OS ATAQUES TERRORISTAS e as emoções que desencadeiam quase sempre ensejam clamores por restrições a direitos fundamentais em nome da prevenção a futuros ataques. Já virou rotina: as vítimas dos terríveis atos de violência são a prova de que é preciso impor limites à divulgação da ideologia que levou o assassino a agir, qualquer que ela seja.

Em 2006, na esteira de uma série de ataques perpetrados por muçulmanos, o político norte-americano Newt Gingrich, do Partido Republicano, convocou “um sério debate sobre a Primeira Emenda [à Constituição dos EUA]”, a fim de que “aqueles que não combatem sob o Estado de Direito, que ameaçam usar armas de destruição em massa ou que atacam alvos civis estejam sujeitos a um conjunto totalmente diferente de regras”.

Trecho de reportagem do jornal The Sun:

”Gingrich: Liberdade de expressão deve ser cerceada para combater o terrorismo. Ex-presidente da Câmara, Newt Gingrich, vem causando alvoroço com a proposta de restringir a liberdade de expressão para combater o terrorismo.”
O ex-presidente da Câmara dos Representantes dos EUA alegou que os radicais islâmicos não acreditam na Constituição nem na liberdade de expressão, e que os EUA deveriam, portanto, “usar toda a tecnologia possível para acabar com sua capacidade de acessar a internet e de se valer da liberdade de expressão, para perseguir aqueles que querem nos matar, para impedir que continuem recrutando mais pessoas”. Em um artigo em defesa da sua posição, Gingrich argumenta que “não deveria ser aceitável usar a liberdade de expressão como proteção para pessoas que planejam matar outras pessoas, que, por sua vez, possuem seus próprios direitos inalienáveis”. Acrescenta ainda que “o fato é que nem todo tipo de discurso é permitido à luz da Constituição”.

A violência de nacionalistas brancos em Charlottesville levou a raciocínios semelhantes. Pesquisas de opinião e evidências anedóticas vêm mostrando há tempos um desgaste da crença na liberdade de expressão entre os jovens norte-americanos, inclusive os que se definem como liberais ou esquerdistas. O que aconteceu em Charlottesville instigou um debate de larga escala sobre a importância de se preservar o direito ao “discurso de ódio”, seja qual for a definição deste.

Em excelente artigo publicado na segunda-feira no Guardian, Julia Carrie Wong analisa as consequências desse desejo crescente nas alas liberais e esquerdistas de restringir o “discurso de ódio” — seja pela ação do Estado a partir de leis que vetem esse tipo de expressão, seja via executivos de empresas de tecnologia, que podem proibir o uso de suas plataformas para disseminar o que consideram “apologia ao ódio”. Como Wong acertadamente observa, “muitos norte-americanos vêm se mostrando cada vez mais favoráveis a impor limites ao discurso de ódio, da mesma maneira que os europeus já o fazem”. Várias colunas em páginas de opinião e posts em blogs vêm defendendo abertamente esse tipo de restrição. Em resposta a tudo isso, é importante examinar como essas “limitações de estilo europeu” funcionam na prática, e contra quem vêm sendo aplicadas.

BOA PARTE DOS NORTE-AMERICANOS que anseiam por restrições europeias aos discursos de ódio imagina que essas leis seriam usadas para proibir e punir as ideias preconceituosas mais abominadas: racismo, homofobia, islamofobia, misoginia. E, de fato, muitas vezes funciona assim. Há inúmeros casos de ativistas de extrema-direita que foram detidos, multados e até presos na Europa Ocidental e no Canadá por terem externado opiniões intolerantes.

As restrições aos discursos de ódio, no entanto, reprimem, proíbem e punem não apenas o discurso intolerante da extrema-direita nesses países. As leis têm sido usadas com frequência para restringir e penalizar uma vasta gama de opiniões políticas — inclusive ideias que a ala esquerdista que agora defende uma censura nunca sonharia em classificar como “de ódio”, já que são partilhadas por muitos deles.

A França é provavelmente o exemplo mais extremo de uso abusivo de leis de combate ao discurso de ódio. Em 2015, a mais alta corte do país manteve a condenação penal de doze ativistas pró-Palestina por terem violado restrições impostas pela lei. O crime deles? Vestir camisetas de apoio ao boicote contra Israel, com os dizeres “Vida longa à Palestina, boicote a Israel”. Para o tribunal, eles infringiram a legislação francesa que “prevê prisão ou multa de até 50 mil dólares para quem ‘incitar discriminação, ódio ou violência contra uma pessoa ou um grupo de pessoas com base em sua origem, seu pertencimento ou não-pertencimento a grupo étnico, nação, raça ou determinada religião”.

