Especialista em linguagem infantil, Bahia Amawi é cidadã dos Estados Unidos, onde obteve um mestrado em Fonoaudiologia em 1999. Desde então, ela trabalha com crianças com dificuldades no desenvolvimento da linguagem (ver vídeo abaixo). Amawi nasceu na Áustria e mora há 30 anos nos EUA, fala três línguas fluentemente – inglês, alemão e árabe – e tem quatro filhos americanos.

Ela começou a prestar serviços para o Distrito Escolar Independente de Pflugerville em 2009 – do qual Austin faz parte – na avaliação e apoio a crianças de 3 a 11 anos da crescente comunidade de imigrantes de língua árabe da região. Todo ano seu contrato era renovado sem nenhum problema.

Neste ano, porém, tudo mudou. No dia 13 de agosto, como de costume, o distrito escolar enviou a Amawi o mesmo contrato que vinha sendo assinado anualmente desde 2009.

Mas a fonoaudióloga notou uma nova e surpreendente cláusula: ela deveria declarar “não estar boicotando Israel”, “não vir a boicotar Israel durante o período contratual” e não realizar qualquer ato “com o propósito de penalizar, causar danos econômicos ou limitar as relações comerciais com Israel ou com qualquer pessoa ou entidade que atue em território israelense ou nos territórios controlados por Israel”.

O linguajar da declaração que Amawi precisava assinar para continuar trabalhando parece uma imitação da obra de George Orwell – ou da política macartista. Tal “juramento de lealdade” deveria provocar calafrios em qualquer cidadão americano.

 

Contrato recebido pela fonoaudióloga em que ela devia alegar “não estar boicotando Israel” e “não vir a boicotar Israel durante o período contratual”.Contrato recebido pela fonoaudióloga em que ela devia alegar “não estar boicotando Israel” e “não vir a boicotar Israel durante o período contratual”.

 

Além de não poder boicotar empresas que operam em Israel, Amawi não poderia sequer se abster de consumir produtos de empresas israelenses que operam na Cisjordânia (um “território controlado por Israel”). É possível que ela não pudesse nem manifestar apoio a um boicote, pois isso poderia ser considerado um discurso “com o propósito de penalizar, causar danos econômicos ou limitar as relações comerciais com Israel”.

Independentemente de nossa posição sobre o conflito israelo-palestino, é preciso reconhecer que o boicote como forma de pressão pelo o fim da ocupação israelense é um movimento global legítimo, inspirado no boicote dos anos 1980 contra a África do Sul que ajudou a acabar com o apartheid. O movimento é tão popular que já chegou até ao Congresso americano – dois parlamentares americanos recém-eleitos apoiam-no abertamente – e à grande mídia, onde sionistas como o grupo Peace Now e o escritor judeu Peter Beinart já defenderam o boicote a empresas israelenses que operam nos territórios ocupados.

A declaração em favor de Israel era a única exigência de teor político no contrato enviado a Amawi. Nenhuma cláusula mencionava crianças – proibindo-a de manifestar apoio a pedófilos, por exemplo – nem exigia um juramento de lealdade política ao país onde mora e trabalha: os Estados Unidos da América.

Ou seja, para prestar serviços para o estado do Texas, qualquer cidadão pode criticar e agir contra os interesses dos EUA, defender causas prejudiciais às crianças americanas e até apoiar um boicote a outras unidades da federação, como o que foi organizado contra a Carolina do Norte em 2017 em protesto contra as leis homofóbicas do estado. Para continuar trabalhando, Amawi teria toda a liberdade do mundo para fazer campanha contra seu próprio país, boicotar qualquer estado ou cidade americana e agir contra os interesses de qualquer Estado do planeta – exceto os de Israel.

Amawi acabou não assinando o contrato por motivos de consciência, já que, em conjunto com sua família (e como muitas pessoas no mundo), ela havia decidido deixar de comprar produtos israelenses em protesto contra décadas de ocupação israelense em Gaza e na Cisjordânia.

Amawi é fonoaudióloga e mãe de quatro filhos, e não uma líder política. Ela simplesmente decidiu, como consumidora, apoiar o boicote a empresas israelenses que operam em Israel ou na Cisjordânia. Às vezes ela também participa de atos pacíficos em defesa da autodeterminação dos palestinos, e isso inclui o boicote global pelo fim da ocupação israelense.

 

Amawi conta sua história ao Intercept neste vídeo: Vídeo de Kelly West

 

Por conta disso, Amawi informou sua supervisora de que não poderia assinar o contrato. “O que minha posição política pessoal [sobre Israel e a Palestina] tem a ver com meu trabalho como fonoaudióloga?”, pergunta ela em uma reclamação endereçada ao distrito escolar.

Sua supervisora prometeu procurar uma maneira de contornar o problema, mas acabou concluindo que não havia saída: ou ela assinava o termo de compromisso, ou o distrito estaria legalmente impossibilitado de contratá-la.

