Oitenta mil israelenses foram às ruas no último sábado, 14 de janeiro, contra a reforma judicial pretendida pelo novo governo sionista liderado por Benjamin Netanyahu, em Tel Aviv e outras cidades. Não há lembrança de atos massivos contra a colonização e o apartheid a que estão submetidos os palestinos há mais de 75 anos, nem mesmo contra massacres a Gaza. Se a mobilização, por um lado, revela o aprofundamento da crise por que passa há anos o Estado racista de Israel, por outro, traz embutida a farsa de que este seria democrático.

 

Israelenses protestam contra as reformas judiciais do premiê Benjamin Netanyahu e de sua coalizão de extrema-direita, na praça Habima, em Tel Aviv, 14 de janeiro de 2023 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]

Os manifestantes protestam contra o que denominam ameaça a esse sistema, uma vez que decisões da Suprema Corte podem ser anuladas por maioria simples no Knesset (parlamento) com a reforma. No entanto, Israel se constituiu como um Estado judeu, a partir da expulsão violenta de 90% dos palestinos árabes não judeus, que eram maioria. Essa população foi substituída por imigrantes judeus, sobretudo da Europa do Leste e Central. Todas as instituições servem para manter esse projeto colonial e regime de apartheid, inclusive obviamente a Suprema Corte.

O Estado racista de Israel foi formado em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada, consolidando a Nakba (catástrofe palestina), que continua até hoje. No processo de colonização, cujo início antecede esse trágico momento para a história da humanidade, foi construído todo o aparato institucional para assegurar as bases e manutenção de um estado etnicamente homogêneo de maioria judaica.

Dia da Nakba, 1948 [Carlos Latuff/Middle East Monitor]

 

Assim, no que passou a ser chamado Israel, os remanescentes palestinos da expulsão violenta de sua população em 1948 passaram a viver sob rígido controle militar até, a partir de 1966, a fachada atual de cidadania árabe-israelense. Constituem hoje 1,9 milhão de pessoas submetidas a cerca de 65 leis racistas, sem os mesmos direitos democráticos que os manifestantes que vão às ruas reivindicam.

Os palestinos que vivem nos territórios ocupados em 1967 – Gaza, Cisjordânia e Cidade Velha de Jerusalém –, que somam 22% da Palestina histórica, não têm qualquer direito humano fundamental garantido, muito pelo contrário. Além disso, há 5 milhões de palestinos em campos de refugiados e milhares na diáspora impedidos do direito legítimo de retorno às suas terras. Contudo, para os israelenses que estão nas ruas, sua “democracia” está ameaçada. Vidas palestinas não importam.

Por óbvio, qualquer reforma – inclusive a judicial anunciada pelo governo de coalizão com Netanyahu à frente – deve estar a serviço de acentuar ainda mais o apartheid institucionalizado. Há quem alegue, por exemplo, que facilitaria a construção de assentamentos ilegais na Cisjordânia, uma vez que recursos na Suprema Corte podem barrá-los. Há hoje, obviamente, a possibilidade de advogados israelenses de direitos humanos ingressarem com ações legais, o que acaba por manter a representação de um estado democrático.

No entanto, se a Suprema Corte de fato atuasse para barrar os colonatos, mesmo considerando apenas esse aspecto, os palestinos na região não estariam enfrentando a contínua expansão colonial agressiva, vendo suas terras serem dia a dia subtraídas.

Em artigo publicado na Al Jazeera, Yara Hawari traz alguns exemplos da atuação da Suprema Corte que são reveladores: a legalização de assentamentos, como citado em julho de 2018, que abriu caminho para mais anexação de terras palestinas, e a aprovação da retirada da cidadania dos palestinos de 1948 no mesmo mês, caso sejam considerados “desleais”. Durante a Marcha do Retorno, iniciada em 2018, também conforme a autora, o tribunal decidiu naquele ano que a ação das forças de ocupação na repressão aos protestos atendia a “princípios de necessidade e proporcionalidade”. A colunista lembra que os disparos indiscriminados mataram em dois anos da Marcha do Retorno ao menos 214 palestinos desarmados e feriram dezenas de milhares.

Israel tem assassinado palestinos e palestinas diariamente – apenas nos primeiros dois dias de 2023 foram oito; até o momento, notícias dão conta de 17. A matança não cessa, e não há qualquer punição ou questionamento por parte da mesma Suprema Corte.

A mudança pode, quando muito, acelerar a limpeza étnica em curso. Não obstante, os manifestantes que reivindicam defesa de sua democracia não demonstram estar preocupados com a situação dramática dos palestinos. Caso contrário, romperiam com o sionismo, defenderiam o fim do projeto colonial e regime de apartheid.

