Não há dúvida que foram cometidas atrocidades na Ucrânia, aparentemente, mas não exclusivamente, por forças de ataque russas, e num mundo perfeito, aqueles que agiram desta forma seriam responsabilizados. Mas o mundo é muito imperfeito quando se trata de responsabilização por crimes internacionais.
Richard A Falk
Quando o Tribunal Penal Internacional, em 2020, determinou que tinha autoridade para investigar alegados crimes cometidos por Israel na Palestina ocupada, após árduos atrasos para assegurar que a sua investigação iria ao encontro do mais alto nível de profissionalismo legal, a decisão foi descrita como “puro antissemitismo” pelo primeiro-ministro israelita, e desafiadoramente rejeitada pelos líderes israelitas de todo o espetro político.
Da mesma forma, quando o TPI autorizou a investigação de crimes dos EUA no Afeganistão, a decisão foi denunciada como inválida e injustificada porque os EUA não eram parte no Estatuto de Roma que rege as operações do TPI. A presidência Trump chegou ao ponto de expressar a sua indignação ao impor sanções pessoais ao procurador do TPI, presumivelmente por ousar desafiar os EUA desta forma, apesar de o seu comportamento ter sido inteiramente respeitoso com o seu papel profissional e consistente com os cânones relevantes da prática judicial.
Neste contexto, existe um típico dilema liberal quando confrontado com a clara criminalidade, por um lado, e a pura hipocrisia geopolítica, por outro. Era desejável, após a Segunda Guerra Mundial, processar os líderes políticos e comandantes militares alemães e japoneses sobreviventes à custa de ignorar “legalmente” a criminalidade dos vencedores, porque não havia vontade de investigar o lançamento de bombas atómicas sobre cidades japonesas ou o bombardeamento estratégico de habitats civis na Alemanha e no Japão?
Não tenho a certeza do que é melhor do ponto de vista do desenvolvimento de um Estado de direito global ou da indução do respeito pelas limitações da lei. A essência da lei é tratar de igual para igual, mas a ordem mundial não é constituída dessa forma. Como tem sido sugerido, existe uma “justiça dos vencedores” que impõe a responsabilização dos líderes derrotados nas grandes guerras, mas uma total ausência de responsabilização pelos crimes dos vencedores geopolíticos.
Além disso, a Carta das Nações Unidas foi redigida de forma a dar um estatuto constitucional à impunidade geopolítica, concedendo aos vencedores da Segunda Guerra Mundial um direito de veto incondicional, incluindo, naturalmente, a Rússia. Neste sentido, o liberalismo favorece o realismo geopolítico e celebra a imposição unilateral da legalidade na esperança ingénua de que as coisas sejam diferentes no futuro e que o próximo conjunto de vencedores aceite os mesmos padrões legais de responsabilização impostos aos perdedores.
No entanto, o registo pós-Nuremberga demonstra que os atores geopolíticos continuam a tratar as restrições ao recurso à guerra como uma questão de discrição (o que os liberais americanos chamaram “guerras de escolha” no decurso do debate sobre o início de um ataque de mudança de regime e a ocupação do Iraque em 2003) e não como uma obrigação. No que diz respeito à responsabilização, os dois pesos e duas medidas continuam operacionais, como demonstra a execução irónica de Saddam Hussein por crimes de guerra após a guerra de agressão contra o Iraque.
Outra questão persistente é “porquê a Ucrânia? Desde o fim da Guerra Fria no início dos anos 90, houve outros acontecimentos horríveis, tais como os da Síria, Iémen, Afeganistão, Myanmar e Palestina, no entanto, não houve nenhum clamor comparável no Ocidente pela justiça penal e a ação punitiva. Sem dúvida parte da explicação é que as vítimas ucranianas de abusos são brancas, europeias e cristãs, o que tornou mais fácil para o Ocidente mobilizar os principais meios de comunicação social do mundo, e o correspondente destaque internacional concedido a Volodimir Zelensky, o sitiado e enérgico líder ucraniano que teve um acesso sem precedentes aos cenários mais influentes da opinião mundial.
Não é que a empatia de Zelensky pela Ucrânia ou o apoio à resistência nacional seja descabida, mas sim que tem a aparência de ser orquestrada e geopoliticamente manipulada de uma forma que outras situações nacionais desesperadas não foram, e assim dá origem a suspeitas de outros motivos mais obscuros.
Isto é preocupante até porque estas preocupações, ampliadas, têm propiciado que o Ocidente integrado na NATO se esforçasse em que a guerra ucraniana não ficasse circunscrita ao território deste país. A guerra mais vasta é melhor compreendida a dois níveis: uma guerra tradicional entre as forças invasoras da Rússia e as forças de resistência da Ucrânia, entrelaçada com uma guerra geopolítica global entre os EUA e a Rússia. É a prossecução desta última guerra que apresenta o perigo mais profundo para a paz mundial, um perigo que tem sido largamente obscurecido ou avaliado como uma mera extensão do confronto Rússia-Ucrânia.
