Relatório aponta: conflito iniciado há 21 anos matou ao menos 900 mil pessoas, atingiu 85 países e instaurou vigilância global. Apesar de gastarem US$ 8 trilhões, EUA seguem em declínio geopolítico e tornaram seus adversários ainda mais fortes.

 

“É um gasto absurdo. Deve-se lembrar que equivale a 1 bilhão de dólares ou 5 bilhões de reais por dia. Com estes recursos, seria possível construir e equipar vinte novos hospitais a cada dia, ao longo de vinte anos”. Acostumado ao planejamento das políticas públicas, e observador atento do declínio civilizatório em tempos de tecno-rentismo, o economista Ladislau Dowbor ainda assim alarmou-se ao conhecer os dados revelados pelo projeto Costs of War. Trata-se de um conjunto de estudos, detalhado e abrangente, sobre os custos humanos, políticos e monetários da Guerra ao Terror lançada pelos EUA após os ataques do 11 de Setembro. O dispêndio financeiro já ultrapassou os US$ 8 trilhões que chamaram a atenção de Dowbor. Mas outras comparações reveladoras poderiam ser feitas. Bastariam 15 dias para custear toda a linha 6 do metrô de São Paulo, que está sendo construída num esforço de seis anos e servirá 600 mil pessoas por dia.

Iniciado há mais de uma década no Watson Institute for International and Public Affairs e codirigido por dois pesquisadores da Universidade Brown, o acervo resulta da investigação mais profunda sobre o movimento bélico e geopolítico promovido pelos EUA em todo o mundo há 21 anos. O desastre descrito pela conclusão do estudo é brutal: apesar de 900 mil mortes, e do investimento multitrilionário, os EUA estão mais isolados que há duas décadas. A ordem internacional que defendem tornou-se mais frágil, em parte devido aos ataques às liberdades civis e à vigilância onipresente sobre os cidadãos que marcam a série de conflitos desde seu início

A estimativa da equipe de pesquisa sobre o total de gastos – US$ 8 trilhões – inclui os custos diretos das guerras pós-11 de Setembro lançadas pelos EUA, incluindo o financiamento das Operações de Contingência no Exterior do Pentágono; despesas de guerra do departamento de Estado dos EUA e custos relacionados à guerra de contraterrorismo. Incluem, além do orçamento militar propriamente dito, os cuidados com os veteranos de guerra; os gastos do Departamento de Segurança Nacional; e pagamento de juros sobre empréstimos para essas guerras.

O número de mortos, estimado em 897.000 a 929.000, inclui militares dos EUA, combatentes aliados, combatentes “inimigos”, civis, jornalistas e trabalhadores de ajuda humanitária que foram mortos apenas como resultado direto da guerra. Não inclui, os pesquisadores observaram, as muitas mortes indiretas que a guerra ao terror causou por meio de doenças, deslocamento e perda do acesso a alimentos ou água potável.

“As mortes que contamos são provavelmente uma pequena parte das vidas ceifadas pela guerra”, disse Neta Crawford, cofundadora do projeto e professora de ciências políticas na Universidade de Boston. “É fundamental que prestemos contas adequadamente das vastas e variadas consequências das muitas guerras e operações de contraterrorismo dos EUA desde o 11 de Setembro, enquanto refletimos sobre todas as vidas perdidas”.

“Daqui a vinte anos, ainda contaremos com os altos custos sociais das guerras do Afeganistão e do Iraque – muito depois que as forças dos EUA se forem”, acrescentou Stephanie Savell, codiretora do projeto.

Os novos estudos são lançados um ano após a traumática retirada dos EUA do Afeganistão, onde insurgentes talibãs capturaram todas as grandes cidades e assumiram o controle do governo. Dos US$ 8 trilhões, US$ 2,3 trilhões são atribuídos à zona de guerra Afeganistão/Paquistão, de acordo com o relatório.

Em um discurso à nação em agosto do ano passado, o presidente Joe Biden citou as estimativas do projeto para dimensionar o fardo financeiro e humano da guerra naquele país ao defender a decisão da retirada. “Não tínhamos mais um propósito claro em uma missão aberta no Afeganistão”, disse ele, acrescentando: “Recuso-me a enviar os filhos e filhas dos Estados Unidos para combater uma guerra que já deveria ter terminado há muito tempo”. Apesar de suas palavras, e da perda de Cabul, nada mudou, em essência, no conjunto das operações da “guerra ao terror”.

