Centenas de apoiantes do fundador da Wikileaks concentraram-se na segunda-feira em Londres, junto ao tribunal onde recomeçaram as audiências do pedido de extradição para os Estados Unidos. Publicamos o texto lido pelo veterano repórter John Pilger em defesa de Julian Assange.
.
.
Manifestação à porta do tribunal de Londres a 7 de setembro.
               Manifestação à porta do tribunal de Londres a 7 de setembro. Foto Andy Rain/EPA

 

TEXTO LIDO POR JOHN PILGER

Quando conheci Julian Assange há mais de dez anos, perguntei-lhe porque tinha iniciado o WikiLeaks. Ele respondeu: “Transparência e responsabilização são questões morais que devem ser a essência da vida pública e do jornalismo”.

Nunca tinha ouvido um editor invocar a moralidade desta forma. Assange acredita que os jornalistas são os agentes do povo, não do poder: que nós, o povo, temos o direito de conhecer os segredos mais sombrios daqueles que afirmam agir em nosso nome.

Se os poderosos nos mentem, temos o direito de saber. Se dizem uma coisa em privado e o oposto em público, temos o direito de saber. Se conspiram contra nós, como Bush e Blair fizeram sobre o Iraque, e a seguir fingem ser democratas, nós temos o direito de saber.

 

Assange terá sido algemado 11 vezes e despido após julgamento                                    Assange terá sido algemado 11 vezes e despido após julgamento

 

É esta moralidade de objetivos que tanto ameaça a conivência dos poderes que querem mergulhar grande parte do mundo na guerra e querem enterrar Julian vivo na América fascista de Trump.

Em 2008, um relatório ultra-secreto do Departamento de Estado norte-americano descreveu em pormenor como os Estados Unidos iriam combater esta nova ameaça moral. Uma campanha de difamação pessoal secretamente dirigida contra Julian Assange levaria à “revelação [e] acusação criminal”.

O objetivo era silenciar e criminalizar a WikiLeaks e o seu fundador. Página após página revelava uma guerra que se aproximava contra um único ser humano e contra o próprio princípio da liberdade de expressão e da liberdade de pensamento, e da democracia.

As tropas de choque imperiais seriam aquelas que se autodenominavam jornalistas: os grandes nomes do chamado mainstream, especialmente os “liberais” que delimitam e patrulham os perímetros da discórdia.

E foi isso que aconteceu. Sou repórter há mais de 50 anos e nunca conheci uma campanha de difamação como esta: o assassinato forjado de um homem que se recusou a entrar para o clube: que acreditava que o jornalismo era um serviço ao público, nunca aos de cima.

Assange envergonhou os seus perseguidores. Ele produziu cacha após cacha. Expôs a fraude das guerras promovidas pelos media e a natureza homicida das guerras da América, a corrupção dos ditadores, os males de Guantánamo.

Ele obrigou-nos no Ocidente a olhar para o espelho. Expôs os porta-vozes oficiais da verdade nos meios de comunicação social como colaboracionistas: aqueles a quem eu chamaria jornalistas de Vichy. Nenhum destes impostores acreditou em Assange quando ele avisou que a sua vida estava em perigo: que o “escândalo sexual” na Suécia era uma armadilha e que um buraco infernal americano era o destino final. E ele estava certo, e repetidamente certo.

A audiência de extradição em Londres esta semana é o ato final de uma campanha anglo-americana para enterrar Julian Assange. Não se trata de um processo justo. É uma vingança. A acusação americana está claramente viciada, uma manifesta farsa. Até agora, as audiências têm feito lembrar os seus equivalentes estalinistas durante a Guerra Fria.

Hoje, a terra que nos deu a Magna Carta, Grã-Bretanha, distingue-se pelo abandono da sua própria soberania ao permitir que um poder estrangeiro maligno manipule a justiça e pela cruel tortura psicológica de Julian – uma forma de tortura, como Nils Melzer, o perito da ONU, salientou, que foi refinada pelos nazis porque era mais eficaz em quebrar as suas vítimas.

 

 

 

Sempre que visitei Assange na prisão de Belmarsh, tenho visto os efeitos desta tortura. Quando o vi pela última vez, ele tinha perdido mais de 10 quilos de peso; os seus braços não tinham músculo. Por incrível que pareça, o seu impiedoso sentido de humor estava intacto.

Quanto à pátria de Assange, a Austrália demonstrou apenas uma acanhada cobardia, com o seu governo a conspirar secretamente contra o seu próprio cidadão, que deveria ser homenageado como um herói nacional. Não foi em vão que George W. Bush consagrou o primeiro-ministro australiano como o seu “vice-xerife”.

Diz-se que o que quer que aconteça a Julian Assange nas próximas três semanas irá diminuir, senão mesmo destruir a liberdade de imprensa no Ocidente. Mas que imprensa? O Guardian? A BBC, o New York Times, o Washington Post de Jeff Bezos?

Não, os jornalistas destas organizações podem respirar à vontade. Os Judas do Guardian que cortejaram Julian, exploraram a sua obra notável, ganharam uma pipa de massa e depois traíram-no, nada têm a temer. Eles estão a salvo porque são necessários.

A liberdade de imprensa recai agora sobre os raros honestos: as exceções, os dissidentes na Internet que não pertencem a nenhum clube, que não são ricos nem cheios de Pulitzers, mas produzem um jornalismo de qualidade, desobediente e moral – aqueles como Julian Assange.

Entretanto, é nossa responsabilidade estar ao lado de um verdadeiro jornalista cuja enorme coragem deveria servir de inspiração para todos nós que ainda acreditamos que a liberdade é possível. Eu saúdo-o.


Artigo publicado por Green Left a 8 de setembro de 2020. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net