Michel Temer põe exército a controlar segurança pública da cidade carioca. Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, sublinha que “o sinal de que o exército é a solução para os todos os problemas remete-nos a tempos sombrios”.
Temer assina decreto de intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Foto de Marcelo Camargo/Agência Brasil.

 

Na sexta-feira, o Governo brasileiro decretou uma intervenção federal no Rio de Janeiro, inédita desde a promulgação da Constituição de 1988. Mediante esta medida, assinada pelo presidente da República, Michel Temer, pelo governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o Exército assume a segurança pública no Rio de Janeiro, passando a ter responsabilidade sobre polícias, bombeiros e serviços de informação. O general Walter Braga Neto substitui, na prática, Pezão na área da segurança pública.

Ainda que as medidas previstas tenham efeito imediato, o decreto federal, que se manterá em vigor até 31 de dezembro, terá ainda de ser ratificado pela Câmara dos Deputados, que deve votar esta segunda-feira, dia 19, o documento. A sessão no plenário está convocada para as 19h (hora local).

O anúncio da intervenção federal, posta em prática, alegadamente, para controlar a “onda de criminalidade” no Rio, surgiu sem qualquer debate prévio sobre os seus pressupostos, e no contexto de uma expectável derrota do governo de Temer no que respeita à reforma da Segurança Social. A Constituição Federal não permite a promulgação de qualquer Proposta de Emenda Constitucional na vigência de uma intervenção federal. Contudo, o presidente brasileiro já assumiu que, se assim entender, ou seja, se tal lhe convier, poderá revogar a intervenção para permitir a votação da reforma da Segurança Social, e, após a sua aprovação, voltar a colocar a segurança pública do Rio nas mãos do exército.

Uma “falsa solução” no combate ao crime organizado

Apontado como possível candidato presidencial do PSOL às eleições presidenciais brasileiras, o coordenador nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) afirmou que a intervenção federal “é uma falsa solução” no combate ao crime organizado.

De acordo com Boulos, a “intervenção federal no Rio de Janeiro sob comando de um general escancara as portas para aprofundar a barbárie contra o povo das favelas e comunidades”.

 

 

“A solução para a violência não é militarizar mais. Isso vai apenas aumentar a criminalização da pobreza. Além disso, o sinal de que o Exército é a solução para os problemas sociais e políticos nos remete a tempos sombrios”, escreve o coordenador nacional do MTST na sua conta de facebook.

Para Boulos, a decisão é “muito grave”. Primeiro, “porque não se soluciona a violência militarizando mais”. “Essa estratégia, da guerra às drogas, adotada nas últimas décadas, fracassou. O crime organizado só cresceu com ela. É insistir em algo que não deu certo”, frisa.

Lembrando que “o exército é treinado para combater em territórios inimigos”, Boulos questiona sobre quais são aqui os territórios inimigos: “As favelas, as comunidades?”.

O coordenador nacional do MTST faz referência à proposta do deputado federal Jair Bolsonaro de “metralhar a Rocinha” e lembra que a intervenção do exército no Complexo da Maré em 2014 e 2015 teve um “resultado desastroso”.

“O preço para dar alguma sensação de segurança a alguns setores da sociedade foram vários mortos e muito sangue”, além de que a intervenção não resolveu o problema do crime organizado, assinala.

Por outro lado, Boulos destaca que Temer não tem nenhuma autoridade para apontar culpados pela crise do Rio, já que “os responsáveis por essa crise são os desgovernos do seu partido, o PMDB”

Para o responsável do MTST, o “Rio não precisa de intervenção militar”, o Rio e o país “precisam de políticas públicas, não de falsas soluções”.

“Essa intervenção representa um sinal muito perigoso que pode esvaziar ainda mais o que restou de democracia no nosso país. Criar a ideia de que os militares resolvem tudo pode levar a caminhos muito sombrios. Já vimos esse filme antes, e ele não terminou bem”, alerta Boulos, defendendo que “é preciso travar a intervenção militar”.

 

Intervenção no Rio demonstra o desespero do PMDB

 

O PSOL considera que a intervenção no Rio demonstra o desespero do PMDB. O deputado federal pelo Rio Glauber Braga frisa que a medida de Temer comprova que o atual governador não tem quaisquer condições de gerir o Estado e defende que “os rumos do Rio sejam restabelecidos através da vontade da maioria da população”.

Já a vereadora Marielle Franco lembra que “quem é favelado conhece a violência do Exército e dos militares desde sempre”, sublinhando, contudo, que “o que pode acontecer nos próximos dias ninguém sabe”.

Marielle Franco sinaliza que a medida é resultado da política dos sucessivos governos do Estado: “Primeiro eles geram uma desigualdade violenta e criam uma guerra para exterminar a população pobre e preta, depois usam o discurso do medo para gerar ainda mais violência”.

Para o líder do PSOL na Câmara, Ivan Valente (SP), Michel Temer tenta “tirar o seu governo da lama”, ao desviar a atenção face à derrota que pode sofrer em relação à reforma da Segurança Social .

Para além de “conquistar uma saída para a virtual derrota na reforma da previdência”, o segundo objetivo de Temer passa por “reforçar o caráter repressivo e violento do Estado”, conforme aponta o presidente nacional do partido, Juliano Medeiros.

