Lá se vão três ex-presidentes do subcontinente com prisões determinadas pelas Justiças de seus países. Todas fruto de processos sem provas e sem crime

Ricardo Stuckert           Mujica, Lula, Dilma e Rafael Correa; a esquerda na América Latina sob perseguição judicial em seus países

 

O ex-presidente do Equador Rafael Correa, que governou seu país entre os anos de 2007 e 2017, tem contra si uma ordem de prisão expedida pela Justiça de seu país no dia 3 deste mês. A ordem é internacional, já que o ex-presidente mora na Bélgica há mais de um ano.

Correa não é o primeiro ex-mandatário de esquerda da América Latina que tem ordem de prisão preventiva (sem que tenham sido considerados culpados em um processo judicial concluído na Justiça) decretada. Como se sabe, Lula está preso, sem provas e sem sentença judicial transitada em julgado, desde abril deste ano.

A ex-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, tem um mandado de prisão contra si desde dezembro do ano passado. Foi expedido logo depois que ela foi eleita senadora da República em seu país. Estão tentando, agora, cassar sua imunidade parlamentar, para colocá-la atrás das grades o mais depressa possível.

Ainda antes desses episódios, uma outra presidenta de esquerda do subcontinente, Dilma Rousseff, em 2016, foi derrubada de seu mandato presidencial por meio de um processo de impeachment sem crime, sem provas, sem nada. Ou com tudo, com o Supremo, com tudo.  Voltando até 2012, no Paraguai, o então presidente (de esquerda) daquele país foi deposto em um processo de impeachment que durou menos do que 24 horas. É isso mesmo, o Senado paraguaio abriu processo e encerrou no mesmo mesmo dia, colocando-o para fora da presidência acusando-o de fazer parte de um crime que culminou na morte de 17 pessoas. Até hoje ele não foi condenado por nada.

Rafael Correa é só a última vítima.

Sem prova, sem processo

O mandado contra o equatoriano é para uma prisão provisória, quer dizer, não é fruto de uma condenação consumada na Justiça do seu país. O motivo? Ele falhou na obrigação de se apresentar quinzenalmente a uma corte do Equador, ordem que lhe foi imposta há menos de um mês por uma juíza, no exato momento em que foi formalizado um indiciamento contra ele.

Ou seja: não tinham chegado a pedir a prisão de Correa enquanto ele responde a uma acusação formalizada há menos de 20 dias, mas o obrigaram a atravessar o oceano a cada 15 dias, em uma espécie de constrangimento provisório ao direito de ir e vir e viver do ex-presidente. Daí, quando ele não concretizou a tal ordem, o mandaram prender.

É preciso compreender qual acusação e qual processo é este que sofre Rafael Correa. Em quais condições, quando, como e onde ele teria cometido qual crime, que não levou à sua prisão imediata sem julgamento, mas quase. Afinal, seu indiciamento ocorreu no dia 18 do mês passado. A ordem de prisão saiu nesta semana. Haverá de ser crime grave, cujas investigações podem vir a ser prejudicadas caso Correa siga fora da cadeia, ou então corre-se o risco dele destruir as provas se preso não for, ou ainda ele deve representar uma ameaça à sociedade, pronto para incorrer no mesmo crime se não for detido. No Equador, assim como na maior parte dos países do mundo, são basicamente essas as condições para que alguém seja preso preventivamente.

Bom, crime consumado, mesmo, não teve nenhum. A acusação é sobre uma tentativa de sequestro, ocorrida em 2012, em outro país, na Colômbia, que teria sido frustrada pela polícia local.

Afastadas, pois, as hipóteses de haver qualquer coisa parecida com flagrante ou risco iminente de Correa vir a delinquir no mesmo crime, ou na tentativa do mesmo crime: o fato investigado ocorreu há seis anos, desde então Correa não é acusado de tentar sequestrar mais ninguém nem há indícios de que esteja planejando novos encarceramentos privados.

A chance de Correa estar destruindo provas ou constrangendo testemunhas, se existe, também não foi detectada por qualquer autoridade policial ou da Justiça de qualquer país, até porque a tentativa de crime teria acontecido na Colômbia, fazendo uso de bandidos de aluguel colombianos, e Correa vive na Europa. Tampouco há situação de fuga da Justiça. O ex-presidente equatoriano tem família e residência fixa e conhecida em um país europeu que permite que a Interpol cumpra ordens de prisão internacionais emitidas do Equador contra seus próprios nacionais. Correa tem representação judicial regular nos processos em que é parte na Justiça equatoriana.

Mas, ainda assim, uma juíza do Equador, de nome Daniela Camacho, decretou sua prisão.