Mesmo após os EUA saírem do Afeganistão, este “combate” continua em vários continentes. O custo cumulativo da intervenção militar na zona de guerra Iraque/Síria subiu para US$ 2,1 trilhões desde o 11 de Setembro, e cerca de US$ 355 bilhões mais financiaram a presença militar em outros países, incluindo a Somália e um punhado de países africanos.

E quando as guerras terminarem, os custos continuarão a aumentar, observa a equipe do programa: um montante de 2,2 trilhões de dólares do total estimado refere-se às despesas futuras com veteranos, disseram os pesquisadores. Além disso, os EUA e outros países deveriam pagar o custo dos danos ambientais causados pelas guerras para as gerações futuras.

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Cerca de cem estudos compõem o acervo do Costs of War. Eles abrangem assuntos que vão além do custo humano e financeiro. A erosão das liberdades, por exemplo, é tratada em distintos aspectos. Dois textos dedicam-se ao exame da grande rede de vigilância criada após a resposta militarizada de Washington ao 11 de Setembro. Ela atinge os próprios cidadãos norte-americanos. Em 2005, revelou-se que o governo Bush conduziu, por quatro anos, espionagem sobre as comunicações de cidadãos mesmo sem ordem judicial – ao contrário do que estabeleciam, à época, as leis. Em 2008, o cenário tornou-se ainda mais grave, já que decisões do Congresso autorizaram formalmente o FBI a aprovar programas de vigilância eletrônica sobre indivíduos sem sequer necessidade de solicitar a providência a um juiz. Estas ações recaíram sobre movimentos políticos que não tinham o menor vínculo com grupos terroristas, entre eles o Occupy Wall Street.

Mas as violações aos direitos e garantias atingiram muito mais duramente as populações ao Sul do planeta – em especial o mundo árabe. Outro relatório informa que milhares de homens (e muitos meninos) muçulmanos foram enviados ilegalmente a centros de detenção ilegais (e muitas vezes clandestinos) em diversos pontos do mundo. A base de Guantánamo é o caso mais conhecido, mas está longe de ser o único.

Também chama atenção a abrangência global da Guerra ao Terror, que já afetou 85 nações e estendeu-se muito além do Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia e Paquistão – as vítimas principais. Na maior parte dos países, a forma mais comum de ação militar norte-americana são as de “treinamento militar”, que muitas vezes resulta em repressão policial intensificada e ataques às liberdades. É o caso inclusive do Brasil, onde os EUA treinaram as PMs para dissolver (quase sempre de forma muito violenta) os protestos contra a Copa do Mundo de 2014 e influenciaram na aprovação da chamada Lei Antiterrorismo, de caráter claramente autoritário.

 

 

Os documentos abordam muitos outros aspectos do desastre. Há um punhado de megaempresas que lucram (muito) com os conflitos e têm interesse em que eles se perpetuem. São fabricantes de armas (Boeing, Lockheed Martin ou Raytheon, entre outras) ou empresas subcontratadas para mobilizar dezenas de milhares de mercenários. O número de suicídios entre soldados e veteranos, no pós-11/9, cresceu tanto que já é quatro vezes maior que o de soldados mortos em combate. Para combater o terrorismo – uma ameaça real –, há alternativas muito mais eficazes que a guerra, mas tanto o lobby do Pentágono como o da vasta rede de relações econômica por trás dele garantem, no Congresso, que elas não sejam adotadas.

Costs of War é um repositório de textos indispensável para compreender um dos grandes dramas de nossa época – e uma das causas do declínio da hegemonia norte-americana. Em 2019, um ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter, revelou um diálogo que manteve com Donald Trump, então à frente da Casa Branca. Trump queixava-se de que a China estava passando à frente dos EUA em diversos terrenos. Carter, então, indagou-lhe: “Sabe quantas vezes, desde 1979, a China esteve em guerra?”. Ele mesmo respondeu: “Nenhuma, e nós nunca deixamos de estar”. Lembrou ainda que dos 242 anos vividos pelos EUA enquanto nação, apenas 16 transcorreram em paz.

A Guerra ao Terror é talvez o exemplo máximo desta atitude, pois, como não se volta a um inimigo concreto, pode se voltar contra qualquer país. Os resultados estão agora mais visíveis que nunca.

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