O deputado Jean Wyllys (RJ) destaca ainda a responsabilidade dos governos do PMDB na situação da segurança do Rio: “As políticas de segurança geridas pelo PMDB nas últimas décadas são diretamente responsáveis pelo estado de calamidade visto hoje, ao delimitar muito bem qual parcela da população têm proteção e políticas urbanas e qual parte da população vive à margem, sob coação das milícias policiais e do crime organizado”.

A 8 de fevereiro, Marcelo Freixo, ex candidato do PSOL à autarquia do Rio, já defendia que “é lamentável o que acontece nas favelas do Rio de Janeiro”.

“Precisamos de uma política de segurança baseada em inteligência e investigação, não de uma guerra irracional. Uma política que garanta segurança e preserve a vida e a dignidade de todos”, vincava.

As executivas do PSOL – Nacional, Rio de Janeiro e Carioca – emitiram, entretanto, uma nota na qual defendem que “a intervenção não é solução” e apresentam medidas efetivas para a saída da crise.

O PSOL aponta que “Pezão não tem mais condições de governar”, exigindo a sua renúncia e a “antecipação das eleições para o governo do Estado do RJ”, e convoca “a população em geral a somar-se aos protestos do dia 19.02 contra a reforma da previdência e também contra a intervenção federal”.

Um perigoso passo para a consolidação e o aprofundamento de um estado de exceção

Em comunicado, a direção do Partido dos Trabalhadores também tece fortes críticas ao decreto federal de Michel Temer.

De acordo com Gleisi Hoffmann, presidenta nacional do PT, Paulo Pimenta, líder do PT na Câmara dos Deputados, e Lindbergh Farias, líder do PT no Senado Federal, a intervenção federal no Rio “pode ser um perigoso passo para a consolidação e o aprofundamento de um estado de exceção no Brasil”.

“Não se pode afastar a relação do agravamento da crise da segurança com o enfraquecimento do estado, falido por conta de um grave ajuste fiscal, promovido pelo governo Temer e intensificado pelo governo estadual do MDB, que afeta, inclusive, verbas para pagamento de policiais e investimentos necessários para políticas de segurança mais eficientes”, escreve a direção do PT.

Por outro lado, os petistas assinalam que “a medida parece ser estabelecida para contornar dificuldades políticas do governo Temer, que enfrenta baixíssima popularidade e muitos obstáculos para aprovar a destrutiva” reforma da Segurança Social.

A direção do PT afirma que “o governo golpista não está realmente preocupado com a segurança da população, mas apenas com sua sobrevivência política”, defendendo que “ o povo brasileiro, principalmente o povo mais pobre, exige e merece a participação responsável do governo federal na Segurança Pública, com programas sólidos e políticas eficazes, mas repudia ações pirotécnicas de efeitos meramente propagandísticos”.

Abriu a “temporada das chantagens cooperativas e das negociatas da segurança”

As críticas ao decreto federal surgem também de vários especialistas. Em entrevista à Globo News, Jaqueline Muniz, professora especialista em Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, recorda que, desde 1992, têm existido formas diretas e indiretas de intervenção das forças armadas na segurança pública, dando o exemplo das operações na Rocinha e na Maré, sobre as quais não existiram quaisquer relatórios que suportassem a ação militar.

Em causa está, segundo Jaqueline Muniz, uma “teatralidade operacional que tem rendimento político, eleitoral e mediático mas pouco efeito no quotidiano”.

A especialista refere que as próprias forças armadas “têm plena consciência da sua incapacidade de agir como polícia”, ao ponto de reivindicarem “um salvo-conduto, uma proteção através de um decreto que transfere os seus erros para a justiça militar”.

 

Jaqueline Muniz questiona também o momento em que é decretada esta intervenção federal, já que foi apresentado há menos de uma semana um plano integrado de segurança pública que não chegou a ver, praticamente, a luz do dia, e que o Ministério Público e o defensor público do Rio de Janeiro têm vindo a reclamar, desde há muito, um conjunto de mudanças na estrutura da segurança pública que não foram acolhidas até à data.

A especialista questiona o que tem vindo a ser feito para combater o crime organizado, referindo que “não existe crime organizado não tenha chancela, convivência, conivência e conveniência com setores do Governo”, e lembra que a polícia civil do Rio foi intencionalmente limitada no seu trabalho de investigação e na sua atividade de perícia.

“Se existe uma intervenção porque o Rio de Janeiro está ingovernável, se é essa retórica” que querem utilizar, então “é fundamental que se promova uma auditoria imediata na polícia militar para saber em que estado ela está e foi precarizada, o mesmo na polícia civil, o mesmo nos serviços prisionais e no corpo de bombeiros”, defende.

Jaqueline Muniz afirma que “muita gente vai ganhar” com a intervenção federal: “O crime organizado agradece, o PCC agradece, os falsos profetas da segurança pública e os mercadores da proteção”.

“Abriu a temporada das chantagens cooperativas e das negociatas da segurança”, remata.

ARTIGO ATUALIZADO por esquerda.net ÀS 13H30 DE 19.02.2018.