(“Rejeitado o recurso de ativistas franceses de BDS [Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel] em caso de discurso de ódio”. “Um tribunal de apelação mantém condenação por crime de ódio de ativistas anti-Israel que defenderam boicote ao Estado judeu durante uma manifestação”)

Conforme noticiamos à época, o uso que a França faz das leis de combate a crimes de ódio, condenando o ativismo anti-Israel sob o argumento de que consiste em “antissemitismo” e ódio a um povo por conta de sua nacionalidade, faz parte de uma tendência global. Em maio do ano passado, o governo do Canadá, conservador à época, ameaçou aplicar as rigorosas leis de discurso de ódio para processar partidários do boicote a Israel, alegando que esse tipo de ativismo seria “a nova cara do antissemitismo”. Para citar uma reportagem do jornal israelense Haaretz: “Ativistas pró-Israel da vizinha Bélgica pressionam para que o país adote uma lei similar à lei francesa Lellouche, na esperança de que ela possa conter movimentos pró-boicote a Israel no país”. Outros ativistas franceses foram condenados por “incitação ao ódio racial” por causa de adesivos pró-boicote colados em produtos agrícolas importados de Israel.

Não há muita dúvida de que o mesmo aconteceria se o poder de coibir “discursos de ódio” estivesse nas mãos de autoridades ou tribunais dos EUA. É praticamente um consenso suprapartidário que defender o boicote a Israel configura ódio e antissemitismo. Em 2016, Hillary Clinton discursou no AIPAC, o Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel, e afirmou que o movimento pró-boicote era uma prova de que “o antissemitismo estava em alta ao redor do mundo”. Um grupo bipartidário de legisladores norte-americanos apresentou um projeto de lei que proíbe empresas dos EUA de participar de qualquer tipo de boicote internacional a Israel. Para a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), a proposta pode ser usada para criminalizar defensores do boicote.

Estudantes pró-Israel alegam que defender o boicote equivale a “bullying” universitário e a antissemitismo. Nos Estados Unidos, quem mais sofre com censura dentro do campus são grupos pró-Palestina.

Alguém tem alguma dúvida de que, nos Estados Unidos, grupos como Black Lives Matter (BLM), os “antifa” e outros de extrema-esquerda que lutam contra supremacistas brancos estariam no topo da lista de “discurso de ódio” para muitos políticos, juízes e servidores? Assembleias estaduais controladas por republicanos já defendem que o BLM seja oficialmente classificado como “grupo de ódio”. Além de apontarem o suposto ódio do BLM à polícia, esses políticos destacam “que a plataforma política do grupo acusa Israel de cometer genocídio contra palestinos”.

(“Diretório estadual de Partido Republicano discute condenar grupos de ódio — e Black Lives Matter pode estar incluído na lista.”)

No Reino Unido, “discurso de ódio” passou a incluir qualquer um que expresse crítica contundente à participação do país em guerras. Em 2012, Azhar Ahmed, um adolescente britânico muçulmano, foi detido por cometer “uma ofensa à ordem pública com agravante de racismo”. O crime dele? Depois da morte de soldados britânicos no Afeganistão, ele escreveu na sua página no Facebook sobre os inúmeros afegãos inocentes mortos pelo exército: “Todos os soldados têm que MORRER & ir para o INFERNO! RALÉ IMORAL DO C******! se têm algum problema com isso, vai chorar no túmulo dos seus soldados & pedir que ele vá para o inferno, porque é para lá que ele vai” (sic).

Um representante da polícia justificou a detenção do adolescente: “Ele não se expressou muito bem, e por isso se envolveu nessa confusão”. Então, vocês que estão loucos por leis europeias de combate ao discurso de ódio querem basicamente que a polícia — e, num segundo momento, os juízes — decidam quando alguém se expressou mal e de forma ofensiva o suficiente para justificar uma prisão. Ahmed escapou da pena de encarceramento e acabou sendo punido “apenas” com multa e serviços comunitários, mas só “porque apagou rapidamente o post desagradável e tentou se desculpar com aqueles que ofendeu”.

