Num desses jogos que nestes dias de confinamento circulam polas redes sociais perguntam, em meio a outros interrogantes, qual é a capital de Israel. A única resposta que o aplicativo dá por boa é Jerusalém. Mais um erro no contador de quem saiba que Jerusalém/al-Quds é, na realidade, a capital da Palestina. O interessante da anedota é que permite refletir sobre o modo como a geopolítica e o imperialismo se disseminam e impõem a sua normalidade até no mais intranscendente: um jogo para redes sociais, um «erro» no marcador da partida.

 

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O que não é assim tão intranscendente é a realidade palestiniana. Milhares de presas e presos políticos nos cárceres —crianças incluídas—, muros da vergonha que cercam bairros e vilas inteiras atomizando-as e dissolvendo o país em ilhas desconexas e cada vez mais pequenas ou a incapacidade duma Autoridade Nacional Palestiniana refém de uns acordos que já apenas se cumprem do lado árabe dão conta da eficácia do sionismo para se impor pola força, de mãos dadas com os Estados Unidos. Não só na política do simbólico, como na realidade material concreta.

Desde que a ANP decretou o estado de emergência, e aproveitando que outros países se viraram para dentro, vão já mais de 200 incursões de colonos e grupos militarizados em bairros e vilas da Cisjordânia. Nessas incursões, famílias inteiras perdem as suas casas e as suas terras. Alguns perdem a vida tentando defender-se. Muitos perdem a liberdade e são amontoados em cadeias onde Israel pratica uma oportuna inatividade médica que permite ao coronavírus espalhar-se sem dificuldade e, de passada, reduz a superlotação. Em Jerusalém Oriental, os 150.000 palestinos e palestinas que vivem sob controlo militar israelita não têm acesso aos minguados serviços médicos da ANP, polo que nem sequer foram ainda examinadas. Não existem. Em Gaza, o maior campo de concentração do planeta, o sistema de saúde, já dantes enfraquecido por treze anos de bloqueio total, colapsou definitivamente há semanas.

2020 passará à história do mundo como o ano da COVID-19, sem dúvida. A única diferença —a enorme diferença— é que, para a Palestina, pode ser também o ano da definitiva anexação dos assentamentos ilegais israelitas, que continuaram crescendo após 1999, quando foi estabelecido, alegadamente, o último colonato «legal». Benjamin Netanyahu pretende fazê-lo agora, aproveitando os 18 meses em que continuará como primeiro ministro antes da vez de Benny Gantz. Se a empreitada prosperar, mesmo com as advertências de ilegalidade por parte da ONU, da Liga Árabe ou até de uma silenciosa UE, significará que Israel passa a considerar legais esses assentamentos, integrando-os e iniciando o deslocamento definitivo da população árabe. Como é de esperar, o povo palestino não entregará o país sem resistência.

A poucos dias de comemorarmos mais uma Nakba —a «catástrofe» que designa o éxodo palestino de 1948— qualquer aproximação à realidade desse povo sob ocupação relativiza, sem dúvida, as nossas queixas, sem que isso signifique que tudo aqui esteja certo, ou que não haja motivos para a crítica. Mas sejamos justos: a crise sanitária, económica e social é sensivelmente pior se os grandes poderes do mundo justificam e amparam uma ocupação de mais de sete décadas que esnaquiza o país, que nos expulsa das nossas casas, que nos impede qualquer iniciativa de governo ou que nos corta qualquer liberdade de movimento com checkpoints aleatórios e fardados com as armas prontas para qualquer abuso. Por isso, não é o momento de deixarmos o internacionalismo na gaveta, por mais problemas que houver em casa. Exigirmos o fim da ocupação não faz mais sentido porque o povo palestiniano esteja a sofrer esta crise da pior maneira possível. Mas tampouco menos. Dizia Samih al-Qásim, no seu célebre poema: «talvez na nossa aldeia permaneças / como um terrível pesadelo, / inimigo do Sol! / Mas não transigirei / resistirei / até à última pulsação das minhas veias». Na Palestina continuam a resistir, 72 anos depois da catástrofe. E nós devemos continuar com eles e elas, até ao fim da ocupação.