Hashim Thaci, “presidente” do Kosovo, ia a caminho de Washington em 24 de Junho encontrar-se com Trump quando, após mais de dez anos de denúncias, chegou finalmente a notícia de que foi indiciado por crimes de guerra, entre os quais assassínios étnicos e tráfico de órgãos internos das vítimas. Deu meia volta e voltou para casa, aguardando o que acontecerá agora ao processo num tribunal especial de Haia. Thaci é há mais de duas décadas um peão fiel da estratégia NATO, dos Estados Unidos e da União Europeia que destruiu a Jugoslávia, amputou e devastou a Sérvia, assassinou dezenas de milhares de civis, ocupou o Kosovo e voltou a “balcanizar” os Balcãs. Como chefe do Exército de Libertação do Kosovo, organização terrorista “islâmica” que instaurou um Estado mafioso no Kosovo, Hashim Thaci é, por assim dizer, um terrorista “bom”, um gangster do “lado certo”, um atlantista devoto. Com ele será julgada – caso o processo tenha continuidade – toda metodologia da NATO para limpeza étnica, ocupação e “independência” ilegal do Kosovo, incluindo o bombardeamento da Jugoslávia em 1999. 

 

O secretário-geral da NATO com o traficante de órgãos humanos: um quarto de século de aliança

 

 

Quando o presidente norte-americano Bill Clinton lançou 23 mil bombas sobre o que restava da Jugoslávia em 1999 e a NATO invadiu e ocupou a província jugoslava do Kosovo, as autoridades norte-americanas apresentaram a guerra como uma “intervenção humanitária” para proteger a população albanesa, a maioria étnica no território, de um genocídio às mãos do presidente jugoslavo Slobodan Milosevic. Trata-se de uma narrativa que, peça a peça, se vem desmoronando desde então.

Em 2008 a promotora internacional Carla del Ponte acusou o então primeiro-ministro do Kosovo, Hashim Thaci, apoiado pelos Estados Unidos e a União Europeia, de usar a campanha de bombardeamentos norte-americanos como cobertura para matar centenas de pessoas e vender os seus órgãos internos no mercado negro internacional de transplantes. As acusações da procuradora italiana pareceram então demasiado macabras para ser verdadeiras. No passo dia 24 de Junho, porém, Thaci – agora presidente do Kosovo – e nove outros ex-dirigentes do Exército de Libertação do Kosovo (ELK), apoiado pela CIA, foram finalmente indiciados por esses crimes de há 20 anos por um tribunal especial de crimes de guerra em Haia.

A partir de 1996, a CIA e outras agências de espionagem ocidentais trabalharam secretamente com o ELK para instigar e alimentar a violência e o caos no Kosovo. A CIA rejeitara os principais dirigentes nacionalistas do Kosovo em favor de gangsters e contrabandistas de heroína como Thaci e companheiros, recrutando-os como terroristas e membros de esquadrões da morte para assassinar polícias jugoslavos ou qualquer um que se lhes opusesse como “representantes” dos albaneses do Kosovo.

O braço longo da CIA

Como aconteceu desde a década de cinquenta, país após país, a CIA desencadeou no território uma guerra civil suja pela qual políticos e meios de comunicação ocidentais logo responsabilizaram as autoridades jugoslavas. Porém, no início de 1998 até o enviado norte-americano Robert Gelbard qualificou o Exército de Libertação do Kosovo como “grupo terrorista”; e o Conselho de Segurança da ONU condenou os “actos de terrorismo” praticados pelo ELK e também “todo o apoio externo à actividade terrorista no Kosovo, incluindo finanças, armas e treino”.

Logo que a guerra terminou e o Kosovo foi ocupado com êxito pelas forças norte-americanas e da NATO, fontes da CIA elogiaram abertamente o papel da agência no fabrico da guerra civil como episódio para preparar terreno à intervenção da NATO.

Em Setembro de 1998, a ONU informou que 230 mil civis tinham fugido da guerra civil, principalmente através da fronteira com a Albânia, e o Conselho de Segurança aprovou a resolução 1199 determinando um cessar-fogo, a constituição de uma missão internacional de acompanhamento, o retorno dos refugiados e a busca de uma solução política para o conflito. Um novo enviado dos Estados Unidos, Richard Holbrooke, convenceu o presidente jugoslavo Milosevic a concordar com um cessar-fogo unilateral e a introdução de uma missão de “verificação” de dois mil membros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Os Estados Unidos e a NATO, porém, começaram imediatamente a elaborar planos para uma campanha de bombardeamento de modo a “reforçar” a resolução da ONU e o cessar-fogo unilateral da Jugoslávia.

