Novos dados revelam realidade aterradora. Polícia já responde por 44% de todas as mortes violentas de crianças e jovens, em São Paulo; no Rio, 27%. Em 2020, 787 jovens foram mortos por agentes de segurança. Meninos negros são 80% das vítimas.

                                     Marcelo Camargo/ABr

 

 

Jeniffer Mendonça

“A polícia não dá chance para a juventude” foi a frase que a cobradora de ônibus Ana Paula Rocha, 45, disse quando a morte do filho Igor Rocha Ramos, 16, completou um ano. Ela pediu para ele comprar cigarro em uma padaria e acabou morto com um tiro na cabeça disparado pelo sargento Nelson Gonçalves da Veiga Almeida, no Jardim São Savério, bairro da periferia da zona sul da cidade de São Paulo, em abril de 2020. 80% das mortes violentas contra crianças e adolescentes no Brasil são de meninos negros. Além dele, outras 787 vítimas de 10 a 19 anos foram mortos pela polícia em 2020, de acordo com o relatório inédito lançado nesta sexta-feira (22/10) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância, em tradução livre), que aborda violências letal e sexual contra vítimas de zero a 19 anos.

As entidades solicitaram informações aos 26 estados e ao Distrito Federal, mas apenas 18 encaminharam dados possíveis de comparação de 2016 a 2020. Nesses quatro anos, foram 26.413 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes, que englobam homicídio, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e mortes pela polícia em serviço. Enquanto os homicídios de crianças até nove anos acontece em maioria dentro de casa, as vítimas a partir dos 10 anos, especialmente na faixa dos 15 aos 19, sofrem com o que os pesquisadores chamam de “violência urbana”, e a intervenção policial tem aumentado como causa desses óbitos. “Por dois anos, teve uma redução dos homicídios, mas a violência policial continuou aumentando e agora, em 2020, voltaram a subir tanto os homicídios quanto as mortes pela polícia e isso tem relação com todo um debate de enfrentamento ao tráfico de drogas, a uma estrutura racista para lidar com a criminalidade e uma percepção de ‘bandido bom é bandido morto’ em que a atuação policial tem na letalidade uma justificativa”, analisa a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Sofia Reinach.

Com relação apenas aos dados de 2020, a pesquisa conseguiu obter dados de 24 unidades federativas (com exceção de Bahia, Goiás e Distrito Federal) cuja soma de mortes pela polícia foi de 787 vítimas de 10 a 19 anos (os 736 são de 18 estados) e 5186 das demais causas. Em uma proporção das mortes violentas nos 24 estados, São Paulo lidera o índice, com 44% desses homicídios praticados pela polícia. Reinach aponta que a alta taxa reflete tanto a presença registros mais qualificados sobre essa faixa etária quanto a existência de uma cultura que corrobora a letalidade.

O Oficial de Monitoramento e Avaliação da Unicef no Brasil Danilo Moura argumenta que os meninos negros sofrem mais por não terem a sua infância e juventude reconhecidas e o trato é diferente pelas forças de segurança. “O menino branco de 15 anos é um menino, o menino negro não, é tratado como um homem, como um risco, e se envelhecem corpos negros em que a morte é o último grau de violência das que acontecem antes, com a desigualdade social, com a falta de acesso a serviços públicos”, critica. “Os policiais não são treinados para lidar com adolescentes”.

O levantamento não contém dados sobre crianças e adolescentes com deficiência nem transgêneros. Moura aponta que existe uma dificuldade de obtenção dessas informações nas secretarias de Segurança dos estados. “São dados que não estão padronizados e de forma geral são dois perfis que não se têm registros específicos, cabendo às organizações sociais a levantarem esses dados de forma individual, caso a caso, mas é importante e deveriam existir”, afirma.

Para Reinach e Moura, é preciso reforçar os mecanismos de controle da atividade policial e também investir nas redes de apoio a crianças e adolescentes, como os conselhos tutelares, para que possam intervir antes que uma situação chegue ao extremo da violência, que é a morte. “É preciso que exista esse olhar para crianças e adolescentes, não normalizar as mortes e é fundamental que os profissionais atuem e sejam cada vez mais capacitados, trabalhar com as polícias para investir em protocolo e treinamento, fortalecer as corregedorias e propiciar melhores salários e condições de trabalho”, destaca a pesquisadora.

“Os conselhos tutelares estão há alguns anos sem recursos e esses atores que estão na ponta são fundamentais para garantir a proteção de crianças e da mesma forma que professores, enfermeiros dos postos de saúde, esses profissionais precisam ser treinados para reconhecer sinais de violência para atuar quando forem identificados”, enfatiza o oficial da Unicef.

O estudo também apontou que o meio mais empregado nas mortes é a arma de fogo, inclusive contra crianças de até nove anos. Em 2020, esse instrumento foi utilizado em 85% das mortes de meninos de 10 a 19 anos e em 67% de meninas dessa faixa etária. Para os pesquisadores, o número tem relação direta com a facilidade do acesso às armas pela população, que se ampliou com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido). “É uma piora na violência urbana e na violência doméstica, porque quanto mais arma de fogo nas casas, maior o risco de uma violência se tornar letal”, pontua a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Meninas de 0 a 17 anos são 86% das vítimas de estupro

Se as mortes violentas atingem mais os meninos, no caso de violência sexual, as meninas são 86% das vítimas de estupro em 2020. Em um ano marcado pela pandemia, os pesquisadores entendem que a redução dos números representam, na verdade, uma subnotificação dos casos, já que os meses de abril e maio foram os mais restritivos no ano passado e que representaram os menores índices, tendo em vista que de 2017 a 2020, em 67% dos casos o crime acontecia na casa da vítima. “Foram aqueles primeiros meses em que as pessoas ficaram em casa, as crianças não estavam indo para a escola e não tinham contato com mais ninguém além do núcleo familiar, além de que as pessoas não sabiam se muitos serviços estavam abertos ou fechados ou como acessá-los, então a hipótese é de que não estavam denunciando e registrando os casos”, avalia Danilo Moura, da Unicef.

A idade média das vítimas de estupro que o estudo apontou com maior número de casos nesse intervalo de quatro anos é de 14 anos. Para Moura, a cultura do estupro atinge as meninas assim como as mulheres e que, por isso, a discussão sobre gênero é importante para evitar abusos. “As meninas são sexualizadas mais cedo, existe uma certa normalização de meninas de 12 e 13 anos, que estão no início da puberdade, que são vistas culturalmente como agentes sexuais embora não sejam e isso as deixa mais expostas e vulneráveis”, pontua.

O que dizem os governos

A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo a respeito dos dados relacionados a mortes violentas e letalidade policial, além de casos de estupro.

A pasta encaminhou um release em que cita que o estado tem “as menores taxas de mortalidade entre crianças e adolescentes” e que “as ocorrências de morte por intervenção policial envolvendo crianças e adolescentes caíram quase pela metade entre 2015 e 2020”, mas não menciona sobre a proporção de mortes pela polícia em relação às demais mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, já que das 315 em São Paulo, 140 foram por intervenção policial.

A reportagem também questionou os estados de Bahia, Goiás e Distrito Federal sobre os dados incompletos, mas não teve retorno.