Até onde se sabe, Amawi é a única fonoaudióloga infantil do distrito que fala árabe. Consequentemente, a não renovação de seu contrato pode deixar dezenas de crianças com dificuldades de fala sem o acompanhamento de um profissional.

O termo de compromisso “anti-BDS” (sigla da campanha global por sanções contra Israel) foi incluído no contrato de Amawi depois da entrada em vigor de uma lei estadual que tratava especificamente de Israel. Aprovada pelos deputados (por 131 votos a 0) e senadores texanos (25 votos  a 4) no dia 2 de maio de 2017, ela foi sancionada dois dias depois pelo governador republicano Greg Abbott.

O texto da lei é tão abrangente, que algumas vítimas do furacão Harvey, que devastou o sudoeste do Texas no fim de 2017, ficaram sabendo que só receberiam ajuda caso se comprometessem a nunca boicotar Israel. A exigência deixou as vítimas desesperadas e confusas, sem saber o que suas opiniões sobre Israel e a Palestina tinham a ver com o direito a receber assistência do governo de seu próprio país.

O Texas foi o 17º estado americano a proibir o apoio de prestadores de serviços ao boicote contra Israel. Hoje em dia, leis como essa já existem em 26 estados – inclusive em redutos democratas como Nova York, Califórnia e Nova Jersey –, e estão sendo debatidas em outros 13.

Este mapa criado pela Palestine Legal mostra até que ponto os juramentos de lealdade a Israel se disseminaram nos EUA. Os estados em vermelho já dispõem de leis antiboicote, e, nos estados em azul-escuro, há projetos de lei similares em tramitação. Já nos estados em cinza, não há legislação sobre o tema.

 

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Fonte: Palestine Legal

 

A grande maioria dos cidadãos americanos, portanto, está oficialmente proibida de apoiar um boicote contra Israel, sob pena de sanções ou limitações impostas por seus estados. E os (relativamente) poucos americanos que ainda estão livres para formar uma opinião sobre esse polêmico debate sem ser punidos podem perder essa liberdade em breve, quando a censura chegar a seus estados.

Uma das primeiras unidades da federação a impor essas restrições à liberdade de expressão foi Nova York. Em 2016, o governador democrata Andrew Cuomo decretou que todos os órgãos estaduais sob seu controle rompessem contratos com empresas ou organizações pró-boicote. “Se você boicota Israel, Nova York vai boicotar você”, tuitou Cuomo, repetindo a ameaça que fizera anteriormente em um artigo publicado no Washington Post.

Seguindo os passos de Cuomo, dos republicanos do Texas e de vários outros governos estaduais de ambos os partidos, o Congresso dos EUA, pressionado pelo Comitê Israelense-Americano de Assuntos Públicos, já está considerando leis de abrangência nacional para punir americanos pelo delito de boicotar Israel. Em julho do ano passado, um grupo de 43 senadores – 29 republicanos e 14 democratas – manifestou apoiou à chamada “Lei Antiboicote de Israel”, proposta pelo senador democrata Benjamin Cardin. Se o projeto de lei for aprovado, a participação em qualquer boicote internacional contra Israel será crime.

Quando a União Americana de Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) emitiu um comunicado condenando veementemente a proposta de Cardin, considerada pela entidade um ataque aos direitos fundamentais de liberdade de expressão, “punindo indivíduos apenas por suas crenças políticas”, vários senadores retiraram seu apoio.

Mas agora, como noticiado pelo Intercept na semana passada, uma versão modificada do projeto de lei voltou ao Congresso e pode ser votada antes do fim do mandato atual. “Cardin está tentando incluir uma lei antiboicote em um projeto orçamentário no apagar das luzes do mandato”, diz a reportagem.

A ACLU também condenou o novo projeto de lei, afirmando que “sua intenção, assim como a das leis estaduais em que está baseada, contraria o espírito e a letra do princípio de liberdade de expressão e associação garantido pela Primeira Emenda.” A organização chegou a publicar um apelo à população para pressionar o Congresso a rejeitar o projeto de lei.

 

“Seria ilegal decidir que apenas progressistas – ou conservadores – possam receber o seguro-desemprego. É evidente a natureza inconstitucional da atitude do governo do Texas no caso de Bahia Amawi.”

 

“A nova versão da lei deixa claro que as pessoas não podem ser presas por participar de um boicote, mas deixa uma brecha para sanções financeiras contra quem participar ou promover um boicote contra Israel”, afirma a ACLU.

É difícil imaginar um ataque mais perigoso do que esse à livre expressão de ideias. Tanto à esquerda quanto à direita, ninguém que se diz defensor da liberdade de expressão pode silenciar diante de uma agressão tão clara e concertada contra direitos tão básicos.