Holbrooke convenceu o presidente da OSCE, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, Bronislaw Geremek, a nomear William Walker, ex-embaixador dos Estados Unidos em El Salvador durante a ditadura e a guerra civil neste país, para chefiar a chamada “Comissão de Verificação do Kosovo” (KVM). Os Estados Unidos contrataram imediatamente 150 mercenários do grupo de segurança Dyncorp para formar o núcleo da equipa de Walker, cujos 1380 membros usavam equipamentos de GPS para mapear as estruturas militares jugoslavas na perspectiva de uma campanha de bombardeamento já planeada pela NATO. O adjunto de Walker, Gabriel Keller, ex-embaixador de França na Jugoslávia, acusou Walker de sabotar a KVM; mais tarde, fontes da CIA admitiram que a KVM foi “uma frente da CIA” para estabelecer uma coordenação com o Exército de Libertação do Kosovo e espiar a Jugoslávia.

A encenação, a NATO e o terrorismo

O incidente que serviu de pretexto para os bombardeamentos e invasão da NATO foi um tiroteio na aldeia de Racak, onde o ELK tinha criado uma base para emboscar patrulhas policiais e enviar esquadrões da morte com o objectivo declarado de matar “colaboradores locais”. Em Janeiro de 1999 a polícia jugoslava atacou a base do ELK em Racak deixando 45 mortos.

Depois do tiroteio, a polícia jugoslava retirou-se da aldeia e então o Exército de Libertação do Kosovo voltou a ocupá-la e forjou uma cena de modo a poder apresentá-la como um massacre de civis. Quando William Walker e uma equipa da KVM visitaram Racak no dia seguinte validaram a história do “massacre” e transmitiram-na para o mundo, tornando-se o padrão da narrativa que justificou o bombardeamento da Jugoslávia e a ocupação militar do Kosovo.

As autópsias realizadas por uma equipa internacional de médicos legistas revelaram vestígios de pólvora nas mãos de quase todos os cadáveres, confirmando que tinham disparado armas. Foram quase todos mortos por várias balas, como é próprio de uma troca de tiros, e não por disparos certeiros como nas execuções sumárias; e apenas uma vítima foi baleada à queima-roupa. Os resultados das autópsias, porém, só foram publicados muito tempo depois e um médico legista finlandês acusou Walker de ter feito pressões para que fossem alterados.

Dois experientes jornalistas franceses e uma equipa de operadores de câmara da Associated Press (AP) contestaram a versão dos acontecimentos em Racak posta a circular pelo ELK e por Walker. O artigo de Christophe Chatelet no Le Monde foi publicado sob o título: “Os mortos em Racak foram realmente assassinados a sangue frio?” E Renaud Girard, veterano correspondente na Jugoslávia, concluiu a sua matéria em Le Figaro com outra pergunta crítica: “O ELK tentou transformar uma derrota militar numa vitória política?”

A NATO ameaçou imediatamente bombardear a Jugoslávia e a França concordou em acolher negociações de elevado nível. Mas em vez de convidar os principais dirigentes nacionalistas do Kosovo para as negociações em Rambouillet, a secretária de Estado norte-americana, Madeleine Albright, voou com uma delegação chefiada pelo comandante do ELK, Hashim Thaci, até então reconhecido pelas autoridades jugoslavas como um gangster e um terrorista.

Albright apresentou aos dois lados um projecto de acordo em duas partes, civil e militar. A parte civil concedia ao Kosovo uma autonomia da Jugoslávia sem precedentes, o que foi aceite por Belgrado. O acordo militar, porém, teria forçado a Jugoslávia a aceitar uma ocupação militar da NATO, não apenas no Kosovo mas sem limites geográficos, deixando efectivamente todo o país sob presença das tropas da aliança.

Quando Milosevic recusou os termos de Albright para a rendição incondicional, os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia alegaram que ele rejeitava a paz, pelo que a guerra seria a única resposta, o “ultimo recurso”. A questão não voltou sequer ao Conselho de Segurança da ONU para ser legitimada, porque Washington e os seus aliados sabiam muito bem que a Rússia, a China e outros países a rejeitariam. Quando o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Robin Cook, disse à secretária de Estado norte-americana que o governo de Londres “tinha problemas com os nossos advogados” relacionados com os planos da NATO contra a Jugoslávia a resposta de Albright foi: “arranjem outros advogados”.

Em Março de 1999, as equipas da KVM foram retiradas do terreno e os bombardeamentos começaram. Pascal Neuffer, um observador suíço da KVM, declarou:

“A situação no território nas vésperas do bombardeamento não justificava uma intervenção militar. Poderíamos, certamente, ter continuado o nosso trabalho. E as explicações dadas à imprensa afirmando que a missão fora comprometida por ameaças sérvias não correspondem ao que eu vi. Digamos que fomos evacuados porque a NATO decidiu bombardear”.

Matança e devastação

A NATO matou milhares de civis no Kosovo e no resto da Jugoslávia ao bombardear 19 hospitais, 20 centros de saúde, 69 escolas, 25 mil residências, centrais eléctricas, uma estação de TV nacional, a embaixada da China em Belgrado e outras missões diplomáticas. Depois de invadirem o Kosovo, as Forças Armadas dos Estados Unidos montaram o acampamento militar de Bondsteel, tornada uma das suas maiores bases na Europa no seu novo território ocupado. O comissário de direitos humanos do Conselho da Europa, Álvaro Gil-Robles, visitou Camp Bondsteel em 2002 e qualificou-o como “uma versão reduzida de Guantánamo”, um sítio secreto da CIA para detenções e torturas ilegais que não podem ser oficialmente admitidas.

