Se alguém perguntar aos migrantes e refugiados africanos na Europa que atravessaram o Mediterrâneo numa embarcação precária se fariam novamente a viagem a maioria responderá que “sim”. Muitos deles deslocaram-se em carrinhas e camiões através do perigoso deserto do Saara e outros amontoaram-se em frágeis embarcações que os levaram por águas agitadas. Viram companheiros de viagem morrer de sede ou afogados; apesar disso, estão convictos de que fariam tudo de novo.

 

 

O tratamento duro que recebem dos guardas fronteiriços europeus e a avassaladora experiência de racismo que enfrentam em sociedades europeias não geram arrependimento nem os inibiriam de repetir a viagem em condições idênticas.

“Fiz tudo isto para ganhar dinheiro”, afirma Drissa, cidadão maliano. “Foi a pensar na minha mãe, no meu pai, na minha irmã mais velha e na mais nova. Para poder ajudá-los: foi isso que me trouxe para a Europa”.

Mitos sobre os migrantes

Um relatório do Programa das Nações Unidos para o Desenvolvimento (PNUD), divulgado em 17 de Outubro, mostra que 97% dos quase dois mil imigrantes africanos na Europa ouvidos no inquérito correriam os mesmos riscos para chegar ao continente – mesmo sabendo o que agora sabem sobre a viagem e o modo como são tratados. O que esse relatório da ONU tem de poderoso é que contribui para dissipar muitos dos mitos sobre as migrações africanas.

Existem visões terríveis segundo as quais os africanos estariam “a invadir” a Europa e que justificam uma retórica anti-imigração que se concretiza em levantar cercas e criar uma Europa-fortaleza. É como se estivéssemos em guerra e os europeus necessitem de se precaver contra os invasores.

Há um ano, o conselheiro especial das Nações Unidas para a prevenção do genocídio, Adama Dieng, alertou para o facto de os políticos europeus estarem a atear fogo usando uma retórica odiosa “que legitima o ódio, o racismo e a violência”. Acrescentou que “enquanto extremistas contaminam o discurso político oficial com uma linguagem inflamatória, sob o disfarce de ‘populismo’, os crimes e o discurso de ódio continuam a aumentar. Os crimes de ódio são um dos sinais mais claros de alerta precoce para a realização de atrocidades”.

Dieng, um advogado senegalês, afirmou em Maio deste ano, na ONU, em Genebra, que “os grandes massacres começam sempre com pequenos actos e discurso de ódio”.

O relatório da ONU demonstra que o ódio em torno dos refugiados e imigrantes africanos não tem razão de ser. Os motivos em que se baseia a existência de grandes fluxos migratórios para a Europa estão na própria Europa. Aqueles que saem de zonas de guerra – Síria e Afeganistão, na Ásia, mas também Eritreia e Líbia, em África – fogem de bombas frequentemente produzidas na Europa. O número dos que procuram refúgio por causa dessas dramáticas circunstâncias é muito maior do que os africanos que emigram para a Europa em busca de trabalho.

Na realidade, mais de 80% dos migrantes africanos ficam no continente africano. A proporção de emigração africana para fora do continente comparada com a população de África “é uma das mais baixas do mundo”, afirmam as Nações Unidas. De acordo com dados europeus, a maioria dos migrantes que se deslocam para a Europa fazem-no através de canais regulares – procuram as embaixadas, pedem vistos e, em seguida, utilizam voos para os países de destino; as chegadas irregulares de refugiados e migrantes, muitas em barcos, são bastante menos do que as processadas com vistos válidos e mediante documentação legal. Não reconhecer essa realidade é uma atitude racista.

Remessas crescem

Estudando os dados do relatório do PNUD verifica-se que 58% dos imigrantes africanos na Europa tinham emprego, habitação ou estudavam quando decidiram sair; a maioria tinha trabalho e auferia salários competitivos. O que os levou a partir foi a insegurança nos seus países e a circunstância de sentirem que poderiam ganhar mais em outros lugares. Mais de metade dos migrantes auscultados no estudo foram apoiados financeiramente pelas famílias para poderem fazer a viagem e 78% enviaram dinheiro de volta para os seus.

As estatísticas do Banco Mundial revelam que as remessas dos migrantes para os países africanos estão a crescer. Seguindo uma tendência global, a África Subsaariana recebeu mais divisas em remessas de migrantes do que por investimento estrangeiro (IED).

