Moradora conta que foi xingada e puxada por policiais na casa da cunhada. Seu irmão levou dois tiros em uma das operações mais letais da história do Rio.
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Na madrugada desta terça-feira, Patrícia socorria o irmão, de 41 anos, quando policiais pediram para entrar e vasculhar a casa dele na Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Encontraram o homem na cama, ensanguentado, com dois tiros – um no tornozelo e outro entre a virilha e o testículo (a família não soube informar ao certo a região atingida). Segundo Patrícia, o irmão estava prestes a perder a consciência, com o corpo frio. Ainda assim, os policiais assustaram a família ao apontar o fuzil para ele.
“Pedi calma. Aí o policial me puxou pela [manga da] camisa e gritou: ‘você está mentindo, sua piranha, vagabunda’”, relatou a moradora. “Avisei que eu era trabalhadora, trabalho com limpeza em um hospital, que não tinha nada a ver com aquilo”.
Os agentes pediram, então, a pistola do irmão. Reviraram a casa, mas, segundo a família, não encontraram nada. Pegaram o celular de Patrícia e perguntaram onde estavam as fotos com armas. “Eu falei que com arma não tinha, só tinha foto com a família”, contou. Ela disse ainda que foi empurrada pelos policiais para o sofá e que a irmã, que chegou depois, nervosa, ouviu uma ameaça de que receberia um jato de spray de pimenta, caso não se acalmasse.
‘Visivelmente a operação conjunta visava eliminar os suspeitos’.
Com a ajuda de vizinhos, a família colocou o homem em uma cadeira de rodas e o levou até o camburão. Enquanto um policial pedia pressa, porque o rapaz estava perdendo sangue, o outro minimizou, segundo ela: “ah, se morrer é só enterrar”. De lá, a Polícia Militar o levou até o hospital Getúlio Vargas, onde passou por uma cirurgia.
Segundo Patrícia, o irmão trabalha em um bar e não tem envolvimento com o tráfico. A polícia alega o contrário. “Dizem que meu irmão era segurança do Abelha [Wilton Carlos Quintanilha, um dos chefes do Comando Vermelho]. Ele não toma conta nem do mel, imagine da abelha”, ironizou.
No começo da noite, enquanto ainda esperava por notícias da cirurgia, a família soube que o irmão havia sido transferido para a Unidade de Pronto Atendimento do Complexo Penitenciário de Bangu, a 25 quilômetros de distância. Não conseguiram visitá-lo, mas souberam que passa bem, sem problemas durante o procedimento cirúrgico.
A segunda chacina mais letal da história
Polícia Militar, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal iniciaram na madrugada de terça-feira, 24 de maio, uma “operação emergencial” para prender líderes do tráfico escondidos no Complexo da Penha. Segundo a PM, os traficantes os receberam com tiros. A operação levou 12 horas e acabou com 22 mortos e cinco feridos. Nesta quarta-feira, o número de vítimas subiu para 24, e moradores acreditam que mais corpos devem ser encontrados, pois haverá uma nova busca. O massacre já é a segunda chacina mais letal da história do estado do Rio de Janeiro, atrás apenas da chacina do Jacarezinho, que completou um ano este mês.
Ontem, por volta das 9h, o advogado Cristiano Vale Britto, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Associação Nacional da Advocacia Criminal do Rio de Janeiro, foi acionado por dois colegas para acompanhar a operação. No local, o advogado relata que encontrou um cenário de guerra. Os moradores, em conjunto com representantes da Defensoria Pública, da OAB e da Assembleia Legislativa, tentavam negociar um cessar fogo para que pudessem resgatar os mortos e feridos – estavam fazendo isso sob tiros, na mata.
Não foram atendidos.
As vítimas eram transportadas de forma precária e chegaram aos montes no Hospital Getúlio Vargas. Os parentes não podiam sequer reconhecer os mortos – tinham que ir direto ao IML. “Tínhamos a sensação de estarmos em uma guerra”, escreveu Brito, em uma nota. Para ele, “visivelmente a operação conjunta visava eliminar os suspeitos”.
“A operação militar foi realizada na madrugada, pela mata, assim como outro grupo subiu por terra, encurralando os suspeitos, e alguns tiveram tiros disparados pelas costas”.
Entre os mortos, estavam Gabrielle Ferreira da Cunha, de 41 anos, que estava em casa quando foi atingida por uma bala, e Nathan Werneck, de 21 anos, que se escondia na área da mata. Pouco antes das quatro da manhã, após ser atingido, o jovem mandou mensagens com sua localização e uma foto avisando: “vou morrer, mano”. Ele foi encontrado às 11 da manhã e levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos.
