Cortinas Fechadas, do cineasta Jafar Panahi, de 54 anos, nascido no Azerbaijão, membro do grupo de elite dos melhores realizadores do provocador cinema iraniano: Kiarostami, Makhmalbaf, Asghar Farhadi, Majid Majidi e Mohammad Rasoulof, este em atual prisão domiciliar. O seu filme que se inicia e termina com as grades de uma vasta janela de casa de veraneio aparentemente aprazível – na verdade grades de uma prisão -, e no qual a tela, sem imagens, se mostra negra à custa de cortinas escuras rigorosamente cerradas, é uma produção dirigida por um prisioneiro político a quem se tenta calar à força.

 

 

 

Há 19 anos Panahi foi apresentado ao mundo, em Cannes, que, encantado, aplaudiu seu lindo filme O balão branco. Colecionador de prêmios importantes em Locarno, Berlim e Veneza, a sua carreira internacional amadurecia quando, na campanha presidencial do Irã de 2009, apoiou publicamente Mir Hussein Mussavi, candidato da oposição. A partir de então a vida do cineasta se transformou em um inferno. O governo de Ahmadinejad invadiu sua casa, ameaçou a família, sua coleção de filmes clássicos foi destruída, o passaporte foi confiscado e Panahi acabou preso. Durante quase três meses fez greve de fome na cadeia e em 2010 foi a julgamento. Depois, foi isolado, condenado a sete anos de prisão domiciliar e ao silêncio artístico. Durante 20 anos está proibido de filmar, conceder entrevistas e viajar para fora do país.

Reduzido a um “mundo de melancolia” como ele diz em declaração feita de contrabando pelo skype para a plateia do Festival de Karlovy Vary, na República Tcheca, ano passado, mesmo assim Panahi fez Isto não é um filme (2011), produzido dentro do seu apartamento em Teerã com a ajuda de colegas corajosos como ele. Agora chega aqui, filmado na sua casa à beira do mar Cáspio, Cortinas fechadas que lhe deu o Urso de Prata de melhor roteiro na Berlinale do ano passado.

Na contramão da maioria da crítica prefiro o segundo. Se o filme proibido anterior era árduo de assistir, pelo confinamento do ator (o próprio Jafar), o fio esgarçado de história e a lentidão do andamento da narrativa, Cortinas mantém, com extrema habilidade, um suspense quase insuportável durante mais de uma hora e meia, tensão exercitada tão somente no sobe-e-desce dos atores dentro da residência de três andares. Excelente filme com um surpreendente roteiro.

Nele, não há explicações mastigadas. Conta o terror de fora vindo do escuro da noite e de algumas vozes que caçam alguém. Ou caçam muitos. São símbolos e metáforas lembrando um pouco a literatura do sul-africano Coetzee.

Chega à casa no meio da noite um homem, um escritor (roteirista como Jafar?) perseguido, ferido e acompanhado do seu cachorro chamado Menino escondido dentro da sacola. No Irã, pela lei do Corão, é interditado manter cachorros em casa.

O homem fecha com todo cuidado as cortinas negras de todas as janelas. Retira Menino da sacola, tomam banho juntos, se alimentam e se instalam, mas de repente, pela porta esquecida entreaberta, entram um rapaz e uma moça também perseguidos. Logo o rapaz desaparece. Vai procurar ajuda, mas não retorna. A moça permanece, azucrina e atormenta o escritor. Até que entra em cena a equipe de filmagem, o codiretor do filme e amigo de Jafar, Kambozia Partovi, e então Panahi passa a protagonista da história. Mas o suspense continua até o último instante pontuado por trilha musical seca e austera: alguns acordes insistentes e sempre inquietantes como os de pesadelo.

“Só as pessoas sem medo podem viver atrás de cortinas fechadas,” escreve o personagem/escritor. Observação óbvia do cineasta. Mas, ele continua: “viver atrás de cortinas fechadas é pior do que se matar”.

Na sua situação claustrofóbica Panahi considera o suicídio uma alternativa? O filme diz que não ao poupar o diretor/personagem de se afogar, serenamente, na cena em que ele próprio, do terraço, contempla a si mesmo adentrando o mar Cáspio para morrer.

Mas nós? Nós suportamos a realidade? “Ninguém pode roubar a realidade” mesmo que ela nos azucrine como a garota/realidade faz com o escritor – é o que volta a anotar o personagem que escreve. O personagem/cineasta acrescenta: “(porque) a vida é apenas feita de lembranças. E há muito mais coisa nela do que apenas trabalhar.”

Discutem-se a qualidade cinematográfica e a avaliação dos filmes proibidos do iraniano visto as condições políticas em que são realizados. Quais são suas propriedades cinematográficas? Às vezes são super e em outras, subestimados.

Em outra esfera, discutem-se os grandes jogos de conquista de poder e riqueza em que se encontram empenhados Estados Unidos e Europa no Irã. Por detrás de sanções, a cobiça imperial. Um percurso que vai do interesse geopolítico às bilionárias reservas de óleo do país dos aiatolás.

Por um lado, o Ministro da Cultura Shamaqdari faz ameaça velada e declara que não sabe até onde haverá paciência, por parte do seu governo, para o comportamento rebelde de Jafar Panahi, que já mandou para o estrangeiro, contrabandeado, o seu primeiro filme proibido em um pendrive escondido dentro de um bolo. E agora este Cortinas, como terá passado pela severa vigilância policial em ação nas fronteiras e aeroportos do país?

Sabe-se, com comprovações cada vez mais frequentes que, assim como todo oriente – distante, médio e próximo -, o Irã é um canteiro onde pulula uma miríade de agentes, espiões e infiltrados ocidentais, num ambiente efervescente onde o objetivo é sempre o mesmo: desestabilizar o país. Sobretudo os que são acobertados por detrás de fachadas de organizações não governamentais ditas ‘humanitárias’. Ou ‘democráticas’.

 O brilhante cineasta iraniano estará sendo manipulado? Terá sido transformado em um dos pivôs desses jogos internacionais de dupla face? Ou é, como tudo indica, a vítima radical, o prisioneiro político silenciado? Hoje, impossível saber.

 O certo é o que o semblante de um cada vez mais triste, muito triste Jafar Panahi apresenta-se na tela de Cortinas fechadas. Ele e seu corajoso amigo ator e codiretor Kambozia Partovi constatam: ”não sabemos o que o futuro reserva para nós.” Nós acrescentamos: nem para o mundo violento que nega a delicadeza, a arte e a política.

Cortinas fechadas é a expressão, em um filme, do homem dolorido.

Por Léa Maria Aarão Reis