O presidente Biden agiu para acabar com a guerra no Afeganistão, mas os procedimentos contra prisioneiros de guerra, incluindo suspeitos do 11 de setembro, continuam

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(AP Photo/Alex Brandon)Créditos da foto: (AP Photo/Alex Brandon)

 

Por Amy Davidson Sorkin

Quando o presidente Joe Biden falou, no mês passado, sobre a necessidade de terminar com as “guerras infindáveis”, ele disse, “eu sou agora o quarto presidente estadunidense a presidir durante a guerra no Afeganistão – dois Democratas e dois Republicanos. Eu não vou passar essa responsabilidade para um quinto presidente”. Mas Biden ainda está presidindo durante um resquício da guerra ao terror, que pode ser chamada de julgamento infindável. Essa é a condenação de Khalid Sheikh Mohammed— a suposta mente brilhante por trás dos ataques de 11 de setembro de 2001 – e quatro outros réus, que voltaram a se reunir em Guantánamo na semana passada pela primeira vez desde o início da pandemia, e que, por anos, têm sido um exercício espetacular de futilidade. KSM, como é conhecido, e os réus, foram detidos há mais de 18 anos atrás; os procedimentos atuais contra eles foram abertos formalmente em 2012, e estão presos nas audiências preliminares desde então. A seleção do júri ainda não está no horizonte, quem dirá um veredito. O juiz, o Coronel Matthew McCall, é, dependendo de como você conta, o quarto, sétimo ou nono a presidir o processo.

Os problemas começaram com a decisão de George W. Bush, em janeiro de 2002, de enviar os suspeitos de terrorismo para Guantánamo. Alguns foram torturados na base; alguns foram torturados em outros locais, como os “locais obscuros” da CIA. Quase 800 pessoas passaram pela prisão. Seus caminhos eram contrastantes. Alguns eram associados à al-Qaeda ou a outros grupos terroristas. Outros foram detidos com base em evidências falsas, em alguns casos como resultado de disputas locais. 22 eram migrantes Uyghur; muitos eram crianças com menos de 16 anos. A falta de cuidado desumana com a qual todos os prisioneiros foram tratados era visível ao mundo, e prejudicou a reputação dos EUA. Diversas Administrações tentaram racionalizar a desordem legal desses anos estabelecendo procedimentos quase judiciais que, finalmente, prejudicaram as tentativas de utilizar o devido processo e fazer justiça.

Logo no início, a administração Bush decidiu que se os prisioneiros em Guantánamo fossem julgados, isso não ocorreria em tribunais cívicos, mas sim perante “comissões militares” recém-formadas. Esse esquema teve atrito com a Suprema Corte, que decretou que elementos chave dele eram inconstitucionais. Em 2009, Eric Holder, o primeiro Advogado Geral de Barack Obama, anunciou que KSM e seus quatro supostos co-conspiradores seriam, ao invés, julgados em um tribunal federal em uma região de Manhattan, perto da cena do crime. Uma condenação de 81 páginas contra os homens foi proferida por um grande júri no Distrito sulista. Republicanos e alguns Democratas trataram esse desenvolvimento não como um triunfo, mas sim como um absurdo. Holder recuou, e a administração Obama começou os procedimentos com base na reformulada lei da comissão militar. Ao mesmo tempo, o Congresso aprovou uma cláusula na Lei de Autorização de Defesa Nacional bloqueando todos os fundos que pudessem ser usados para mover prisioneiros para os EUA – mesmo em função de julgamento ou para cumprir sentença. Essa cláusula foi renovada todos os anos desde então.

Olhando para trás, havia algo muito estranho sobre o frenesi que a ideia de que assassinos em massa acusados poderiam ser julgados em tribunais estadunidenses recebeu – é para isso que servem os tribunais. Pode ser parcialmente explicado pela política do medo no período após o 11 de setembro. Havia uma noção de que as comissões militares seriam rápidas e eficientes. Também, foi amplamente reconhecido que os detidos em Guantánamo tinham sido torturados. Um julgamento legítimo – e justo – evidenciaria isso. Guantánamo foi visto como um local para esconder os crimes do governo. Nesse sentido, a culpa também é um fator.

Mas aconteceu que construir um novo sistema de comissões não foi algo oportuno; algumas das audiências, que consumiam muito tempo, sobre o caso do 11 de setembro, contaram com litigiosidade, com uma abundância de questões não comprovadas na apelação, sobre assuntos básicos como as regras sobre evidências e sobre o acesso de advogados aos seus clientes. Tribunais federais, ao contrário, se provaram muito eficientes na condenação de terroristas, e possuem um histórico extensivo de assuntos confidenciais. E, assim como evidências obtidas sob tortura não são admissíveis em tribunais cívicos, também não deveriam ser admissíveis em comissões militares. (Também não deveriam por motivos de confiança, legitimidade e moralidade) Obama prometeu fechar Guantánamo; ao invés, ele trabalhou nas margens, enviando prisioneiros menos notórios para outros países, diminuindo seus números. Donald Trump parou até mesmo de fazer isso. Agora existem 39 prisioneiros na base (incluindo os réus do 11 de setembro); a maioria está lá há mais de uma década sem qualquer denúncia feita contra eles. Enquanto isso, os procedimentos da comissão militar se arrastam.

Até que o Congresso pare de renovar o banimento da transferência de detidos para esse país, a coisa mais eficaz que a administração Biden pode fazer para concluir de modo mais justo e rápido o julgamento sobre o 11 de setembro, é tirar a pena de morte da jogada. Isso está na sua alçada de poder. A busca pela pena de morte é outro motivo pelo qual o julgamento está demorando tanto; como em tribunais cívicos, procedimentos adicionais devem ser seguidos em casos de pena capital. Por exemplo, o fato de que os homens foram torturados poderia ser introduzido como um fator atenuante no nível do sentenciamento. Algumas das audiências preliminares foram sobre tentativas da defesa de preservar evidências de tortura por esse motivo, o que o governo resistiu contra. Acabar com a pena de morte voltaria com o foco para as quase três mil pessoas que foram mortas no 11 de setembro e reduziria a probabilidade de que Biden deixe um julgamento inacabado para um futuro presidente desconhecido. Fazer isso poderia tornar mais fácil o caminho para acordos – uma confissão de culpa para uma sentença vitalícia.

Um acordo judicial pode parecer como um fim tépido para o que já foi tido como o possível julgamento do século. E isso não fecharia Guantánamo, embora pudesse ajudar. Karen J. Greenberg, diretora do Centro de Segurança Nacional na Fordham Law, e autora do “Ferramentas Sutis”, um novo livro sobre leis e normas após o 11 de setembro, disse na semana passada que a melhor chance de Biden de finalmente concluir o trabalho seria agir agressivamente para garantir que cada prisioneiro remanescente seja acusado de um crime ou transferido para outro país. Alguns desses casos foram considerados como sendo muito obscuros para serem resolvidos com qualquer uma dessas ações, mas após quase duas décadas é hora de tomar essas decisões difíceis. Nossa guerra infindável legal também deve ser encerrada.

*Publicado originalmente em ‘New Yorker‘ | Tradução de Isabela Palhares para Carta Maior