Israel destruiu um hospital provisório e mantém Gaza com escassez de água, alimentos e remédios. Como manter o distanciamento social quando Gaza é reconhecida hoje como o maior campo de concentração a céu aberto?
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Ilustração de Latuff.
                              Ilustração de Latuff, publicada na conta twitter da US Palestinian Community Network

 

 

O termo “limpeza étnica” utilizado por Ilan Pappé, no livro “The Ethnic Cleansing of Palestine”, 2006, continua a ser uma das maiores, senão a mais clara elucidação do projeto político sionista, quando em 1948, ano da Nakbai, grande parte da população palestina foi sistematicamente expulsa das suas terras, casa por casa, aldeia a aldeia.

Desde o gérmen do movimento sionista, nos seus escritos, hoje amplamente conhecidos, Theodor Herzl propôs no seu projeto a expulsão e a expropriação de terras da população local, do povo palestiniano. Como podemos ver, no seguinte trecho retirado do seu diário, em 12 de junho de 1895 Herzl afirmou: “Devemos expropriar com cuidado”, “tentaremos expulsar a população miserável para além da fronteira (…) negando-lhe qualquer emprego no nosso país (…). Tanto o processo de expropriação como a retirada dos pobres deve ser executada de maneira discreta e circunspecta”.

 

Palestinianos desinfetam as ruas de Gaza. 27 de março de 2020. Foto de MOHAMMED SABER/EPA/LUSA.

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Possivelmente, Pappé, entre outros intelectuais, como Nur Masalha e Walid Khalid, que entendiam o massivo “deslocamento” de palestinianos em 1948 como ações organizadas de expulsão dessa população do seu território, conhecida como “limpeza étnica”, não previram como parte do projeto político de expulsão dos palestinianos o uso de uma pandemia, de um vírus de alcance devastador, como “arma biológica” na execução deste projeto sionista.

De forma alguma adoto uma teoria a qual acuse um governo de produzir um vírus mediante engenharia genética para uma ação direcionada de limpeza étnica. Longe disso, teorias como tais, inclusive, já foram descontruídas por especialistas da área da saúde os quais afirmam que o SARS-COV-2, causador da pneumonia COVID-19, “não é uma construção de laboratório ou um vírus propositadamente manipulado”.ii O meu intuito neste texto é demonstrar como determinadas ações recentes do governo de Israel nos permitem perceber a utilização de um vírus, ocasionalmente disseminado de forma global, como “arma biológica” utilizada no processo de limpeza étnica dos palestinianos em Gaza e na Cisjordânia.

Segundo a World Health Organization – WHO (Organização Mundial da Saúde – OMS), “Os coronavírus são uma grande família de vírus que podem causar doenças em animais ou humanos. Em humanos, sabe-se que vários coronavírus causam infecções respiratórias que variam entra constipação comum e doenças mais graves, como a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) e a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). O coronavírus descoberto mais recentemente causa a doença de coronavírus COVID-19. (…) Este novo vírus e doença eram desconhecidos antes do início do surto em Wuhan, China, em dezembro de 2019.”iii Nesta última semana de março, foram noticiados primeiramente dois casos de COVID-19 em Gaza, que em 30 de março, segundo o Midle East Monitor, saltam para 9, somando o total de 104 casos na Palestina.iv

Uma outra história por contar

Nas últimas semanas, algumas notícias acerca de uma colaboração mútua Israel-Palestina no combate ao vírus, bem como um cessar fogo por parte de Israel, foram amplamente veiculadas em diversos jornais pelo mundo. Todavia, os meios de comunicação social deixaram de lado algumas ações do Estado de Israel fundamentais para o entendimento do argumento em questão.

Recentemente alguns eventos significativos ocorreram que demonstram como Israel segue atuante aproveitando as circunstâncias da pandemia em seu projeto: no dia 26 de março militares israelitas, munidos de uma retroescavadora e camiões destruíram uma clínica comunitária que estava a ser construída na vila palestiniana de Khirbet Ibziq, no Norte do Vale do Rio Jordão, Cisjordânia. O material recolhido pelos camiões tratava-se de lençóis, madeira, um gerador, concreto e cimento que seriam utilizados na construção de uma clínica comunitária de emergência, bem como uma mesquita e abrigos para palestinos expulsos das suas casas devido aos conflitos na região.

No dia 27, aviões israelitas atacaram a Faixa de Gaza, mais especificamente o noroeste de Gaza e o leste da cidade de Jabalya.v Para além disso, assim que se estabeleceu mundialmente a situação de pandemia, o governo israelita fechou os checkpoints e bloqueou a passagem de palestinianos, gerando o isolamento da população. Ironicamente enquanto o mundo vive seu primeiro grande isolamento social, a Faixa de Gaza continua isolada desde 2006, após sofrer bloqueio e sanções por parte do Estado de Israel. A crise agravou-se após a eleição (democrática) do partido Hamas, atual governo de Gaza. Segundo o site Palestine Chronicle, “enquanto a Cisjordânia e Jerusalém estão em quarentena, o Centro Palestino de Direitos Humanos registrou na semana passada que os israelitas realizaram 59 ataques domiciliares e 51 prisões.”vi

Ações como estas, noticiadas quase que exclusivamente por meios de comunicação social árabes e palestinianos, denunciam o uso de Israel do isolamento e do bloqueio como instrumentos no projeto sionista de limpeza étnica. Enfatizo que tais ações são a regra, quando se trata do Estado de Israel e principalmente do atual governo em relação a população palestiniana. Porém, o contínuo dessas ações num momento tão específico de pandemia, deve ser entendido como mais uma violação dos direitos humanos do povo palestiniano. Uma violação planeada, sistematizada, com objetivos claros.