Sem ilusões. Essa mesma sociedade tem como peso nas eleições, como já amplamente demonstrado, a defesa do Estado de Israel. Sempre que um pleito se aproxima, os candidatos lançam nova ofensiva a Gaza, sob a tal “ameaça à segurança nacional”. Evidentemente, há a disseminação ideológica orientalista que procura alicerçar e alimentar a cultura do medo contra os palestinos, com mentiras como de que são terroristas, bárbaros, antissemitas, que desejam empurrar os judeus ao mar.

A ideologia de que Israel se constitui na única democracia do Oriente Médio vai ao encontro das representações construídas para a Nakba – de que se trataria, portanto, de um oásis ocidental, um posto avançado da civilização contra a barbárie. Mas há também benefícios materiais para que não se retire a venda dos olhos.

Não há uma única manifestação – a não ser da minoria antissionista e dos palestinos – nos territórios ocupados em 1948 contra a contínua Nakba, cuja face mais perversa é revelada em Gaza. São 2 milhões de palestinos em uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, sob cerco desumano há 15 anos, em que a crise humanitária é dramática. Poucas horas de energia por dia, infraestrutura destruída por bombardeios frequentes, 96% da água contaminada. Em 2015, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) alertava que Gaza poderia se tornar inabitável em cinco anos. Nada disso tem indignado ou comovido uma sociedade construída sob a égide de um projeto colonial.

Supremacia judaica como base

É no mínimo esquizofrênica a noção de democracia sionista – baseada desde sempre, como afirmou Joseph Massad em artigo ao Middle East Eye, “em uma aritmética de supremacia judaica e limpeza étnica”.

No mesmo texto, ele descreve que, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Organização Sionista Mundial (OSM) revelaria as peculiaridades da tal democracia sionista que se planejava construir: “A democracia na América geralmente significa regra da maioria, sem levar em conta a diversidade de tipos ou estágios de civilização ou diferenças de qualidade … A maioria numérica na Palestina hoje é árabe, não judia. Qualitativamente, é um simples fato que os judeus são agora predominantes na Palestina e, dadas as condições adequadas, também serão predominantes quantitativamente em uma ou duas gerações.”

Ainda conforme descreve Massad, a OSM acrescentaria: “Mas se a concepção aritmética grosseira da democracia fosse aplicada agora ou em algum estágio inicial no futuro às condições palestinas, a maioria que governaria seria árabe, e a tarefa de estabelecer e desenvolver uma grande Palestina judaica seria infinitamente mais difícil.” O próprio autor observa que a organização sionista ignorou até mesmo o fato de que “os nativos americanos e os afro-americanos, entre outros, não foram incluídos na versão americana de ‘democracia’”.

Em outras palavras, o regime que israelenses protestam para preservar não se equipara sequer à democracia burguesa, própria do sistema capitalista, de exploração e opressão. No Brasil, por exemplo, observa-se apartheid social, genocídio pobre e negro nas periferias, extermínio indígena, ataque a direitos da esmagadora maioria da classe trabalhadora, enquanto 1% da sociedade fica cada vez mais rica.

É a democracia dos ricos em uma sociedade de classes. Contudo, não há no Brasil todo um aparato estatal voltado à colonização e apartheid, uma “democracia” construída para supremacia e limpeza étnica, como no caso de Israel. Não se trata de um projeto colonial e regime de segregação institucionalizado. Por exemplo, a Constituição Federal tem um capítulo bastante avançado sobre direitos e proteção dos indígenas. E legalmente o racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível. Nada disso está presente na tal “democracia” sionista.

Chama atenção, a despeito disso, a presença de algumas bandeiras palestinas nos protestos, em um mar de israelenses. Podem ser sionistas de esquerda – outra esquizofrenia –, que falam em paz e diálogo, insistem na injusta desde sempre e já morta “solução de dois estados”, buscando normalizar o projeto colonial e recusando a existência de um regime de apartheid, na defesa da sua “democracia”. Afinal, não era um governo de ultradireita à frente da Nakba de 1948 e da Naksa (revés, como é referida a ocupação militar de 1967), mas sim os trabalhistas, identificados com o sionismo de esquerda.

A bandeira palestina, símbolo de resistência que não se dobra e luta por libertação nacional, está, portanto, descolada desses protestos – não deveria ser usada para a normalização. Mesmo assim, sua presença foi hostilizada pelos manifestantes, segundo relata Yara Hawari no artigo publicado no portal da Al Jazeera.

Se há algo positivo é o aprofundamento da crise do sionismo. Embora não seja um problema de governo, mas da natureza do Estado de Israel, a ultradireita no poder é a face explícita do enclave militar do imperialismo, da essência do projeto colonial e de apartheid. Um regime de supremacia e limpeza étnica, a “democracia” sionista que manifestantes – inclusive lideranças implicadas em crimes contra a humanidade como o ex-primeiro-ministro Benny Gantz e a ex-ministra Tzipi Livni – veem ameaçada e lutam para preservar.

MEMO