Algumas pessoas fazem uma ideia errada da Primeira Emenda, dizendo que ela proíbe apenas que o Estado puna um indivíduo por se exprimir, mas não impede o condicionamento de ajudas estatais e a contratação de serviços à não expressão de certas opiniões. Com raras e restritas exceções, a Justiça americana já determinou repetidas vezes que a Primeira Emenda proíbe essa prática. Seria ilegal, por exemplo, decidir que apenas progressistas – ou conservadores – possam receber o seguro-desemprego. Portanto, é evidente a natureza inconstitucional da atitude do governo do Texas no caso de Bahia Amawi.

Imaginem que, em vez de ser obrigada pelo Estado a prometer não boicotar Israel para continuar trabalhando, Amawi fosse forçada a jurar nunca defender a causa LGBT; não se envolver em campanhas e organizações contrárias ou a favor do desarmamento (como a Associação Nacional de Rifles) ou do aborto (como a Planned Parenthood); nunca assinar veículos como o Vox ou o Daily Caller ou jamais participar de boicotes contra Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba ou Rússia por discordar das políticas desses governos.

Em vários desses casos, a atitude tirânica do governo seria clara para todos os lados do espectro político. Lara Friedman, presidente da Fundação para a Paz no Oriente Médio, alerta: “O mesmo princípio poderia ser reaproveitado para excluir indivíduos e grupos ligados a qualquer causa ou organização política – seja ela de direita ou de esquerda – julgada indesejável pela maioria parlamentar ou pelo chefe do Executivo.”

“Boicotes econômicos com o objetivo de produzir mudanças políticas estão enraizados na história americana, a começar pelo boicote da colônia ao chá britânico. Mais tarde, a estratégia foi usada pelo Movimento por Direitos Civis em seu combate contra o racismo. A Suprema Corte já reconheceu que boicotes não violentos em nome dos direitos civis constituem ‘uma forma de discurso ou conduta que está sob a proteção da 1ª e da 14ª Emenda’”, explica o texto da ação judicial de Amawi.

Como se pode justificar que, como condição para trabalhar com crianças com atraso de desenvolvimento e problemas de fala, Amawi seja coagida pelo Estado a contrariar sua própria consciência e crenças políticas comprando produtos de um país que ela – e a ONU – acredita estar violenta e ilegalmente ocupando territórios que não lhe pertencem? Concordemos ou não com sua posição política sobre o conflito israelo-palestino, todo americano que acredita minimamente na importância da liberdade de expressão deveria condenar este ataque contra os direitos de Amawi e de outros americanos oprimidos pela censura pró-Israel.

Apesar disso, uma série de especialistas que sempre posaram de baluartes da liberdade de expressão – como Jonathan Chait, Bill Maher, Bari Weiss e os extravagantes renegados da chamada “dark web intelectual” – silenciam quando a censura é direcionada aos críticos de Israel. Houve algumas exceções, como um tuíte de Chait sobre o projeto de lei de Cardin (“O BDS é terrível, mas criminalizá-lo é insano e inconstitucional”) e uma crítica de Weiss a Israel por impedir a entrada no país de um judeu americano favorável ao boicote.

Por causa de um discurso pró-Palestina, Marc Lamont Hill foi demitido da CNN e ameaçado de exoneração pelo presidente do conselho da Universidade Temple, mas não se ouviu nenhuma palavra de protesto desses intelectuais. Eles também silenciaram quando a Universidade de Illinois cancelou a contratação do professor palestino-americano Steven Salaita pelo “crime” de condenar o bombardeio de Gaza por parte de Israel – uma decisão que acabou custando caro à universidade.

 

“Um verdadeiro defensor da liberdade de expressão também protesta quando os direitos de seus adversários são cerceados.”

 

Como o Intercept já noticiou diversas vezes, as vítimas mais frequentes da censura universitária não são polemistas conservadores, e sim ativistas pró-palestinos. A maior dessas ameaças à liberdade de expressão no mundo é direcionada aos críticos de Israel, sejam eles cidadãos franceses presos por usar camisetas de apoio ao boicote, ativistas canadenses ameaçados de processo ou entidades britânicas proibidas de boicotar Israel.

Trocando em miúdos, para ser digno de crédito, alguém que se diz defensor da liberdade de expressão deve se opor aos constantes ataques contra os direitos de livre expressão e associação orquestrados para proteger o governo israelense de toda e qualquer crítica. Aqueles que se manifestam apenas quando seus aliados são afetados nada mais são do que hipócritas. Um verdadeiro defensor da liberdade de expressão também protesta – e talvez até com mais veemência – quando os direitos de seus adversários são cerceados.

Aqueles que ficam em silêncio enquanto Bahia Amawi é obrigada a renunciar a uma carreira que construiu com muito esforço só por se recusar a trair suas próprias ideias – deixando crianças sem o acompanhamento profissional necessário – podem ser chamados de muita coisa, mas não de “defensores da liberdade de expressão”.