(“Azhar Ahmed, uma publicação de mau gosto no Facebook e mais indícios da nova e aterrorizante face da censura na Grã-Bretanha”)

Ao escrever sobre o caso de Ahmed no jornal The Independent, o repórter Jerome Taylor relatou como a interpretação das leis contra o “discurso de ódio” no Reino Unido rapidamente passou a incluir qualquer opinião considerada perturbadora: “Nos últimos anos, fomos criminalizando cada vez mais o que é ofensivo, um precedente que deveria ser muito preocupante para todos que compreendem a importância da liberdade de expressão.” No Guardian, Richard Seymour foi além e afirmou que “Ahmed é a mais recente vítima de um esforço conjunto para redefinir o racismo como ‘qualquer coisa que possa vir a ofender pessoas brancas’.
É assim que as leis de combate ao discurso de ódio estão sendo usadas em praticamente todos os países onde existem: para penalizar não apenas a intolerância atrelada a um discurso de direita, como gostariam os defensores dessas leis, mas também uma vasta gama de opiniões que boa parte da esquerda entende que deveriam ser permitidas, ou mesmo integralmente aceitas. E é claro que é assim: em última instância, são sempre as maiorias que decidem o que configura “discurso de ódio”, e as opiniões minoritárias ficam mais vulneráveis à eliminação.

Em 2010, um ativista ateu recebeu suspensão condicional da pena de seis meses de prisão a que fora condenado por deixar panfletos anticristãos e anti-Islã na sala ecumênica do aeroporto de Liverpool. De acordo com a BBC, os jurados o declararam culpado pela prática “de assédio agravado por conteúdo religioso”. Em Cingapura, as leis contra o “discurso de ódio” são frequentemente usadas para penalizar ativistas de direitos humanos que criticam o cristianismo, ou muçulmanos que defendem ou divulgam sermões de imames considerados excessivamente críticos a outras religiões. São comuns na Turquia casos de cidadãos que foram processados por criticar autoridades públicas ou as Forças Armadas. Imames mais radicais podem ser processados na Europa caso manifestem de forma muito estridente seu apoio ao direito islâmico (a sharia) ou à violência como resposta à agressão ocidental.

Um ativista de esquerda na França foi condenado e multado por ofender o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy com um cartaz que dizia “Some daqui, babaca”— ironicamente as mesmas palavras proferidas pelo próprio Sarkozy quando um cidadão se recusou a apertar sua mão em um evento público (no fim das contas, a Corte Europeia de Direitos Humanos arquivou a condenação). Em 2013, Nico Lang, do site jornalístico Salon, noticiou que “juízes aplicaram a Laure Pora, ex-líder do grupo ACT UP em Paris, multa de 2.300 euros por ter usado o termo [‘homofóbico’] durante um protesto em 2013 contra o grupo pró-vida Fundação Jérôme Lejeune e o movimento conservador La Manif Pour Tous [Manifestação para Todos].

Um relatório de 2015 da ONG Freedom House constatou que “a liberdade na internet se reduziu em âmbito mundial pelo quinto ano consecutivo, e mais governos censuraram informações de interesse público.” E ainda: “autoridades estatais prenderam mais usuários em razão do que escreveram online.” O relatório mostrou também um declínio nos mecanismos de proteção à liberdade de expressão em aproximadamente metade dos países pesquisados. “As alterações mais relevantes ocorreram na Líbia, na Ucrânia e na França”. Nesta última, as mudanças “decorreram principalmente de políticas altamente discutíveis adotadas na esteira do ataque terrorista ao jornal Charlie Hebdo, tais como restrições a conteúdos que possam ser considerados ‘apologia ao terrorismo’, criminalização de usuários e significativo aumento da vigilância.”

No começo da semana, o governo alemão determinou o bloqueio de um influente site de esquerda, sob a alegação de que ele teria “provocado” agitação no encontro do G-20 em Hamburgo e que teria sido usado para incitar violência. As autoridades definiram o site como “o portal mais influente entre os raivosos extremistas de esquerda na Alemanha” e destacaram que “se referia a agentes de polícia como ‘porcos’ e ‘assassinos’, e trazia instruções para criar coquetéis molotov.” Embora a ordem de bloqueio do site tenha sido emitida com base na legislação que veda associações ilegais, e não nas leis contra o “discurso de ódio”, o fundamento é o mesmo. É parte de uma tendência geral na Alemanha a que “as autoridades tomem medidas contra o discurso de ódio e a incitação à violência.”

Manchete do New York Times: “Em medida inédita, Alemanha bloqueia site extremista de esquerda”.

O bloqueio desse site de esquerda está em sintonia com uma longa tradição alemã de banir ideias consideradas ameaçadoras à ordem vigente. Nos anos 1950, uma corte europeia validou uma ordem do governo alemão para dissolver e proibir o Partido Comunista e confiscar todo o seu patrimônio, alegando que a agremiação se opunha aos princípios que embasavam o governo alemão.

