Presidente dos EUA usa política do antecessor de extrema direita para justificar deportações em massa após pregar apoio a imigrantes e afirmar que o Haiti não é seguro.

Foto: AP Photo/Félix Márquez

 

Apenas cuatro meses atrás, o Departamento de Segurança Interna dos EUA designou o Haiti para o status de proteção temporária. A rara designação se aplica a imigrantes nos Estados Unidos que estão temporariamente impossibilitados de retornar com segurança ao seu país de origem, devido a condições de extrema agitação política, conflito, ou desastres naturais. O governo dos EUA afirmou, portanto, em termos inequívocos, que o Haiti não era um lugar seguro. O status de proteção temporária foi o estendido e expandido para os haitianos há apenas cinco semanas.

No entanto, em um intervalo de 24 horas em setembro, 320 haitianos foram colocados em aviões pelo governo Biden e expulsos de volta ao Haiti, tendo sido removidos do enorme campo de fronteira que se formou ao redor de uma ponte em Del Rio, no Texas. A partir do dia 22 de setembro, espera-se que cerca de 10 voos por dia façam essa viagem. Cerca de 14 mil haitianos serão expulsos dos EUA nas próximas três semanas – quase o número exato reunido atualmente no acampamento de Del Rio.

 

Cerca de 14 mil haitianos serão expulsos dos EUA nas próximas três semanas – quase o número exato reunido atualmente no acampamento de Del Rio.

 

O governo Biden está expulsando milhares de pessoas para um país oficialmente reconhecido como inseguro para repatriação. É uma operação de deportação em escala e velocidade não vistas há décadas. E desmente qualquer noção de que a política de fronteiras de Joe Biden é mais gentil do que a do ex-presidente Donald Trump.

Trump e seus aliados macabros enquadravam suas políticas brutais de fronteira em uma retórica racista descarada e na propagação do medo pela supremacia branca. Como os presidentes Bill Clinton e Barack Obama fizeram antes, Biden envolve suas políticas anti-imigrantes em aberturas liberais vazias. As lógicas de fronteira necropolíticas são, no entanto, as mesmas; o sofrimento daqueles que não têm segurança nos EUA – que bem poderiam oferecê-la – não é diferente, seja imposto por um suposto “amigo” dos imigrantes ou por um explícito nacionalista branco.

A UndocuBlack encerrou o tweet com a hashtag #BidenAlsoDeports, #BidenTambémDeporta, que vem ganhando força entre aqueles que tentam chamar a atenção para a brutalidade da deportação em massa de haitianos pelo atual governo dos EUA.

Ativistas históricos pelos direitos dos imigrantes não ficarão surpresos com a desumanidade de um governo democrata no que diz respeito às regras da fronteira. Políticas genocidas de suposta dissuasão em nome da “segurança” das fronteiras são um raro ponto em que os dois partidos concordam, admitam ou não os democratas. O tratamento cruel de Trump com os imigrantes na fronteira foi citado como a principal prova da crueldade racista de seu governo. O mesmo, então, deve se aplicar às ações de Biden.

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TOPSHOT-US-POLITICS-IMMIGRATION-TEXASFoto: Paul Ratje/AFP via Getty Images

 

Fotografias tiradas no último final de semana mostram agentes da Patrulha de Fronteira dos EUA a cavalo agarrando violentamente migrantes haitianos que tentavam se juntar ao acampamento em Del Rio. Isso, afirma o governo Biden, é em nome da segurança: as deportações foram autorizadas sob o Título 42 das normas do Centro de Controle de Doenças, o CDC, que permite deportações aceleradas em nome da saúde pública durante a pandemia de Covid-19. Sob Trump, quase meio milhão de pessoas foram removidas seguindo essa lei; o governo Biden já a usou para deportar cerca de 700 mil.

Seu uso contra migrantes na fronteira sul envia uma mensagem clara e vil sobre quem os EUA consideram ser merecedor de saúde e segurança. De acordo com o Título 42 – isto é, em nome da segurança – aqueles que estavam sendo presos e levados de avião para o Haiti não tinham a opção de solicitar asilo ou status de proteção temporária.

Vale ressaltar, também, que a maioria dos deportados não mora no Haiti há muitos anos, tendo partido em busca de trabalho na América do Sul depois que um terremoto catastrófico devastou seu país natal em 2010. Lutando para encontrar trabalho suficiente para sobreviver na América do Sul, milhares se arriscaram em viagens perigosas para a fronteira dos EUA, apenas para serem sumariamente removidos – para o Haiti.

“Estou com medo”, disse à agência Associated Press Gary Monplaisir, um haitiano de 26 anos que viajou do Chile para a fronteira dos Estados Unidos com sua esposa e filha de 5 anos, e que agora enfrenta uma remoção iminente para o Haiti. “Eu não tenho um plano”. Ele não mora no Haiti há quatro anos, e para chegar à família em Porto Príncipe seria necessário cruzar uma área controlada por gangues, onde assassinatos são comuns.

