AS IMAGENS dos protestos do mês passado contra a absolvição de um ex-policial branco acusado de matar Anthony Lamar Smith, em St. Louis, nos Estados Unidos, não trouxeram nenhuma novidade: punhos em riste, cartazes do movimento Black Lives Matter e uma multidão de agentes da tropa de choque da polícia. Porém, na terceira noite de protestos, enquanto prendiam os participantes, os agentes começaram a cantar: “De quem é a rua? A rua é nossa!” – um bordão roubado dos próprios manifestantes e transformado em uma perturbadora declaração de força, privilégio e impunidade.

Manifestantes confrontam a polícia durante protestos em St. Louis. 16 de setembro de 2017Dozens of business windows were smashed and at least two police cars were damaged during a second day of protests following the acquittal of Stockley, who was been charged with first-degree murder last year following the 2011 on-duty shooting of Anthony Lamar Smith. (Photo by Scott Olson/Getty Images)Manifestantes enfrentam a polícia em um protesta contra a absolvição do ex-policial Jason Stockley, em 16 de setembro de 2017, em St. Louis, no estado do Missouri, EUA.

 

Só neste ano, 773 pessoas foram mortas por disparos de policiais nos EUA, segundo o Washington Post.De acordo com fontes independentes, cujas estatísticas levam em conta mortes por outras causas, esse número passa de 900. Nos três últimos anos, depois do assassinato de Michael Brown, em Ferguson, no estado do Missouri, tem havido uma pressão por reformas no governo americano – principalmente por parte da força-tarefa criada pelo ex-presidente Barack Obama, em 2015. Entretanto, assim como o controle de armas de fogo, a violência policial é um debate que não consegue avançar nos Estados Unidos. Um livro publicado na semana passada vai além da retórica reformista para levantar a questão de por que precisamos da polícia.

Em “The End of Policing” (“O Fim da Polícia”, em tradução livre), Alex S. Vitale afirma que as reformas policiais implementadas depois da morte de Brown – iniciativas de promoção da diversidade, policiamento comunitário e câmeras presas aos uniformes dos agentes – não levam em consideração o fato de que a própria instituição policial reforça as desigualdades de raça e classe.

“A repressão aos trabalhadores e a vigilância e o controle rigorosos da vida de negros e pardos sempre foram uma função central da polícia”, escreve Vitale, professor de Sociologia no Brooklyn College.

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Vitale defende uma ruptura com a ideologia predominante da polícia, uma instituição inerentemente punitiva que criminaliza os mais vulneráveis e marginalizados para manter os privilégios da elite branca americana. Como alternativa, escreve ele, as pessoas deveriam ter acesso aos programas e recursos necessários para resolver seus problemas dentro da comunidade, sem o envolvimento da polícia, tribunais e prisões – um passo em direção à materialização da Justiça.

Partindo da “força policial original”, a Polícia Metropolitana de Londres, Vitale descreve sucintamente o contexto histórico da criação da polícia dos EUA, cuja função era controlar as comunidades pobres e não brancas. A guerra às drogas atual tem suas raízes no “oportunismo político e no controle de ‘populações suspeitas’” do século XX; já o policiamento cada vez mais intenso na fronteira mexicana se baseia no sentimento nativista e na exploração econômica de trabalhadores imigrantes – fenômenos iniciados no século XIX. É nessa época que a vigilância e a repressão a movimentos políticos ganharam força na Europa imperialista, onde as autoridades faziam uso da polícia secreta para infiltrar e eliminar a oposição.

The End of Policing” descreve como a polícia se tornou um espectro onipresente na sociedade americana nas últimas quatro décadas. Ela é empregada para monitorar e lidar com uma série de questões: drogas, sem-teto, saúde mental, imigração, segurança nas escolas, prostituição, violência juvenil e resistência política. Em todas essas áreas, as reformas progressistas em curso reconhecem a legitimidade de atuação da polícia, tribunais e prisões. Segundo Vitale, o Estado deveria ir além do sistema carcerário e oferecer alternativas não punitivas que, com o tempo, deixariam a polícia obsoleta. Ele argumenta de forma convincente que uma mistura de programas comunitários, serviços de apoio, regulamentação, investimento econômico e representação política para comunidades mais pobres e não brancas poderia diminuir drasticamente o impacto negativo da polícia, trazendo mais justiça e fortalecendo a autonomia das comunidades.

Nestes tempos em que o presidente dos Estados Unidos apoia e incentiva abertamente a agressividade da polícia – que continua matando americanos negros impunemente –, “The End of Policing” é uma cartilha essencial para desmontar a brutalidade inata dessa instituição e conceber um país livre da violência e controle policiais.

 

Artigo publicado en The Intercept Brasil (17/10/2017)
Tradução: Bernardo Tomasse
Ver aqui entrevista de The Intercept a Alex S. Vitale