População carcerária feminina explodiu 455% entre 2000 e 2016 com a “guerras às drogas”. Mas fenômeno vem de longe: da privação social domiciliar ou em conventos, às prisões que puniam prostitutas e “ninfômanas”

 

Nos últimos anos, o encarceramento de mulheres vem ganhando grande visibilidade em razão da crescente população carcerária feminina: de acordo com o Infopen Mulheres 2018, em junho de 2016, o país contava com 42,3 mil presas, compondo uma taxa de aumento de 455% entre os anos de 2000 e 2016. Além disso, dentre os países que mais aprisionam mulheres no mundo, o Brasil ocupa a 4ª posição, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia.

De início, cumpre destacar que, há muitos anos, o aprisionamento feminino é uma realidade no país. Todavia, apenas em 1942, com Lemos Britto (um dos maiores ideólogos do sistema penitenciário do início do século XX), é que foi pensada e projetada uma instituição carcerária exclusivamente feminina[1].

O encarceramento de mulheres não, portanto, é uma realidade dos tempos modernos. Em verdade, elas conhecem a reclusão antes mesmo do capitalismo industrial e das primeiras instituições consideradas prisionais, visto que viveram sob o contexto de uma política de correção que oscilava entre a casa e o convento[2].

O documentário “As mulheres e o cárcere” demonstra que, até que chegassem à prisão, as mulheres sempre sofreram alguma forma de cerceamento de liberdade e da própria expressão de gênero; tendo sido, ainda, vítimas históricas de estereótipos que enraizaram os papéis de mãe e educadora de tal maneira que isso se transformou em uma espécie de régua dentro do sistema carcerário, servindo como elemento a definir as possibilidades de ser a mulher “corrigida” ou não.

Portanto, é inegável que história trouxe uma ideia de construção de culpa referente às mulheres em geral e, mais especificamente, à mulher encarcerada, a qual sofre as consequências por ter fugido às regras socialmente impostas.

Essa ideia de culpa, por mais significativa que seja dentro do sistema penal como um todo, é ainda mais evidente no âmbito feminino; isso porque, historicamente, o propósito sempre foi o de custodiar a mulher, até que, enfim, desaguasse nessa nova “política de correção” que não havia sido ainda experimentada[3].

Tendo isso, vale fazer um breve paralelo entre a construção dos presídios femininos no Brasil na década de 40, e a teoria criminológica lombrosiana, visto que muito se aproxima daquilo que leva as mulheres ao cárcere na atualidade. Isso porque, o próprio idealizador das prisões femininas definiu, na revista “Arquivos Penitenciários Brasileiros”, no ano de 1942, o perfil da mulher encarcerada como “prostitutas”, “ladras reincidentes”, “portadoras de tuberculose e sífilis” e “ninfômanas”.

Ou seja, até mesmo quando a mulher foi notada pelo sistema, a carga histórica negativa foi perpetrada e, conforme é cediço por todos, ecoa até hoje no processo de criminalização feminino.

Atualmente, a mulher lombrosiana representaria mulheres presas por tráfico, as quais correspondem à majoritária população carcerária e são igualmente engolidas por um sistema androcêntrico, etiquetado, e iludido por uma falida política de guerra às drogas.

Por muitas vezes, esse caráter androcêntrico nos mostra que a prisão masculina é a regra; porém, esconde o fato de que a prisão feminina é mais do que uma exceção, mas uma extensão da realidade da primeira.

Isso fica mais do que claro quando percebemos que, quando do surgimento das penitenciárias femininas, o mesmo Lemos Britto enfatiza a necessidade de separar as mulheres dos homens e colocá-las longe dos presídios masculinos para evitar a influência que neles poderiam causar, sustentando que a presença das mulheres aumentava o “martírio masculino da forçada abstinência”[4].

Logo, como bem pontua a autora, a prisão feminina não surgiu visando a construção de um ambiente mais digno para o cumprimento de pena das mulheres, mas, para garantir melhores condições ao homem preso.

Tendo isso, vemos que o sistema penal foi pensado por homens e para homens. E o fato de as mulheres representarem uma minoria dentro dessa realidade faz com que suas necessidades sejam completamente esquecidas ao se pensar em políticas públicas e construções de unidades prisionais.

O cárcere, portanto, ao ignorar o pensamento sob uma perspectiva de gênero, violenta as mulheres em um nível que jamais se aproximará da violência institucional sofrida pelo homem preso.

Cabendo lembrar ainda que, diferentemente do homem, a mulher sofre uma consequência específica do encarceramento, tendo em vista que a sociedade não espera que a figura feminina se confunda com a tão rotulada imagem daquele que comete um delito.

Ou seja, o caráter submisso e passivo historicamente associado à mulher não se harmoniza, aos olhos da sociedade, com a figura do desviante; fazendo com que ela venha a sofrer não só uma condenação estatal, mas também social. E isso reflete de forma patente na divergência da relação dos familiares diante de encarcerados homens e mulheres, vez que, ao delinquirem, elas enfrentam uma nova quebra de paradigma seguida do abandono social.

Dia de domingo. As filas no presídio masculino se estendem pelo quarteirão enquanto que, nas instituições femininas, são raras as presas que recebem visitas com frequência semanal.

Esse abandono, por sua vez, agrava de forma exponencial a violência do cárcere, fazendo com que a mulher, que já ocupava as margens do sistema de justiça penal, seja submetida, também, à carência emocional e psicológica que aumenta a sensação de esquecimento.

Sobre o tema, conclui Dráuzio Varella em seu livro “Prisioneiras” que: “a sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”[5].

Ao citar a obra, destaco, ainda, que ela é um grande exemplo do androcentrismo velado no sistema carcerário, pois o médico, no anseio de mostrar a agressividade do cárcere para com as mulheres, em vários momentos deixou o androcentrismo protagonizar o discurso. E isso é sabiamente explorado pela advogada e ativista Gabriela Cunha Ferraz em seu artigo “Caro Dr. Dráuzio, vamos conversar?”, publicado aqui, neste mesmo veículo de comunicação – e do qual muito recomendo a leitura como complemento desta.

Sendo assim, é inegável a existência de uma grande lacuna nos estudos voltados ao encarceramento feminino, existindo falhas sempre que alguém tenta supri-la com o olhar voltado tão somente para a criminalidade feminina, mas, esquecendo de pensar o processo de criminalização da mulher como um todo.

Portanto, segundo ressalta a antropóloga Bruna Angotti em curso de Criminologia oferecido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo: adaptar as particularidades das mulheres a uma realidade pensada para o homem, seria forçar um novo objeto de estudo a uma teoria já pronta.

Giovanna Penhalbel Sigilló, no Justificando