Se você procurar bem, vai encontrar no site da Saudi Aramco – a maior produtora de petróleo do mundo – uma discreta página intitulada “Enfrentando o desafio do clima”. Ali, a gigante dos combustíveis fósseis afirma: “Nossas contribuições para o desafio do clima são uma expressão concreta de nosso ethos, balizada pelas políticas da companhia, e de uma conduta empresarial que enfrenta o desafio do clima.” Palavras vazias, é claro – assim como o anúncio feito por Mark Zuckerberg na quarta-feira (6) sobre sua nova “visão das redes sociais com foco na privacidade”. Não nos deixemos enganar por nenhum dos dois.

 

Mark Zuckerberg assiste a uma demonstração de produto durante a conferência Oculus Connect 5, no dia 26 de setembro de 2018, em San Jose, na Califórnia.
Mark Zuckerberg assiste a uma demonstração de produto durante a conferência Oculus Connect 5, no dia 26 de setembro de 2018, em San Jose, na Califórnia. Foto: David Paul Morris/Bloomberg via Getty Images

 

Da mesma forma que a Saudi Aramco, o Facebook tem ajudado a fazer do mundo um lugar pior, e não é nenhuma surpresa que a empresa esteja sob uma constante chuva de críticas. Mas escrever um mero – e vago – post de blog é muito mais fácil do que lidar com as consequências nefastas de seu modelo de negócios e reestruturá-lo completamente.

 

Prometer um dia abandonar o poder de bisbilhotar a vida de 2 bilhões de pessoas não faz de você um santo

 

“Quando penso no futuro da internet, acredito que uma plataforma de comunicação com foco na privacidade será ainda mais importante do que as plataformas abertas atuais”, escreve Zuckerberg, subitamente transformado em defensor da privacidade, um verdadeiro apóstolo Paulo convertido na estrada de Damasco. As cerca de 3 mil palavras de seu manifesto dão a impressão de que o Facebook estaria se reformulando – a companhia deixaria de rastrear o que lemos, compramos, vemos e ouvimos para vender a outras empresas uma oportunidade de influenciar nossos atos. Na realidade, porém, há apenas uma mudança no novo Facebook “com foco na privacidade”: a adoção da criptografia de ponta-a-ponta em todos os serviços de mensagens instantâneas da marca. Essa transição tecnológica impediria qualquer um, inclusive o Facebook, de ter acesso às mensagens dos usuários.

E só.

Embora seja uma medida louvável – e extremamente bem-vinda para dissidentes em países com rigorosa vigilância governamental –, prometer um dia abandonar o poder de bisbilhotar a vida de 2 bilhões de pessoas não faz de você um santo. Além do mais, Zuckerberg não deu nenhum detalhe concreto além de um plano para efetivar as mudanças “nos próximos anos”, o que não inspira muita credibilidade, já que o Facebook ainda não implementou as medidas de privacidade prometidas depois dos escândalos em que se envolveu recentemente.

“Sei que muitos não acreditam que o Facebook possa ou mesmo queira desenvolver esse tipo de plataforma com foco na privacidade”, escreve Zuckerberg em seu texto epifânico. Eu sou um desses “muitos”, assim como não acredito na seguinte tentativa da Saudi Aramco de se antecipar às críticas: “Para alguns, a ideia de uma empresa de petróleo e gás dando sua contribuição ao desafio do clima é uma contradição. Nós achamos que não.”

O ceticismo com relação ao Facebook não é gratuito. Para falar de apenas um entre muitos exemplos, a empresa está envolvida, como foi noticiado pelo Intercept recentemente, em uma batalha por trás dos panos contra a aprovação de leis de privacidade mais rigorosas na Califórnia.

Além do mais, o manifesto é um dramático opus de 3 mil palavras, mas anuncia apenas uma medida de privacidade, e ainda por cima sem data para chegar. O histórico do Facebook é muito mais eloquente: são anos e anos de um modelo de negócios exclusivamente baseado na mineração de dados de usuários do mundo inteiro. Talvez um dia o Facebook permita que os usuários do WhatsApp e do Messenger se comuniquem com criptografia de ponta-a-ponta – o que seria ótimo –, mas até agora a empresa não dá sinais de querer expandir o uso da criptografia para além dos aplicativos de mensagens instantâneas, pois isso seria fatal para seus negócios. Cada serviço protegido pela criptografia de ponta-a-ponta significaria uma fonte a menos de informação comportamental, preferências de consumo, etc.

Suas conversas podem até ficar protegidas, mas isso não mudará em nada o monitoramento da sua vida – real e virtual – pelo Facebook. Digamos que o conteúdo do seu perfil ou dos seus álbuns de fotos passe a ser criptografado, podendo ser acessado apenas pelos seus amigos: como o Facebook conseguiria continuar vendendo anúncios direcionados com base nesses dados?

A verdade – que não foi dita, mas que Zuckerberg conhece muito bem – é que uma “visão das redes sociais com foco na privacidade” não tem nada a ver com o Facebook, e sim com a imagem negativa do Facebook. A empresa vai se limitar a usar o “anúncio” de Zuckerberg para se defender quando o próximo escândalo de privacidade vier (hoje no final do dia, possivelmente).

Não nos deixemos iludir por esse arremedo de arrependimento e progresso tecnológico. Todo esse teatro não passa do palavrório de um homem que sabe que está encrencado.

Tradução: Bernardo Tonasse

The Intercept Brasil