Apesar de serem localizados e contactados pela guarda costeira italiana e líbia, gravações reveladas pelo The Guardian confirmam a recusa das autoridades em ajudar as embarcações em dificuldades, resultando em centenas de mortes confirmadas.
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Para o The Guardian, o processo italiano “parece mostrar que as autoridades de Roma sabiam que as autoridades líbias estavam ou pouco dispostas ou mesmo incapazes de lidar com os barcos com migrantes no mar".
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Para o The Guardian, o processo italiano “parece mostrar que as autoridades de Roma sabiam que as autoridades líbias estavam ou pouco dispostas ou mesmo incapazes de lidar com os barcos com migrantes no mar”.

O papel da guarda costeira líbia, formalmente, é de intercetar e fazer regressar barcos com migrantes e refugiados com destino à Europa, bem como salvar qualquer pessoa em dificuldades nas suas águas costeiras. Mas as gravações de comunicações entre a marinha italiana e a guarda costeira líbia reveladas pelo jornal britânico confirmam a ausência de resposta aos casos que lhes são passados.

São três mil páginas de transcrições de escutas a telefones de responsáveis da guarda costeira líbia, escutas que integram uma investigação da justiça italiana. Os exemplos de violação de direitos humanos e das regras pelas quais as autoridades devem proceder são extensos.

Um exemplo ocorreu entre 22 e 27 de março de 2017, período onde chegaram vários pedidos de ajuda ao centro de coordenação marítimo de Itália relativos a centenas de pessoas que tinham embarcado em Sabratha, na Líbia, numa série de barcos sem condições. O centro contactou o responsável da guarda costeira líbia, Massoud Abdalsamad. O resultado “foi negativo” repetidamente e, a 29 de Março, o ACNUR (Alto Comissariado da ONU para os Refugiados) confirmou a morte de 146 pessoas, incluindo crianças e mulheres grávidas, descreve o jornal britânico.

Noutro exemplo, a 24 de Maio de 2017, dois barcos provenientes da Líbia com centenas de pessoas começaram a meter água e um deles virou. A guarda costeira italiana recebeu um pedido SOS de pessoas a bordo, e contactou o mesmo oficial. Houve 55 contactos, e nenhuma resposta. Morreram 33 pessoas, segundo o ACNUR.

A 16 de junho do mesmo ano, o pedido de ajuda de dez barcos insufláveis em dificuldades é recebido pelo oficial líbio com as seguintes declarações: “Hoje estamos de folga. É feriado aqui. Mas vou tentar ajudar. Talvez consigamos chegar lá amanhã”. Até ao final dessa semana, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações, morreram 126 pessoas.

Para o The Guardian, o processo italiano “parece mostrar que as autoridades de Roma sabiam que as autoridades líbias estavam ou pouco dispostas ou mesmo incapazes de lidar com os barcos com migrantes no mar, mesmo na altura em que Itália avançava com investigações ao papel de barcos de ONG que as impedia de levar a cabo missões de resgate privadas”, traduz o jornal Público.

Para Ellen van der Velder, responsável para a gestão de operações de salvamento dos Médicos Sem Fronteiras, “o facto de a União Europeia estar a dar prioridade a vigilância de fronteiras sobre operações de busca e salvamento, e estar a dar a responsabilidade da coordenação marítima de uma grande parte do mar ao centro de resgates da Líbia”, havendo registos confirmados de este país colocar os refugiados intercetados no mar em centros de detenção onde são sujeitos a abusos e tortura.

Num relatório de 2019 – “Sem conseguir sair do inferno: políticas da União Europeia contribuem para o abuso de migrantes na Líbia” – a Human Rights Watch denuncia as condições que encontrou nos centros de detenção em Tripoli, Misurata e Zuwara: centros demasiado cheios, comida de má qualidade, pessoas a sofrer de subnutrição, e sem cuidados adequados de saúde, sujeitas a violência de guardas, incluindo espancamentos, uso de chicotes ou choques eléctricos, violência sexual e violações, incluindo de crianças.

Para esta organização humanitária, “a cooperação de migração está a contribuir para um ciclo de abuso extremo”, denunciam. “A União Europeia dá apoio à guarda costeira líbia para interceptar migrantes e requerentes de asilo no mar, que são depois levados para a Líbia onde enfrentam detenção arbitrária, onde enfrentam risco de tortura, violência sexual, extorsão, e trabalho forçado”.

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