Ainda de acordo com o Banco Mundial, em 2018 as remessas para a África Subsaariana totalizaram 46 mil milhões de dólares, quase 10% mais do que em 2017. Os países que receberam maiores volumes de remessas foram Comores, Gâmbia, Lesoto, Cabo Verde, Libéria, Zimbabwé, Senegal, Togo, Gana e Nigéria.

O fluxo total de investimento estrangeiro na África Subsaariana foi de 32 mil milhões de dólares, segundo a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD); tratou-se de um aumento de 13% em relação a 2017, mas é um volume significativamente menor que o da remessa de migrantes.

Os migrantes que enviam dinheiro para as suas famílias são mais importantes, portanto, do que as empresas e bancos que investem nesses países. Pelo que se torna lamentável que os banqueiros sejam mais bem tratados que os migrantes.

Crise da dívida africana

A África está no limiar de uma grande crise da dívida.

A última grande crise da dívida africana aconteceu na década de oitenta do século passado, como parte da crise mais abrangente da dívida do Terceiro Mundo. No período da descolonização, a África – com as suas riquezas saqueadas pelo colonialismo – teve de contrair empréstimos para o seu desenvolvimento; os fundos foram imensos, mas o que agravou ainda mais a situação foi a manipulação da dívida em dólares através da Taxa Interbancária de Empréstimos de Londres (LIBOR) e das taxas de juro praticadas pelo Tesouro dos Estados Unidos.

A subida vertiginosa da dívida nos anos oitenta deu origem a um longo período de austeridade e sofrimento. Essa dívida simplesmente não poderia ser paga enquanto as grandes corporações multinacionais continuassem a roubar os recursos africanos e se recusassem a pagar impostos sobre essa drenagem de riqueza. Foi por essa razão que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) criaram os programas Países Pobres Altamente Endividados (PPAE) e Iniciativa Multilateral de Alívio da Dívida (MDRI), respectivamente em 1996 e 2005. Em 2017, esses programas tinham fornecido 99 mil milhões de dólares para reduzir as dívidas africanas de uma relação dívida/PIB de 119% para 45%.

Entretanto, não se efectuou qualquer mudança estrutural – nenhum ataque aos preços incorrectos das transferências, à erosão de base e à transferência de lucros (PEBS), mecanismos utilizados pelas multinacionais ocidentais para prosseguirem a pilhagem do continente africano. Quando se atingiu período do choque dos preços das commodities, em 2014, muitos países africanos começaram a deslizar gradualmente para uma nova crise da dívida. O formato da actual dívida não inclui apenas dívida pública, mas também dívidas do sector privado em proporções muito elevadas, triplicando de 35 mil milhões de dólares em 2006 para 110 mil milhões em 2017, segundo dados do Banco Mundial. O serviço da dívida aumentou brutalmente, o que se traduz em redução dos investimentos em educação e saúde e maior dificuldade de acesso de pequenas empresas privadas ao crédito.

De acordo com dados do Banco Mundial, actualmente metade dos 54 Estados africanos lutam contra altas taxas de dívida em relação ao PIB, muitas delas acima dos 60%, a barreira que revela a existência de uma crise. O aumento da dívida disparou alarmes em todo o continente.

As consequências

Isto significa que se houver uma crise financeira no Ocidente este retirará investimentos de África, mergulhando a região noutra grande crise da dívida, forçando milhões de pessoas a procurar melhores oportunidades para obter receitas de sobrevivência. Famílias e países de África passaram a contar com remessas. Elas fazem parte do tecido estrutural das finanças de cada Estado.

O racismo contra o imigrante na Europa é um problema enorme e deve ser combatido por si só.

Mais profundo do que isso, porém, é outro problema que cresceu como resultado da falta de uma política pós-colonial eficaz – o problema estrutural do saque continuado dos recursos de África e da falta de financiamento no continente de modo a que este possa desenvolver o próprio potencial. Permitir que empresas multinacionais roubem recursos africanos e que bancos estrangeiros emprestem a África em condições praticamente usurárias cria um ciclo de crise que se transforma em migrações e envio de remessas como remendos.

A Europa não tem qualquer crise de refugiados ou de migração. A verdadeira crise está em África, onde o saqueador – geralmente uma empresa europeia – continua a minar a capacidade de o continente respirar por si próprio.

Vijay Prashad*, Independent Media Institute/Globetrotter/O Lado Oculto

*Historiador, editor e jornalista indiano. Director do Tricontinental: Institute for Social Research