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O jornalista polonês Piotr Pacewicz se vê mais uma vez como alvo do governo. Se antes o risco era ser preso por rodar uma revista clandestina, agora ele e seu site estão sendo processados por “humilhar uma figura pública do governo”. Ilustração: João Brizzi/The Intercept Brasil

Acostumado a trocar de carro duas ou três vezes a fim de despistar a polícia até chegar ao apartamento em que funcionava a redação da Tygodnik Mazowsze, revista que ajudou a fundar e que rodava clandestinamente durante o regime comunista polonês, o jornalista Piotr Pacewicz se vê mais uma vez como alvo do governo. Se antes o risco era ser preso, agora a pressão vem da justiça: ele e seu site, o OKO.press, estão sendo processados por terem publicado uma matéria que segundo as autoridades “humilhou uma pessoa pública”, um juiz de direito. Valendo-se, por sinal, de uma lei da época do comunismo.

Conversamos com Pacewicz no fim de setembro, durante a sua passagem por São Paulo para o Festival Piauí de Jornalismo. Falamos da sua “Vaza Jato” polonesa, em que vazamentos de conversas de WhatsApp capitaneados pelo OKO.press resultaram na renúncia do vice-ministro da justiça, e da situação da Polônia de hoje. O país, ele contou, se vê às voltas com um governo conservador e autoritário e se parece, em vários pontos, com o Brasil de Jair Bolsonaro.

Os direitos humanos, a população LGBT, as mulheres e a imprensa independente, em especial, são vistos como inimigos pelo Lei e Justiça, o PiS, partido de extrema-direita do qual o presidente Andrzej Duda é aliado. Também como aqui, a divisão entre os apoiadores e a população contrária ao governo racha a sociedade, com a diferença de que enquanto a nossa economia patina, a polonesa bate recordes de crescimento e o apoio ao PiS, que levou a maioria das cadeiras nas eleições parlamentares no país neste fim de semana, segue crescendo.

Apesar do cenário sombrio que descreve, Pacewicz, que tenta entender a onda de “autocracias” que tem tomado o mundo, defende a necessidade de se manter a esperança e vê em um jornalismo comprometido – e que abandone a falsa ideia de objetividade – uma das principais formas de fazer frente a essa situação. “Em países como o Brasil e a Polônia hoje você não pode se dar ao luxo de ter esse tipo de abordagem da profissão, em que você vai escrever o que um lado disse e o que o outro disse e só”, diz. “Estamos tentando participar dessa batalha para manter as regras democráticas vigentes o máximo possível e em alguns momentos nós vencemos.”

 

 

POLAND-POLITICS-SOCIAL-HOLOCAUST-LAWPara o presidente da Polônia, Andrzej Duda, os direitos humanos, a população LGBT, as mulheres e a imprensa independente, em especial, são os inimigos a serem combatidos.Foto: Janek Skarzynski/AFP/Getty Images

 

Intercept – O senhor atuou na Tygodnik Mazowsze, uma hoje histórica revista de oposição à ditadura comunista da Polônia dos anos 1980. Passados 40 anos, seu país vive sob um governo claramente autoritário – o PiS é o primeiro partido, desde o Partido Comunista, a concentrar o poder na Polônia. Que semelhanças o senhor vê entre esses dois governos?

Piotr Pacewicz – Há sim algumas semelhanças, e também no tipo de trabalho que tenho feito. A Tygodnik Mazowsze era um jornal clandestino, provavelmente o maior do mundo em termos de circulação. Imprimíamos cerca de 120 mil cópias em uma série de gráficas ilegais. A polícia tentou nos parar mais de uma vez, mas, como éramos muito cuidadosos, conseguimos não ser capturados até o fim da Lei Marcial. Tínhamos essas técnicas, como usar dois ou três carros, passar por mais de um prédio, para chegar até o apartamento secreto em que a redação funcionava. Na época, tínhamos o apoio desse imenso grupo de leitores, de apoiadores, e temos o mesmo agora. Os dois grupos nos pagam o quanto querem. É um modelo financeiro bem pouco usual. Geralmente você tem paywall, diferentes formas de persuadir as pessoas a pagar pelo conteúdo, e nós apenas pedimos “pague o quanto você quiser, se você quiser”. A motivação das pessoas também é muito parecida. Recebemos muito apoio, muitas informações, dos nossos leitores. A sensação é de que eles não estão apoiando apenas as notícias que recebem, mas um certo conjunto de valores que está por trás do nosso trabalho.

