O mundo ignora, mas em Sheikh Jarrah o esforço para nos destituir não desacelerou.

Um membro das forças de segurança israelenses aponta uma granada de choque contra os manifestantes palestinos no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, em 17 de julho (Ahmad Gharabli/AFP/Getty Images)Créditos da foto: Um membro das forças de segurança israelenses aponta uma granada de choque contra os manifestantes palestinos no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, em 17 de julho (Ahmad Gharabli/AFP/Getty Images)

 

Alguns meses atrás, a atenção mundial estava em Sheikh Jarrah, meu bairro na parte ocupada de Jerusalém. Por décadas, colonos israelenses, apoiados pelo seu Estado, tentam nos tirar de nossas casas e colonizar o nosso bairro. A ONU chamou esses despejos forçados de crime de guerra. Eu chamo isso de roubo – porque é.

Em maio, nossos esforços para resistir a essa tomada receberam solidariedade de palestinos em Jerusalém e em outros lugares, no que ficou conhecido como o Levante da Unidade. Palestinos estavam sujeitos à violência israelense em toda a parte leste de Jerusalém – não somente em Sheikh Jarrah, mas também fora do portão de Damascus (ele mesmo sendo um foco de protestos), e dentro e ao redor da mesquita de al-Aqsa – que elevaram para ataques na Gaza sitiada. Palestinos se mobilizaram e resistiram, e, ao redor do mundo, as pessoas protestaram apoiando o direito palestino a liberação e descolonização. Mas após o cessar fogo, a atenção mundial foi embora. A realidade para os palestinos, no entanto, não mudou.

Em Sheikh Jarrah, o esforço para nos destituir não desacelerou. Nosso bairro está sofrendo com um cerco há três meses, mantido por forças israelenses, com restrições contínuas feitas para sufocar as vidas das centenas de palestinos que moram aqui. E ainda assim, enquanto isso, colonos judeus armados, que já ocuparam algumas das nossas casas, andam livremente pelas ruas. Em uma noite qualquer, uma dúzia de fanáticos empunhando armas patrulham minha rua com uma impunidade arrogante. Eles são protegidos – até mesmo apoiados – pelas tropas que cercam nossa comunidade.

Para aqueles de nós que vivem em Sheikh Jarrah, a evidência dessa parceria entre colonos e o Estado é abundante e impressionante. Considere os eventos de dois dias do mês passado. Em 21 de junho, a polícia israelense veio ao bairro após um colono utilizar gás de pimenta contra três estudantes na rua. Mas quando chegaram, os policiais ignoraram as garotas e prenderam dois meninos palestinos. É claro, eles não prenderam o colono – mas eles ameaçaram prender meu irmão por filmar a detenção dos dois meninos.

Mais tarde no mesmo dia, dezenas de colonos armados se reuniram em uma casa que foi tomada em 2009 da família Ghawi, provocando uma noite de violência que, mais uma vez, viu a polícia militarizada se unindo aos ataques a residentes palestinos em Sheikh Jarrah. Em uma ponta da rua Othman Bin Affan, forças de ocupação israelenses espancaram palestinos com um porrete; na outra ponta, os colonos jogaram pedras e perseguiram com gás de pimenta adolescentes que protestavam. Jornalistas que chegavam no local também eram atacados. Alguns jovens palestinos tentaram interromper a repressão, lançando fogos de artifício na direção dos colonos. Antes do fim da noite, diversos lares palestinos – incluindo o nosso – foram invadidos pelas forças israelenses.

Na manhã seguinte, enquanto eu coletava cerca de 10 fragmentos de granada da rua, meu vizinho me parou para mostrar dezenas de cápsulas de munição usadas. Seus filhos as tinham organizado na mesa do quintal, como uma coleção de souvenirs macabros. No mesmo dia, Bezalel Smotrich, membro do Knesset israelense, invadiu a casa da minha família, junto com Tzahi Mamo, diretor do Nahalat Shimon Internacional – uma empresa privada, registrada nos EUA, que está trabalhando para confiscar o nosso bairro e retirar os palestinos. A empresa entra com processos se baseando em leis israelenses racistas, documentos fabricados e juízes colonos para expulsar os palestinos de suas casas e entregar as propriedades para os colonos. Quando os legisladores aparecem na minha casa para tiraram ela de mim, o que os palestinos vêm dizendo há décadas se confirma: os colonos e o Estado refletem um ao outro.

Eu estou cansado de reportar a mesma brutalidade todos os dias, de pensar em novos modos de descrever o óbvio. A situação em Sheikh Jarrah não é difícil de entender: é a ilustração perfeita de um colono-colonialismo, um microcosmos da realidade para os palestinos em 73 anos de comando sionista. Esse vocabulário não é teórico. É evidente nas tentativas de nos despejar das nossas casas para que os colonos as ocupem – com o apoio do regime, cujas forças e policiais fornecem apoio violento à transferência de uma população para instalar outra.

Eu não ligo se essa terminologia ofende alguém. Colonial é o jeito correto de se referir ao Estado cujas forças conspiram com a violência dos colonos; cujo governo trabalha com organizações de colonos; cujo sistema judiciário usa leis expansionistas para reivindicar nossas casas; cuja lei do estado-nação consagra “o assentamento judeu” como “um valor nacional…a ser encorajado e promovido”. O apetite por terras palestinas – sem palestinos – não diminuiu em mais de sete anos. Eu sei por que eu vivo isso.

Em 2 de agosto, a suprema corte israelense, cuja jurisdição sobre a parte leste de Jerusalém desafia a lei internacional, vai decidir se permitirá o pedido da minha família e de três outras – o último obstáculo legal antes de sermos despejados. Já tiveram adiamentos antes. Os palestinos estão acostumados com esse tipo de demora; testa a nossa resistência. Mas somos tão teimosos quanto qualquer pessoa que está prestes a perder sua casa – sua vida, suas memórias – para pessoas que estão usando a força, intimidação e leis enviesadas.

Em face a essa crueldade, e mesmo com gás lacrimogêneo e água podre, estamos resistindo. Não podemos permitir que eles roubem nossas casas mais uma vez, e nos recusamos a continuar vivendo em campos de refugiados enquanto colonizadores vivem em nossas casas. Não podemos deixar que joguem mais de nós nas ruas. Estamos cansados de sermos transformados em uma população refugiada, bairro atrás de bairro, uma casa de cada vez.

Eu não tenho fé no sistema judiciário israelense; é parte do Estado colonial, construído por colonos para colonos. Tampouco espero que qualquer governo internacional que tem estado profundamente conectado como o negócio colonial israelense interceda em nosso favor. Mas eu tenho fé nas pessoas ao redor do mundo que protestam e pressionam seus governos a encerrarem o que representa o apoio incondicional às políticas israelenses.

A impunidade e os crimes de guerra não serão encerrados com declarações de repúdio e sobrancelhas levantadas. Nós palestinos já articulamos repetidamente quais tipos de medidas políticas transformadoras devem ser tomadas – como os boicotes da sociedade civil e sanções a nível estadual. O problema não é a ignorância, é a inação.

Por Mohammed El-Kurd

*Publicado originalmente em ‘The Guardian‘ | Tradução de Isabela Palhares para Carta Maior