AINDA QUE, num passe de mágica, as leis contra o “discurso de ódio” começassem a ser aplicadas pelas autoridades da maneira idealizada por seus defensores — de forma que apenas as ideias que eles abominam fossem eliminadas e penalizadas, e as favoritas pudessem florescer — continuariam a existir boas razões para se opor a tais leis. Já me pronunciei extensamente sobre essas razões há muitos anos, no Guardian e o fiz novamente na semana passada. O diretor jurídico da ACLU, David Cole, escreveu essa semana no New York Review of Books sobre as razões pelas quais a União defende a expressão de todos os tipos de discursos, mesmo os mais odiosos.

A premissa de que a censura enfraquece os grupos de ódio, fazendo-os desaparecer, está particularmente errada. Nada os fortalece mais do que a censura, porque ela os transforma em mártires da liberdade de expressão, alimenta o sentimento de que são injustiçados e os força a buscar meios mais destrutivos de ativismo.

Quando eu defendia, enquanto advogado, o direito à liberdade de expressão desses grupos, o que eles mais gostavam era ser alvo de tentativas de censura, porque sabiam que nada seria mais eficaz para fortalecer a causa. Por outro lado, como provou a repercussão dos eventos em Charlottesville, nada expõe com mais clareza a perversidade desses grupos do que permitir que mostrem sua verdadeira natureza. É isso que os enfraquece.

Ironicamente, aqueles que defendem que os neonazistas e outros grupos de ódio sejam censurados à força são os que mais contribuem para o seu fortalecimento. Como escreveu Cole: “Quando os supremacistas brancos convocaram uma manifestação na semana seguinte em Boston, só conseguiram atrair um punhado de apoiadores, amplamente superado pelas dezenas de milhares de participantes da manifestação contrária, que marcharam pacificamente pelas ruas para condenar o supremacismo branco, o racismo e o ódio. Boston demonstrou mais uma vez que a resposta mais potente ao discurso que execramos não é a repressão, mas mais liberdade.”

A questão mais relevante, no entanto, é que a aplicação da censura idealizada por seus defensores não funciona assim na prática. E nunca vai funcionar. Se você der poder às autoridades estatais para decidir quais ideias são permitidas ou não, para avaliar quais ideias contêm “ódio” suficiente para justificar uma proibição, é não apenas possível mas inevitável que essas leis sejam eventualmente utilizadas para criminalizar ideias que você aprecia. Para citar novamente Cole, “é praticamente impossível produzir um padrão para repressão de discursos que não atribua às autoridades governamentais uma perigosa e ampla discricionariedade e que não enseje discriminação contra opiniões específicas.”

Como Conor Friedersdorf recentemente explicou na revista The Atlantic, há uma grande ironia no âmago do anseio recém-descoberto dos liberais por leis que censurem o “discurso de ódio”: quem iria implementar e interpretar essas leis seriam os que estão no poder, pessoas como Donald Trump, Jeff Sessions, governadores e legisladores do Partido Republicano, e todo seu séquito de juízes conservadores. Não é preciso muita criatividade para imaginar como essas leis seriam aplicadas e contra quem. Historicamente, nos EUA, tais restrições, quando permitidas, foram usadas exatamente contra os grupos que os defensores da censura pensavam estar protegendo. Cole escreveu ainda:

Nossa história prova que, se não forem estabelecidos limites muito claros para seu uso, o poder de combater a apologia à violência é um convite à penalização das divergências políticas. A. Mitchell Palmer, J. Edgar Hoover e Joseph McCarthy usaram a apologia à violência como justificativa para penalizar pessoas que se associavam a grupos comunistas, socialistas ou de direitos civis.

A própria ACLU surgiu de uma tentativa do ex-presidente Woodrow Wilson de criminalizar opiniões contrárias à sua política de envolvimento dos EUA na Primeira Guerra Mundial. A associação então passou décadas combatendo as tentativas de censura dirigidas a comunistas, socialistas, movimentos de direitos civis e ativistas LGBT. Quando se dá poder à sociedade para proibir as ideias que mais abomina, esses são os grupos mais vulneráveis. Os advogados de liberdades civis só obtiveram sucesso na defesa desses grupos com base no princípio de que a censura estatal a opiniões políticas é sempre inadmissível.

No entanto, para perceber a diferença entre os efeitos reais e os desejados das leis de combate ao discurso de ódio não é necessária qualquer especulação, nem mesmo um estudo aprofundado da História norte-americana no século XX. Basta olhar para a forma como essas leis vêm sendo aplicadas na Europa. E quem iria querer uma coisa dessas?

Tradução: Deborah Leão

Este artigo encontra-se em The Intercept Brasil