Biden tem consistentemente apostado numa estratégia militarista, demonizante e confrontativa na guerra geopolítica, antagonizando deliberadamente Putin, ao mesmo tempo negligencia a diplomacia como a forma óbvia de parar a carnificina e as atrocidades, encorajando, de facto, o prolongamento da guerra no terreno porque a sua continuação é indispensável aos interesses implicitamente superiores da grande estratégia, que é a preocupação central da guerra geopolítica. Quando Biden chama repetidamente Putin de criminoso de guerra que deveria ser processado, e ainda mais quando ele propõe uma mudança de regime na Rússia, ele está a encorajar a guerra ucraniana a continuar enquanto for preciso para produzir uma vitória, e não para se contentar com um cessar-fogo.
Se esta percepção a dois níveis for corretamente analisada na sua apreciação dos diferentes atores com prioridades contraditórias, então é crucial compreender que na guerra geopolítica os EUA são o agressor tanto como na guerra tradicional no terreno é a Rússia. Neste sentido, apesar da sua compreensível raiva e dor, temos de nos perguntar se mesmo Zelensky, com o seu eco russofóbico de acusações de crimes de guerra e apelos à expulsão da Rússia da ONU, não se deixou torcer o braço para apoiar a guerra geopolítica, apesar das suas premissas serem contrárias aos interesses do povo ucraniano.
Poderá a entrega de armas e a ajuda financeira à Ucrânia ter um preço elevado?
Até agora, a guerra geopolítica tem sido travada como uma guerra de agressão ideológica apoiada pelo fornecimento de armas e sanções concebidas para ter um efeito paralisante sobre a vida económica da Rússia. Esta tática levou Putin a lançar contra-ameaças, incluindo avisos sobre a disponibilidade da Rússia, sob certas condições, para recorrer a armas nucleares. Esta normalização do perigo nuclear é, em si mesmo, um facto ameaçador no contexto de um líder autocrático encurralado.
A abordagem dos EUA, embora ciente dos perigos da escalada e tendo tomado medidas até agora para evitar o envolvimento militar direto em nome da Ucrânia, não mostra pressa em acabar com os combates, pois parece acreditar que a Rússia já esteja a sofrer as consequências de ter subestimado grosseiramente a vontade e a capacidade ucraniana de resistir, e será forçada a admitir uma derrota humilhante se a guerra continuar, o que teria o benefício estratégico, além de outros incentivos, de dissuadir a China de se alinhar com a Rússia no futuro.
Além disso, os arquitetos ocidentais desta guerra geopolítica com a Rússia parecem avaliar os ganhos e perdas através de uma lente militarista, sendo manifestamente insensíveis aos seus desastrosos efeitos económicos indiretos, especialmente pronunciados em relação à segurança alimentar e energética nas condições já extremamente stressadas do Médio Oriente, África e Ásia Central, e mesmo da Europa. Como Fred Bergsten argumenta, a estabilidade global da economia mundial está também em grande risco, a menos que os Estados Unidos e a China superem a sua própria relação tensa, e compreendam que a sua cooperação é o único travão a um colapso económico global profundo, dispendioso e prolongado.
A guerra geopolítica também distrai a atenção da agenda urgente das alterações climáticas, especialmente à luz dos recentes indicadores de aquecimento global que faz com que os peritos na questão fiquem ainda mais alarmados. Outras questões de interesse global, como a migração, biodiversidade, pobreza e apartheid, estão de novo a voltar a ocupar um lugar secundário em relação aos desafios políticos globais, enquanto o jogo sociopático da roleta do Armagedão é jogado sem consideração pelo bem-estar e sobrevivência da espécie, continuando a imprudência letal que começou no dia em que a bomba foi lançada sobre Hiroshima há mais de 75 anos.
Para concluir, a pergunta “porquê a Ucrânia?” exige respostas. A resposta padrão do racismo inverso, da hipocrisia moral e do controlo narrativo ocidental não está errada, mas significativamente incompleta se não incluir a guerra geopolítica que, embora não seja agora diretamente responsável pelo sofrimento ucraniano, é de outras perspetivas mais perigosa e destrutiva do que aquela horrível guerra tradicional. Esta guerra geopolítica de “má” escolha é agora travada principalmente através de propaganda hostil, mas também através de armas e mantimentos, enquanto não se mata diretamente fora da Ucrânia.
Esta segunda guerra, tão raramente identificada e muito menos avaliada, está a ameaçar irresponsavelmente o bem-estar de dezenas de milhões de civis em todo o mundo, enquanto comerciantes de armas, empresas de construção pós-conflito e militaristas civis e uniformizados se regozijam. Sendo provocativo, eu diria que é tempo de o movimento pela paz se certificar de que os Estados Unidos perca esta guerra geopolítica. Vencê-la, mesmo persistir nela, constituiria um grave “crime geopolítico”.
Richard Falk é Professor Emérito de Direito Internacional Albert G Milbank na Universidade de Princeton e investigador do Orfalea Center for Global Studies. Foi também relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos dos palestinianos. Este artigo apareceu originalmente no seu Blog.
Fonte: Causa Árabe