A velocidade com que a magistrada tomou sua decisão causa espécie. Sua ordem para que o ex-presidente se apresentasse a cada 15 dias à Justiça equatoriana é do dia 18 de junho, o mesmo do indiciamento de Correa. Assim, o ex-presidente estava obrigado a se apresentar em Quito pela primeira vez no último dia 2 de julho. A Defesa do acusado, porém, interpôs um recurso contra a decisão. Apresentou documentos que provavam sua residência fixa e conhecida na Bélgica, que provavam que sua família também mora lá, que provavam que ele tem compromissos pessoais e profissionais no país onde reside. Argumentou que a medida imposta pela juíza era por demais gravosa, uma intervenção no direito e ir e vir que se aproxima da prisão preventiva. Propôs que seu cliente pudesse se apresentar quinzenalmente à Embaixada do Equador no país onde vive. Efetivamente, assim o fez Correa, no último dia 2 de julho. Depois, colocou na sua conta no Twitter fotos e documentos comprovando que se apresentou às autoridades equatorianas estabelecidas na Bélgica.

Então, no dia 3 de julho, a juíza Camacho conduziu audiência sobre o caso com os advogados de Correa, os advogados da suposta vítima de tentativa de sequestro e o Ministério Público do Equador. Tanto os representantes da suposta vítima quanto o procurador do caso, de nome Paúl Perez, defenderam que Correa tinha descumprido a ordem judicial, que não era certo ele se apresentar na embaixada na Bélgica, e por isso pediram a imediata expedição da ordem internacional de prisão. A juíza interrompeu a sessão para um recesso de 55 minutos. Foi tempo suficiente para ela decidir e emitir a ordem de prisão contra o ex-presidente da República.

As provas, o acusador e o domínio do fato

A vítima da tentativa de sequestro em 2012 na Colômbia é um político equatoriano de nome Fernando Balda. Ele era do mesmo partido de Correa até os primeiros anos de governo do ex-presidente acusado. Em 2009, no entanto, mudou de lado, saiu do governo, saiu do partido Alianza e tornou-se ferrenho opositor da gestão Correa, militando ao lado de outro ex-presidente equatoriano, Lucio Gutiérrez (2003-2005), ex-coronel do Exército que participou de uma tentativa frustrada de golpe em seu país no ano 2000.

Passou a fazer acusações de que o então presidente Correa seria o chefe de um esquema criminoso de perseguição a políticos de oposição. O então presidente negou todas as afirmações e foi à Justiça para que Balda provasse tudo que estava dizendo. Balda não provou. Foi, então, condenado por injúria e difamação. Ao invés de cumprir a pena, mudou-se para a Colômbia, país vizinho onde mantinha boas relações com os políticos (de um partido de direita) que então ocupavam o governo federal. Passou a dizer que era um exilado político.

Então, em 2012, tanto Balda quanto as autoridades policiais colombianas passaram a afirmar que o político havia sofrido uma tentativa de sequestro, mas que os policiais tinham conseguido impedir o crime. A partir daí, Balda, e somente Balda, passou a dizer que aqueles que tentaram sequestra-lo disseram que estavam fazendo aquilo a mando de Rafael Correa, a mesma pessoa a quem ele acusara e não provara de outros crimes alguns anos antes. Passou a dizer também que o objetivo dos bandidos não era nem mesmo mantê-lo vivo, mas sim matá-lo, o que só não teria ocorrido porque a polícia desvendara tudo a tempo. Os supostos sequestradores contratados por Correa não confirmam a versão.

As autoridades colombianas abriram investigações. Há algumas semanas, anunciaram que encontraram trocas de mensagens em 2012 entre os bandidos e membros do médio escalão do órgão de inteligência do Equador que indicariam a ideia de sequestrar Fernando Balda partindo de dentro da agência equatoriana. Eram dois funcionários de médio escalão. Nenhum deles sequer menciona o nome do então presidente Rafael Correa, muito menos estabelece qualquer relação entre aquele suposto plano de operação e o mandatário do Poder Executivo do Equador.

O procurador Paúl Perez, no entanto, viu indícios suficientes para pedir as medidas restritivas de direitos de Rafael Correa. Aplicou a teoria do domínio do fato. Se alguém do médio escalão de um órgão federal é suspeito de um crime, a maior autoridade do país pode ser responsabilizada por ele. A juíza Daniela Camacho viu indícios suficientes para atender ao pedido do Ministério Público.

Assim, Rafael Correa, presidente do Equador de 2007 a 2017, primeiro político de esquerda a governar seu país, que deixou o cargo com índices recorde de aprovação, acima dos 70%, agora é um homem com a prisão decretada. Durante seu governo, a pobreza na população diminuiu de 36,7% para 22,5%, de acordo com a Organização das Nações Unidas. O índice anual de crescimento da economia equatoriana dobrou em relação aos anos anteriores.

Outro ex-presidente da América do Sul, de nome Luiz Inácio Lula da Silva, se encontra preso em seu país, acusado por um empresário de ter recebido uma propina em forma de um apartamento triplex. A acusação livrou 15 anos de prisão da pena deste empresário, réu confesso e condenado. Lula está preso sem que seu processo tenha chegado ao fim, o que prejudica sua pré-campanha eleitoral às eleições presidenciais deste ano no Brasil. Assim ele escreveu, na última terça-feira (3), ao ex-presidente Rafael Correa:

*Publicado originalmente em Jornalistas Livres.