Alejandro Mayorkas, o secretário de Segurança Interna dos EUA, anunciou a nova designação do Haiti para status de proteção temporária em maio. “O Haiti está atualmente passando por graves problemas de segurança, agitação social, um aumento nos abusos de direitos humanos, pobreza incapacitante e falta de recursos básicos, que são agravados pela pandemia de Covid-19”, disse ele. “Depois de uma consideração cuidadosa, determinamos que devemos fazer o que pudermos para apoiar os cidadãos haitianos nos Estados Unidos até que as condições no Haiti melhorem para que possam voltar para casa em segurança”.

As condições não melhoraram e, ainda assim, uma deportação em massa de proporções históricas para a sitiada nação caribenha continua em um ritmo extraordinário. O Haiti continua assolado pelas consequências de outro terremoto devastador, guerra de gangues e uma crise política aguda – pela qual séculos de opressão e intervenção da supremacia branca dos EUA carregam considerável culpa histórica. Como Ryan Devereaux do Intercept relatou, o assassinato em julho do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, que mergulhou o país em desordem política, envolveu mercenários colombianos treinados nos EUA. É outra grande tradição americana que nunca foi interrompida: desestabilizar nações estrangeiras e então renunciar a todas as obrigações para com as obrigações em massa que os EUA ajudaram a produzir.

“Não conseguimos acreditar que o governo Biden deportaria haitianos agora. Horas depois do terremoto de magnitude 7,2, o presidente Joe Biden divulgou um comunicado dizendo que os Estados Unidos eram um ‘amigo’ do Haiti. Um ‘amigo’ não causa dor continuamente em outro amigo”, disse Guerline Jozef, cofundador e diretor executivo da Haitian Bridge Alliance, em um comunicado. “Apenas um mês após este terremoto e tempestade devastadores que resultaram na morte de mais de 2,2 mil haitianos, feriram 12 mil pessoas, danificaram ou destruíram 120 mil casas e deslocaram centenas de milhares de pessoas, o governo Biden mandou um avião cheio de famílias para o Haiti sob o Título 42, incluindo crianças menores de três anos, sem oferecer-lhes proteção legal e a oportunidade de pedir asilo”.

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Haiti US Deported
Haiti US DeportedHaitianos deportados pelos EUA desembarcam no Aeroporto Internacional Toussaint Louverture, em Porto Príncipe, Haiti, no domingo, 19 de setembro de 2021.Foto: AP Photo/Joseph Odelyn

 

No dia 18 de setembro, um juiz federal decidiu que o governo deve parar de usar o Título 42 como base para expulsar migrantes. O governo Biden está tão interessado em continuar usando a lei de saúde pública e negando o direito das pessoas de buscar asilo nos EUA que já recorreu. A decisão, se não for anulada, deu ao governo duas semanas para encerrar o uso da lei para expulsões – não é de admirar que os EUA estejam correndo para expulsar o maior número possível de refugiados haitianos a uma velocidade vertiginosa.

Enquanto isso, o governo Biden continua a enquadrar as deportações em massa em termos humanitários. “Estamos trabalhando 24 horas por dia para retirar os migrantes do calor, das intempéries e de debaixo desta ponte para levá-los a nossas instalações de processamento, a fim de processar e remover rapidamente indivíduos dos EUA de acordo com nossas leis e políticas”, disse o chefe da Patrulha de Fronteira, Raul Ortiz, em uma entrevista coletiva no domingo na ponte em Del Rio.  Como se a remoção para o Haiti fosse a única opção diante da crise humanitária; como se a nação mais rica do mundo não pudesse muito bem acomodar milhões de migrantes em busca de segurança e uma vida melhor. Em vez disso, a lógica de fronteira excludente prevalece como se fosse uma verdade transcendental.

Não há dúvida de que a crise na fronteira representa um desafio e um campo minado político para Biden. A população de Del Rio é de apenas 35 mil pessoas, e o acampamento fronteiriço cresceu para quase metade desse tamanho. Em tais circunstâncias, prosperam as alegações racistas e paranoicas dos republicanos de que ocorre uma “grande substituição” de americanos brancos por migrantes negros e pardos. De fato, o senador republicano Ted Cruz, do Texas, foi rápido em filmar as condições desumanas no acampamento e culpar os democratas por trazerem migrantes para a fronteira em um número grande e supostamente incontrolável.

 

É uma loucura política, bem como torpeza moral, que os democratas se voltem ainda mais à direita na questão da imigração, em uma tentativa de saciar os insaciáveis
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O acampamento é um desastre humanitário, mas também é um pesadelo político para o governo Biden. A única opção não é, no entanto, limpar o campo por meio de expulsões desumanas e apaziguamento da extrema direita. Os republicanos irão seguir vendendo Biden de forma enganosa como um defensor das fronteiras abertas, independentemente de quão severas e anti-imigrantes suas políticas continuem sendo. É uma loucura política, bem como torpeza moral, que os democratas se voltem ainda mais à direita na questão da imigração, em uma tentativa de saciar os insaciáveis.

Se o baque político está vindo de qualquer maneira, como está, o caminho a seguir é claro. Não há dúvida que os homens, mulheres e crianças reunidos na fronteira em condições intoleráveis — famintos, desabrigados e assediados pelas autoridades policiais — não deveriam estar lá. Eles deveriam ser rapidamente ajudados a entrar nos Estados Unidos.

Tradução: Maíra Santos para The Intercept Brasil