Para o Kosovo, porém, as provações não terminaram quando os bombardeamentos pararam. Muito mais pessoas fugiram das bombas da NATO do que da chamada “limpeza étnica” que a CIA montara para preparar terreno aos bombardeamentos. Um total de 900 mil refugiados regressaram a uma província ocupada e destruída, governada agora por gangsters e senhores estrangeiros.

Sérvios e outras minorias do da província tornaram-se cidadãos de segunda classe, condenados a vínculos precários com lares e comunidades onde as suas famílias viveram durante séculos. Mais de 200 mil sérvios, ciganos e de e outras minorias fugiram da ocupação da NATO e do governo do ELK quando estes substituíram a limpeza étnica por eles próprios encenada anteriormente por uma verdadeira e cruel limpeza étnica.

A base militar de Bondsteel tornou-se o maior empregador do território; e os empreiteiros ao serviço dos militares norte-americanos enviaram kosovares para trabalhar no Afeganistão e no Iraque ocupados. Em 2019 o PIB per capita do Kosovo foi de 4458 dólares norte-americanos, o menor de todos os países da Europa com excepção da Moldávia e da Ucrânia, devastada pela guerra decorrente do golpe fascista patrocinado pelos Estados Unidos e a União Europeia.

Uma “sociedade mafiosa”

Em 2007, um relatório da inteligência militar alemã descreveu o Kosovo como uma “sociedade de mafia” onde “o Estado foi capturado” por criminosos. O documento identificou Hashim Thaci, então chefe do Partido Democrata, como o exemplo dos “laços mais estreitos entre os principais responsáveis pelas decisões políticas e a classe criminosa dominante”. Em 2000, 80% do comércio de heroína na Europa era controlada por gangs do Kosovo; e a presença de milhares de tropas dos Estados Unidos e da NATO alimentou uma explosão de prostituição e tráfico sexual, controlados igualmente pela nova classe dominante do Kosovo.

Em 2008, Thaci foi designado primeiro-ministro e o Kosovo declarou unilateralmente a independência em relação à Sérvia, com o apoio tácito dos Estados Unidos e a União Europeia. (A dissolução da Jugoslávia, através da separação entre a Sérvia e o Montenegro, acontecera em 2006). Os Estados Unidos e 14 aliados reconheceram imediatamente a independência do Kosovo e 97 países, cerca de metade das nações do mundo, seguiram os seus passos. A Sérvia e a ONU, porém, não reconheceram a separação, deixando o Kosovo num limbo diplomático a longo prazo.

O traficante-presidente ao encontro de Trump

Quando no passado dia 24 de Junho o tribunal apresentou as acusações sobre tráfico de órgãos humanos e outras acções criminosas contra Thaci este encontrava-se a caminho de Washington para uma reunião na Casa Branca com o presidente Trump e o presidente Vucic da Sérvia para tentar debater o impasse diplomático no Kosovo. Quando as acusações foram anunciadas, porém, o avião deu meia volta sobre o Atlântico, Thaci regressou a casa e a reunião foi cancelada.

As acusações de assassínio e tráfico de órgãos humanos contra Thaci foram feitas pela primeira vez em 2008 por Carla del Ponte, procuradora-chefe do Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia (ICTFY), num livro que escreveu depois de deixar o cargo. Del Ponte explicou mais tarde que o ICTFY foi impedido de formular a acusação contra Thaci e seus co-réus devido à falta de cooperação da NATO e da missão da Missão da ONU no Kosovo. Numa entrevista feita para o documentário The Weigtht of Chains 2, de 2014, Carla Del Ponte explicou que “a NATO e o ELK, como aliados de guerra, não poderiam agir um contra o outro”.

A organização Human Rights Watch e a BBC seguiram as alegações de del Ponte e encontraram provas de que Thaci e os seus companheiros assassinaram cerca de 400 detidos sérvios durante os bombardeamentos da NATO em 1999. Os sobreviventes descreveram campos de detidos na Albânia onde os prisioneiros foram torturados e mortos, um edifício amarelo onde os órgãos das pessoas eram removidos e uma vala comum nas proximidades, não assinalada.

Um investigador britânico de Conselho da Europa, Dick Marty, entrevistou testemunhas, reuniu provas e publicou um parecer que está em poder do Conselho da Europa desde 2011, mas o parlamento do Kosovo bloqueou até 2015 o plano para criação de um tribunal especial em Haia. As Câmaras de Especialistas do Kosovo e o gabinete de um procurador independente começaram finalmente a trabalhar em 2017. Os juízes têm agora seis meses para analisar as acusações do procurador e decidir se o julgamento deve prosseguir.

Nicolas J. S. Davies, Global Research/O Lado Oculto