E como o senhor compara exercer o jornalismo naquela época e hoje em dia? Há semelhanças? Quais as diferenças? É mais arriscado ser um jornalista na Polônia dos anos 1980 ou em 2019?

Bom, vocês os conhece [aos governantes autoritários]. Não é tão assustador. Nos anos 1980 você não chegava a correr risco de ser assassinado ou algo assim, mas poderia acabar na prisão por um ou dois anos e, claro, poderia perder o seu outro emprego. Não era bem uma questão de coragem, mas de gosto. O regime comunista tinha uma face muito feia, vamos colocar assim. Era muito desagradável, muito desumano. Então estar trabalhando clandestinamente te dava uma certa satisfação de saber que você estava fazendo algo bom, lutando o bom combate. Não gosto desse discurso heróico, dessa história de que ser um jornalista trabalhando na clandestinidade na Polônia durante o regime tornava você um herói, mas, claro, as diferenças entre hoje e aquela época são imensas. Naquela época nós conseguíamos as informações diretamente com nossos leitores. Era uma espécie de estrutura solidária. Eles nos mandavam, em grande parte, informações sobre a repressão: pessoas sendo presas, sendo espancadas, sendo assediadas das mais diversas formas e, também, atos de resistência. A revista era, em grande medida, uma crônica da resistência e da luta do movimento Solidariedade.

 

Ainda temos eleições, mas boa parte dos elementos dos sistemas democráticos estão sendo destruídos ou manipulados.

 

Agora, claro, temos a internet e uma possibilidade imensa de acesso às mais diversas informações e fontes de dados [“E somos legais!”, lembra a esposa de Piort, a economista Alicja Pacewicz, que acompanha a entrevista]. Isso. Hoje trabalhamos como um fundação, tocando o site e tudo o mais. Visitei o site de vocês. Vi que temos muitas semelhanças em termos de temas. Nós também estamos fazendo análises dos nossos ‘bolsonaristas’. E buscando semelhanças, até mesmo com o regime comunista, mas em especial com outros governos populistas ao redor do mundo. Hoje temos essa espécie de epidemia de autocracia. “Autocracia eleitoral”, como define o professor Jan-Werner Müller, que foi nosso convidado aqui na Polônia. Quero dizer, nós ainda temos eleições, mas boa parte dos elementos dos sistemas democráticos estão sendo destruídos ou manipulados. Estamos, de alguma forma, tentando participar dessa batalha para manter as regras democráticas vigentes o máximo possível e em alguns momentos nós vencemos.

Mas é mais perigoso ser um jornalista hoje do que era no passado?

Me tomando por exemplo: eu não tenho medo de ser colocado na cadeia. Posso estar sendo otimista. Por outro lado, estou sendo processado por uma reportagem com base em uma lei, da época do comunismo, que diz que você pode pegar até três anos de prisão por humilhar uma pessoa pública no poder. Fui acusado por um juiz da suprema corte – parte da suprema corte hoje é controlada pelo governo, há uma grande batalha em andamento no sistema judicial, porque o governo quer demolir o Estado de Direito na Polônia. Esse cara é parte da nova elite pró-governo e ele estava participando de uma campanha no Twitter e em outras redes sociais muito feia contra os juízes independentes da corte. Foi ideia dele escrever cartões com “Fuck off”, para a presidente da suprema corte, uma grande mulher, muito corajosa. Ela recebeu milhares de e-mails e cartões postais com “Fuck off”, “vá embora”. Depois que publicamos um texto sobre isso, ele fingiu que a ideia, o tuíte que sugeriu isso, não foi escrito por ele etc., e falou com os procuradores para nos processarem.

