Na Hungria, estado de emergência por tempo indefinido. Em Israel, vigilância e Parlamento fechado. No Peru, salvo-conduto para policiais e militares matarem. Em diversos países, pandemia é usada para justificar ataques à democracia.

 

Em várias partes do mundo, governos estão aprovando medidas duras de restrição a liberdades individuais para combater o novo coronavírus e proteger os sistemas de saúde do colapso. Mas  um exame mais cuidadoso revela que algumas dessas ações têm um caráter potencialmente perigoso – e, em alguns contextos, são indissociáveis do processo de fechamento de regimes. Assim, se usa o argumento da preservação da vida das pessoas para se dar passos decisivos em direção à morte das democracias.

O exemplo mais recente é a Rússia. Ontem, o Parlamento aprovou um pacote “antivírus” que prevê penas de até cinco anos de prisão para quem disseminar “informações falsas sobre o novo coronavírus”. Na visão do governo Vladimir Putin – que já se prolonga há 20 anos por lá perseguindo a imprensa –, a brecha pode servir para prender jornalistas críticos. Na véspera, o país havia registrado um salto nos casos da covid-19: foram de 1.836 para 2.337. Acontece que, como em muitos lugares, os números russos estão provavelmente subnotificados – e o boom nas confirmações pode ter vindo a calhar para dar impulso à aprovação do pacote. Só mais um detalhe: em meados de março, parlamentares já haviam aprovado uma reforma constitucional que permitirá que Putin dispute reeleições até 2036

Outro ótimo exemplo é a Hungria. Na segunda (30), o Parlamento aprovou uma lei que prolonga indefinidamente o estado de emergência no país dando carta branca a Viktor Orbán, que passa a governar por decreto. Um dos dispositivos mais criticados dessa lei é justamente a punição, com até cinco anos de prisão, de quem publicar informações que “obstruam ou evitem a proteção eficaz da população” – o que também pode ser usado na perseguição da pouca imprensa livre que resta por lá. “Não se pode permitir que o estado de alarme se transforme numa situação extraconstitucional, na qual o governo pode agir sem nenhuma limitação”, constatam Anistia Internacional e outras entidades de direitos humanos.

Uma reportagem do El País contabiliza casos semelhantes na Sérvia e na Turquia. Na Coreia do Norte, o ditador Kim Jong-un resolveu fechar o país por “pelo menos um ano” – e jura que não há casos do novo coronavírus por lá. O bloqueio começou em fevereiro. No Turcomenistão, o ditador Gurbanguly Berdymukhamedov simplesmente baniu o uso da palavra “coronavírus”.

E nós já tratamos longamente aqui de Israel, onde o primeiro-ministro interino Benjamin Netanyahu tem passado, na calada da noite, medidas que ampliam a vigilância sobre os cidadãos e fecham, fortuitamente, tribunais bem no momento em que enfrentaria julgamento por corrupção. Ontem mesmo, organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram que os decretos de ‘Bibi’ têm dificultado o monitoramento de abusos cometidos contra palestinos. E, para complicar, agora o Exército quer substituir o Ministério da Saúde como autoridade sanitária máxima. Há uma diretriz aprovada em 2007 pelo próprio Ministério que dá à Autoridade Nacional de Emergência, vinculada ao Ministério da Defesa, o controle das ações em caso de séria epidemia.

Na América Latina, o Peru está na vanguarda do atraso. No fim de semana, o Congresso aprovou uma lei que dá salvo-conduto a policiais e militares que ferirem ou matarem pessoas sob a justificativa de infração das ordens de isolamento social. É o equivalente deles, em tempos de pandemia, à proposta de Sergio Moro de livrar forças policiais de pagarem por homicídios cometidos por “surpresa, medo ou violenta emoção”…

Chegando ao Brasil, ontem foi um dia marcante para quem teme um avanço autoritário no país. No aniversário do golpe empresarial-militar de 1964, o presidente Jair Bolsonaro comemorou, como era de se esperar de alguém que idolatra torturadores. Para ele, o 31 de março é um “grande dia da liberdade”. O vice-presidente Hamilton Mourão foi bem mais incisivo no Twitter, dizendo que a data marca o momento em que as Forças Armadas “intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população”. Por sua vez, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, escreveu na “ordem do dia” que é lida em quartéis de todo o país que a data é “um marco para a democracia brasileira”.

Felizmente, Bolsonaro não seguiu à risca os exemplos mais extremos da Hungria e de Israel (embora tenha editado um decreto suspendendo a Lei de Acesso à Informação). O presidente brasileiro preferiu imitar Donald Trump, mas perdeu a mão e está isolado e acuado. Nessas circunstâncias, não se sabe o que pode acontecer. Principalmente porque os militares, estes sim, podem querer seguir o exemplo israelense e usar a epidemia de coronavírus para, mais uma vez, “tutelar” o Brasil.

Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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