Deve-se considerar também a ausência de informações mediáticas em relação aos conflitos e também aos casos de COVID-19 na Palestina e a complexidade desses números. O renomado site da Johns Hopkins University & Medicine foi alvo de polémicas após retirar do mapa mundial de contágio da doença a identificação “Palestina”, deixando nos dados apenas “West Bank and Gaza”. A destruição do hospital provisório, o bloqueio à Gaza, onde vivem atualmente dois milhões de pessoas altamente dependentes de ajuda humanitária internacional, com escassez de abastecimento autónomo de água, alimentos, remédios, somada à restrição de circulação de palestinianos – mascarada pela condição do isolamento e meios de comunicação social altamente parciais vendendo uma imagem positiva de Israel – são medidas que propiciam maior contágio e menor possibilidade de tratamento adequado dos palestinianos, ocasionando mortes por COVID-19.

Não podemos isolar destas ações o respaldo que o governo israelita recebe do governo de Donald Trump. As relações amistosas entre os Estados Unidos da América e Israel são de longa data, remontam à criação de Israel, no ano de 1947. Deve-se considerar também, acerca dos territórios ocupados, e neste caso do Vale do Rio Jordão, que, recentemente, no projeto de acordo nomeado “Paz para a prosperidade uma visão para melhorar as vidas de palestinianos e israelitas”, chamado também de “Acordo do Século”, dentre as inúmeras propostas, Trump propõe a anexação da região do Rio Jordão pelo Estado de Israel. Na sequência da proposta, veementemente rechaçada pelos palestinianos, pelas comunidades palestinas internacionais e pelo presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, o então primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, fez uma declaração informando que iniciaria o cumprimento proposto no projeto de Trump, a começar pela anexação do Vale do Rio Jordão.

O Covid-19 na terra do confinamento permanente

Por outro lado, devemos considerar que mesmo em condições não ideais, na Palestina os casos são significativamente inferiores aos de Israel. Iniciativas comunitárias e dos governos palestinianos colaboram para a contenção da disseminação do vírus com ações de controle, contenção e isolamento. Israel na data de 30 de março tem 4695 casos e 16 mortes, segundo o próprio Johns Hopkinsvii, o mesmo site noticia que na Palestina existam 116 casos e somente 1 morte (informado como West Bank and Gaza, como já referido anteriormente). Fontes locais informam, inclusive, que as medidas de contenção palestina têm sido mais efetivas que as adotadas pelos israelitas.

Enquanto no mundo são realizadas campanhas pedindo à população que lave suas mãos, na Palestina Ocupada e em Gaza, as restrições vão de abastecimento de água até de atendimento médico, tal como heteronomia na realização de ações solidárias de ajuda médica. Em Gaza, por sua vez, a Deutsche Welle News compartilhou imagens dos moradores fazendo seus próprios vestuários protetivos e voluntários nas ruas utilizando materiais de limpeza em uma tentativa de uma ação coletiva de assepsia de ruas, casas, comérciosviii. Outro problema é a condição dos trabalhadores palestinianos nos territórios ocupados, segundo essa entrevista replicada no site Palestine Chronicle: “Enquanto os israelitas ficam dentro das suas casas, eles estão colocando-nos a trabalhar para que as coisas não entrem em colapso”, disse Kareem, um trabalhador da construção palestino, aoMiddle East Eye, tudo “para salvar a sua economia”.ix

Como é possível lavar as mãos quando o abastecimento de água é precário? Como manter o distanciamento social quando Gaza é reconhecida hoje como o maior campo de concentração a céu aberto? Como é possível seguir as instruções de prevenção de contágio quando dois milhões de pessoas vivem numa pequena faixa de terra, sob cerco militar israelita, com acesso limitado a alimentos e, menos ainda, ao “novo ouro”, o álcool em gel?

Quando o mundo enfrenta 693.224 casos confirmados de COVID-19, 33.106 mortes confirmadas e 203 países afetadosx, isolar palestinianos, bombardeá-los, manter o cerco a Gaza sem o provimento mínimo de auxílio médico, sem o devido abastecimento de água, alimentos, medicamentos assistência médica, etc. tem sido a maior demonstração atual da intenção de limpar as ruas, de limpar a terra para ampliar o projeto sionista, de limpeza étnica.

Por Bárbara Caramuru.


Bárbara Caramuru é doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. Mestra em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná e graduada em História na mesma instituição. Autora da dissertação “La tierra Palestina es mas cara que el oro: Narrativas palestinas em disputa”, 2017, atualmente é coordenadora do Núcleo de Estudos Palestinos Latino-Americano, NEPLA. Adaptação para português de Portugal pelo esquerda.net.

Notas:

i “A ocupação israelita da Palestina ocasionou a Nakbah, a Catástrofe palestina, ocorrida em maio de 1948. Esse processo resultou na expulsão de aproximadamente 80% da população palestiniana do período, o que gerou enormes desdobramentos para o que consideramos a “causa palestiniana”, que dentre outras coisas se define pelo direito a terra, o direito de retorno a Palestina. (HOURANI, 2006; SAID 2012)” (Caramuru, B.T., 2017) Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/53294/R%20-%20D%20%20BARBARA%20CARAMURU%20TELES.pdf?sequence=1&isAllowed=y(link is external) Acessado em: 30 Mar 2020