Em audiência numa vara criminal, um policial articula desajeitadamente sua defesa diante do tribunal enquanto a mãe de sua vítima sussurra desmentidos na plateia. A câmera interna de um carro de polícia registra o fuzilamento de dois adolescentes que brincavam numa calçada enquanto o celular de um deles captava o mesmo momento. É em confrontações desse tipo que se estrutura o documentário Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho.

Estão em exame cinco casos em que a polícia alega legítima defesa – os chamados “autos de resistência” – para justificar mortes resultantes de suas ações em favelas e periferias. Segundo informa o filme, cerca de 16 mil ocorrências desse tipo foram registradas no Rio de Janeiro desde 1997. O número é escabroso, mesmo se considerarmos que muitas dessas mortes podem se enquadrar verdadeiramente no âmbito da autodefesa. Mas tantas não são, como comprovam algumas evidências mostradas no filme, de armas plantadas e conflitos forjados.

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Não se trata de uma investigação própria dos diretores, mas de um acompanhamento criterioso de desdobramentos jurídicos e de uma postura solidária à luta das mães em busca de justiça e contra a impunidade. Para além dos fatos e das emoções em jogo, o casal Natasha e Lula incorporam a discussão sobre a política de guerra adotada pela PM carioca, uma das mais letais e também mais vitimadas do mundo.

Num trabalho difícil de captação de som e de imagem, o filme documenta a reconstituição de uma chacina, uma sessão de reconhecimento de policiais criminosos e audiências em que certos personagens não podem ou não permitem ser filmados. Os materiais de arquivo incluem cenas impressionantes como um ataque de helicóptero a traficantes numa comunidade sob enorme risco de ferir inocentes.. Imagens como essa, comparáveis à escandalosa filmagem dos soldados americanos fuzilando pessoas do alto no Iraque, por si só demonstram a irresponsabilidade com que a polícia dispara suas armas.

Auto de Resistência é dedicado à memória de três mortos, entre eles a vereadora Marielle Franco, que aparece rapidamente numa cena. O próprio assassinato de Marielle é acusação de alguma coisa da ordem do indefensável. O filme chega aos cinemas num momento de intensa comoção pela recente intervenção do “caveirão aéreo” sobre o pátio de uma escola na favela da Maré e a operação que resultou na morte de sete jovens, inclusive um menino de 14 anos. Na tela, medimos o horror em que se encontra o estado do Rio de Janeiro e, com ele, o Brasil.

O Brasil que nunca saiu da escravidão

Vale destacar também o lançamento de O Nó do Diabo, longa-metragem dividido em cinco episódios a ser apresentado também como minissérie de TV. Trata-se de uma boa surpresa vinda da produtora Vermelho Profundo, de Campina Grande, na Paraíba. Quatro diretores assinam roteiro e direção dos capítulos, que no entanto apresentam certa unidade de estilo e coerência temática. É mais um exemplo bem-sucedido do filme de terror brasileiro contemporâneo, com a qualidade extra de ser também um possante comentário social.

Poderia ter como subtítulo “O Brasil que nunca saiu da escravidão”. Cada episódio retrata situações de violência racista e classista em progressão retroativa, de 2018 a 1871. Há, ainda, dois elementos de ligação entre todas as épocas: o sangue e a figura imutável do velho Vieira (Fernando Teixeira), símbolo de um país que não muda em suas estruturas mais profundas.

São escravos em fuga de ou para o quilombo, irmãs pretas mantidas na prostituição e nos ferros mesmo depois da suposta abolição, empregados domésticos dos anos 1980 enredados numa trama sobrenatural com a família dos patrões e um ex-policial enlouquecido de ódio contra os moradores de uma comunidade que supostamente ameaçam invadir a fazenda dos Vieira nos dias atuais. A intolerância atravessa os tempos e chega a envolver sucedâneos dos excluídos de outrora, que são os moradores de favelas, os jovens gays e até a esquerda por ocasião do impeachment de Dilma.

O choque entre os dois lados não tem vencedores claros, nem são nítidas as fronteiras entre o real e o fantástico. O filme faz bom uso dos códigos do gênero, sem apelar para sustos banais. A narrativa é eminentemente visual, e tudo funciona a contento no que diz respeito a fotografia, aproveitamento das incríveis locações no sertão paraibano, sugestões sonoras e direção de atores. Se o penúltimo episódio se alonga um pouco e o último soa mais verboso e rígido que a média, isso não chega a prejudicar a fruição desse filme envolvente e muito bem acabado.

Por Carlos Alberto Mattos

Fonte:  Carta Maior