Na noite mais fria do ano os bulldozers israelitas expulsaram a família Salhiya de casa. É parte de uma nova fase de apropriação do espaço palestiniano, não apenas através de atos militares ou de planeamento urbano de larga escala, mas do uso de políticas de planeamento nos espaços urbanos de pequena escala. .
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Bulldozer destrói a casa da família Salhiya em Sheikh Jarrah, Jerusalém. Foto de ABIR SULTAN/EPA/Lusa.
   Bulldozer destrói a casa da família Salhiya em Sheikh Jarrah, Jerusalém. Foto de ABIR SULTAN/EPA/Lusa.

 

Haim Yacobi e Irit Katz.

Uma oliveira do meu jardim é melhor do que qualquer outra coisa material em todo o mundo.”

Estas palavras tristes foram murmuradas por Mahmoud Salhiya depois de a sua casa em Sheikh Jarrah ter sido recentemente demolida por forças israelitas.

Sheikh Jarrah é um bairro palestiniano de 3.000 habitantes na zona leste da Estrada 1 que corta Jerusalém de norte para sul e separa os setores israelita e palestiniano. O bairro tem duas partes distintas: o norte é habitado pelos palestinianos mais ricos, enquanto que a parte sul, mais pobre, é povoada por centenas de refugiados palestinianos de 1948.

A casa da família Salhiya é na zona sul de Sheikh Jarrah num terreno destinado por um velho esquema urbano, aprovado nos anos 1980, para a construção de um edifício público. Mas parte da casa já existia, assim como outras estruturas, quando o plano estava a ser concebido. De facto, a casa e os outros edifícios são já visíveis em mapas de Jerusalém dos anos 1930.

É importante sublinhar que, de acordo com o próprio município de Jerusalém, as casas palestinianas construídas em Jerusalém Leste antes de 1967 são consideradas legais e não podem assim ser demolidas. Mas o zoneamento do terreno de Salhiya para uso público – que ignorou o facto da propriedade residencial já existir no local – é indicativo de uma prática comum que tem caracterizado o planeamento israelita de Jerusalém Leste desde 1967.

As autoridades israelitas alegaram que a propriedade dos Salhiya tinha sido expropriada para construir uma escola de “necessidades especiais” para benefício dos vizinhos. Mas este planeamento de “cima para baixo” não incluiu qualquer auscultação à família ou à comunidade.

A demolição como ferramenta de controlo

As notícias indicam que a polícia chegou à propriedade nas primeiras horas daquela que foi uma das noites mais frias deste inverno até agora e retirou à força 15 membros da família Salhiya antes de demolir a casa. Prenderam Mahmoud Salhiya e cinco membros da sua família, bem como alguns dos seus apoiantes, tanto palestinianos quanto ativistas israelitas.

Este acontecimento traumático é parte de uma tentativa em curso de afastar palestinianos das suas casas – não apenas em Sheikh Jarrah mas também em outros bairros como em Silwan, nos arredores da Cidade Velha, que tem sido fonte de um contínuo conflito entre os colonos judeus e a comunidade palestiniana local sobre arqueologia, desenvolvimento do turismo e habitação.

As demolições de habitações tornaram-se frequentes. De acordo com um relatório da B’tselem (o centro de informação israelita para os direitos humanos nos territórios ocupados) entre 2006 e novembro de 2021, as autoridades israelitas demoliram pelo menos 1.176 habitações palestinianas em Jerusalém Leste. Pelo menos 3.769 pessoas perderam as suas casas – incluindo 1.996 crianças. A demolição de habitações está ao serviço da tentativa de Israel de controlar o “equilíbrio demográfico” da cidade – mantendo uma maioria judaica dentro do território municipal de Jerusalém de volta na proporção de 70/30, que é o que tem sido impulsionado pela política israelita desde 1967.

Uma geopolítica urbana emergente

 

 

O caso da família Salhiya deve ser compreendido dentro do contexto mais vasto dos processos políticos que estão a decorrer em Jerusalém desde junho de 1967 e da declaração da cidade como a capital unificada de Israel. A expropriação de terrenos palestinianos pelo Estado através de medidas legais foi central para a colonização de Jerusalém Leste nesta etapa.

O planeamento urbano contribuiu ainda mais para a colonização da cidade e caracterizou-se pela construção de colonatos (bairros satélite). Desde 1967, Israel expropriou mais de um terço das terras palestinianas que foram anexadas aos novos limites do município de Jerusalém – 24,5 quilómetros quadrados – a maior destes sendo propriedade de palestinianos. 11 bairros apenas para habitantes judeus foram aí construídos.

De acordo com a lei internacional, o estatuto destes bairros é o mesmo dos colonatos ilegais de Israel na Cisjordânia. Como passo complementar, foi desenhada uma série de planos que limitaram efetivamente o crescimento dos bairros palestinianos ao limitar os direitos de construção e ao definir os terrenos palestinianos como não adequados para construção de habitação.

O início do século XXI marcou uma viragem para um política mais radical em Jerusalém com a construção de uma barreira de separação. Isto permitiu que Israel anexa-se de facto mais 160 quilómetros quadrados dos Territórios Ocupados.

A rota desta barreira cria uma divisão acentuada entre a cidade murada de Jerusalém e o interior palestiniano. A barreira de betão impede deliberadamente a integração funcional dos bairros palestinianos e isola-os do seu interior na Cisjordânia.

A construção da barreira de separação colocou a grande maioria do território e recursos da área metropolitana de Jerusalém sob controlo judaico. Os palestinianos estão confinados aos seus enclaves desarticulados, sem soberania, liberdade de movimento, controlo sobre os recursos naturais ou continuidade territorial.

Micro-colonização

Os recentes acontecimentos em Sheikh Jarrah marcam claramente a fase atual da colonização de Jerusalém. Trata-se de uma apropriação em micro-escala de território palestiniano acompanhado por despejos e deslocamentos dos palestinianos que ainda permanecem na cidade. As casas palestinianas são demolidas ou colonizadas pelos colonos como aconteceu nos casos de Silwan ou Sheikh Jarrah, enquanto os terrenos agrícolas são confiscados aos seus proprietários palestinianos – como no caso de Walajeh onde a barreira de separação cerca a vila e corta o acesso dos habitantes à maioria das suas terras.

Esta é uma nova fase de apropriação do espaço palestiniano não apenas através de atos militares ou do planeamento urbano de larga escala (como os acima descritos) mas agora através do uso de políticas de planeamento nos espaços urbanos de pequena escala. Isto incluiu a mudança dos usos dos solos, o planeamento para o aparente “bem público” (como a tentativa de construir uma escola na propriedade dos Salhiya em Sheikh Jarrah), o desenvolvimento de infraestruturas e de empreendimentos turísticos. Há ainda uma clara discriminação na distribuição de licenças de construção. Apesar de 38% dos residentes serem palestinianos, apenas 16,5% das licenças de construção foram atribuídas em bairros palestinianos. Desta forma, Jerusalém tornou-se um modelo de como se utilizam dispositivos “banais” como o planeamento urbano para reforçar a dominação israelita desta cidade dividida e contestada.


Haim Yacobi é professor de Planeamento Urbano no University College de Londres.

Irit Katz é professora de Arquitetura e Estudos Urbanos da Universidade de Cambridge.

Texto publicado originalmente no The Conversation . Traduzido para o Esquerda.net por Carlos Carujo.