forte suporia que os Estados europeus estejam prestes a afirmar sua independência em relação aos Estados Unidos. Ora, não creio que eles estejam prontos a tanto. As dependências ainda são consideráveis. Não existe uma defesa europeia comum, não há nenhum aparelho militar suficiente para garantir essa independência, e ainda persiste uma dependência monetária extremamente forte em relação ao dólar.

CC: Na Europa do Leste medra uma forma de neofascismo?

AB: Sim, mas o neofascismo tcheco ou húngaro na Europa de hoje não tem grande futuro. Eles vão acabar integrando-se ao neoliberalismo geral.

CC: Em que o reconhecimento pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital de Israel muda a resolução da ONU que em 1947 declarou  “Jerusalém como entidade à parte” e Jerusalém-Leste como capital do Estado Palestino?

AB: É a ilegalidade internacional total. É um sinal de que, na realidade, o tipo de apoio dos EUA ao Estado de Israel faz-se agora de forma direta contra a própria existência dos palestinos. Nem mesmo Macron acompanhou os americanos nessa medida. Ao mesmo tempo, me inquieta a situação na Palestina.

Tenho a impressão que o Estado de Israel não pára de avançar na violência e na ilegalidade e se beneficia com Trump de um apoio incondicional a tudo que faz. É a impunidade total. O caso de Gaza é terrível e a reação internacional é fraca demais, quase inexistente. Não ficaria surpreso se, aproveitando-se dessa contrarrevolução planetária, Israel ganhe novas posições.

Ele está de fato recuperando a Cisjordânia, a parte Leste de Jerusalém, depois de ter instalado colônias por todo lado, o que impede até a hipótese de um Estado Palestino. Precisamos reconhecer que o povo palestino não tem as organizações que mereceria. Nem o Fatah nem os outros estão à altura da situação.

CC: Emmanuel Macron ajudou os que caçam antissemitas por todo lado. Ele disse que o antissionismo é uma nova forma de antissemitismo.

AB: Na realidade o fato de dizer que o antissionismo é igual ao antissemitismo é uma ideia que a ideologia dominante tenta instalar. Entre os jovens judeus americanos há um movimento que preocupa muito Israel. Eles protestaram contra os massacres recentes em Gaza. Existe nos Estados Unidos um movimento de judeus antissionistas. Mas essa questão é muito complicada na França. O movimento pró-Israel é muito forte aqui. E ficou forte porque o principal partido da esquerda, o Partido Socialista, sempre foi muito pró-Israel. É preciso ser firme contra a chantagem do antissemitismo.

Leneide Duarte-Plon

Carta Capital