De acordo com a polícia, o objetivo da operação era prender uma quadrilha de roubos de carros e cargas. A ação foi antecipada ao saberem que os criminosos se preparavam para invadir a favela da Rocinha, na zona sul. “Era um monitoramento para que a prisão fosse feita fora da comunidade, mas não foi feita por um ataque por parte dos criminosos daquela facção a uma guarnição nossa. Então, todo o aparato que era para fazer a prisão do grupo criminoso, que estava se deslocando para outra localidade, foi realizado de forma emergencial”, explicou, em entrevista coletiva, o tenente-coronel Uirá Ferreira, do Bope, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio.
Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que “não é possível considerar exitosa uma operação com resultado morte, principalmente envolvendo a perda da vida de uma pessoa inocente – a senhora Gabrielle”. No entanto, de acordo com a nota, “a operação se fazia necessária”.
O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Rio de Janeiro anunciaram que vão investigar a conduta dos policiais envolvidos na operação. O MPF solicitou informações sobre o número de agentes que participaram da ação e suas qualificações e documentos relacionados à operação. Já o MPRJ solicitou ao Bope averiguação dos fatos, em até 10 dias, com oitivas de todos os agentes envolvidos na ação desta terça-feira.
‘Polícia brasileira é uma das que mais matam no mundo’, diz imprensa internacional após operação em favela do Rio
A operação policial que deixou mais de 20 mortos na terça-feira (24/05) em uma favela do Rio de Janeiro repercutiu na imprensa internacional. Os jornais e sites de emissoras de televisão relatam a indignação da população após o episódio e chamam a atenção para a violência da polícia no Brasil.
O diário também lembra que o episódio acontece um ano depois de outra operação letal, na favela do Jacarezinho, quando 28 pessoas foram mortas, “provocando denúncias de abuso e execuções sumárias”.
A operação na Vila Cruzeiro “provocou indignação e protestos entre os moradores, que disseram se sentir aterrorizados e presos em sua comunidade, e levou a pedidos de uma investigação independente de organizações de direitos humanos e funcionários das Nações Unidas”, relata o canal de televisão Al Jazeera em seu site.
A emissora lembra ainda que a Vila Cruzeiro já havia sido palco de confrontos violentos em fevereiro, quando a polícia matou oito pessoas.
Segundo a Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro, a operação, que durou cerca de 12 horas e provocou o fechamento de escolas e de outros serviços públicos, tinha como objetivo capturar os líderes da organização criminosa Comando Vermelho.
“Os policiais militares, que frequentemente realizam esse tipo de operação matinal nas favelas do Rio contra traficantes de drogas, afirmam terem sido recebidos a tiros’”, relata o canal de televisão francês BFM em seu site.
Mas a emissora pondera essa informação, ressaltando que durante essas operações violentas realizadas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, “moradores e ativistas costumam denunciar abusos e execuções extrajudiciais de suspeitos, em atos que, na maioria das vezes, ficam impunes”.
O jornal norte-americano Washington Post relata que promotores públicos do estado do Rio já abriram uma investigação criminal após o episódio. “Eles deram 10 dias para a polícia militar fornecer detalhes sobre a operação, indicando quais funcionários foram responsáveis por cada morte e a justificativa para o uso da força letal”, explica o diário.
The Guardian lembra que, no início deste ano, a Suprema Corte do Brasil estabeleceu uma série de condições para a polícia realizar batidas nas favelas do Rio, “para reduzir assassinatos cometidos por policiais e violações de direitos humanos”.
O diário britânico explica ainda que “o tribunal decidiu que a força letal deve ser usada apenas em situações em que todos os outros meios tenham sido esgotados e quando necessário para proteger a vida, e deu à polícia 180 dias para instalar dispositivos de gravação de áudio e vídeo em seus uniformes e veículos”.
Reproduzindo informações da imprensa brasileira, o jornal suíço Le Temps aponta que “os policiais do Rio deveriam usar câmeras corporais em seus uniformes a partir de maio”, o que poderia facilitar a investigação.
No entanto, “o uso do equipamento foi adiado devido a atrasos na entrega”, explica o diário, antes de sentenciar que “a polícia brasileira é uma das que mais matam no mundo”, com um balanço de 6.100 mortes registradas em 2021, uma média de 17 por dia.