Quem, como eu, foi educado durante a ditadura militar aprendeu que aquela Princesa Isabel de caneta dourada na mão concedeu generosamente a abolição da escravatura no Brasil. No máximo, reservava-se um lugar para o mulato José do Patrocínio como mediador do acordo. A cena de José ajoelhado aos pés da monarca e beijando-lhe as mãos ficou como ícone de reconhecimento.

Essa narrativa histórica já foi amplamente contestada pelo Movimento Negro ao reivindicar o protagonismo dos pretos em diversas mobilizações que levariam à Lei Áurea. O documentário A ÚLTIMA ABOLIÇÃO, primeiro filme de Alice Gomes, reúne informações históricas e argumentações sobre essa contranarrativa. Trata-se de associar o afrodescendente não apenas com a herança da escravidão, mas também com o desejo e a luta pela liberdade.

Para isso, Alice e sua colaboradora Luciana Barreto escalaram historiadores, professores e pesquisadores num formato de documentário-palestra coral. Muitos deles e delas foram entrevistados em galpões deteriorados que simbolizam, segundo a diretora, “o abandono do estado em relação à população negra no Brasil”.

 

Apesar de uma certa limitação própria desse tipo de documentário, composto de cabeças falantes, gravuras e fotos de época, A ÚLTIMA ABOLIÇÃO repõe muita coisa nos seus devidos lugares. A conquista da liberdade foi antecedida por numerosas estratégias que escapavam à esfera das elites abolicionistas – das alforrias negociadas às redes anônimas de mobilização de gente comum; da compra da liberdade das filhas para garantir a das gerações futuras ao papel das mulheres no planejamento cotidiano da emancipação. Nem mesmo a revanche da cozinha, mediante o envenenamento de senhores, pode ser descartado dessa “guerrilha” libertadora. É a abolição vista de baixo.

Depois de destacar líderes pretos como André Rebouças, Luiz Gama e Ferreira de Menezes, o filme se liberta da circunscrição ao século XIX. Se o 13 de maio de 1888 foi fruto de lutas internas e pressões externas, o que se seguiu não foi exatamente uma abolição. O lugar do afrodescendente não deixou de ser a margem ou a exclusão. A falácia da democracia racial brasileira passou a encobrir uma situação de desigualdade que se perpetua ainda hoje, em que pese as ações afirmativas e a lei das cotas promovidas pelos governos do PT.

Merecia um pouco mais de destaque a ação da pioneira Frente Negra Brasileira, que, fundada em 1931, transformou-se em partido para combater o racismo e defender melhorias para essa parcela da população. A FNB foi uma das inspirações do Movimento Negro Unificado, cujas ações tiveram importância fundamental nas décadas de 1980 e 90.

 

O dossiê levantado por Alice Gomes, com supervisão artística de Jeferson De, traz a questão até os tempos correntes, com o genocídio de jovens pretos nas cidades. O resgate, portanto, de um ativismo negro no passado, que a História oficial deixou na sombra, não significa negar que o ideário da escravidão, agora não mais formal, continua a dominar o pensamento do estado e das elites do país.

Por Carlos Alberto Mattos