.Na Polônia há uma luta entre a mídia pública, que é controlada pelo governo, por políticos, e a mídia independente. Esse governo tornou a mídia pública uma ferramenta de propaganda com incrível intensidade e estupidez e, de alguma forma, isso tem funcionado. Como um portal de notícias e de checagem nós estamos tentando desbancar todas essas mentiras e manipulações e também tentando tocar nossas próprias investigações para conseguir informações escondidas. Nós acabamos, como no passado, fazendo a crônica das diferenças formas de revolta social e resistência.

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mazowsze-prints-1571078750Edições do Tygodnik Mazowsze, semanário polonês do qual Pacewicz fazia parte. A revista chegou a ter 120 mil cópias semanais rodadas em uma série de gráficas ilegais. Imagem: Europeana 1989/CC BY-SA 3.0 PL

 

No Brasil, mesmo que o governo quisesse aparelhar a imprensa pública, ela acabaria sendo bem menor que a mídia privada. Quão grande é a imprensa pública na Polônia?

É grande e muito poderosa. É TV, rádio, tudo financiado com dinheiro público, bilhões de zlotys [moeda polonesa], e com uma presença muito forte por toda a Polônia, em especial nas cidades menores e em locais em que boa parte da mídia independente não chega. Eles vendem uma narrativa de “repolonização” da Polônia, muito parecida com o que tem acontecido na Hungria, onde esse processo está muito mais avançado. Aqui ainda temos uma grande rede de televisão cujos donos são americanos, muito séria, e boa parte dos principais jornais diários são independentes assim como as revistas semanais.

Seu site, o OKO.press, publicou mensagens trocadas por WhatsApp que envolveram o vice-ministro da justiça e levaram à demissão dele. Gostaria que nos contasse brevemente como foi esse caso.

Trata-se do vice-ministro da justiça Lukasz Piebiak, que renunciou ao cargo após ser revelado que ele era o líder desse grupo que tem usado as redes sociais para atacar juízes independentes, que defendem o estado de direito. Esse caso tem um enredo de cinema. Todas as informações foram vazadas por uma jovem que devia ter 27, 28 anos na época, talvez menos, e que era uma entusiasta desses grupos de direita, muito habilidosa em mídias sociais. Ela era a “soldada ideal”. Ela teve um caso com um desses maus juízes e descobriu que estava sendo traída e que ele a usou para desenvolver e espalhar esses ataques de ódio. Ela ficou furiosa e chegou a publicar fotos do juiz nu. Depois disso, decidiu que era hora de contar a história toda e procurou grupos de mídia independente. Ela contou como eles eram organizados, como se comunicavam uns com os outros, o papel do vice-ministro de justiça… Ele era um figurão, o braço direito do próprio ministro da justiça. E a “Little Emi”, como era o seu apelido, começou a falar, a falar, a falar… Falou com vários veículos independentes, sendo que a primeira entrevista foi para a gente. Hoje ela segue escondida por temer por sua vida.

Como o governo reagiu?

É até engraçada a forma como eles decidiram se explicar para a opinião pública. Esse caso foi devastador para a imagem do partido do governo, ou ao menos deveria ser. Mas, mesmo no caso envolvendo o ministro da justiça, o governo tem dito simplesmente que não sabia de nada. Piebiak era o braço direito do ministro. Há momentos nas mensagens em que ele fala coisas como ‘é preciso informar ao chefe, o chefe vai ficar feliz com isso’. Quem é o chefe nós podemos deduzir. Eles também têm dito que isso não tem nenhuma relação com política. Que é uma briga entre juízes – o grupo que criou esses ataques de ódio era formado por juízes atacando juízes independentes. Eles dizem, ‘você sabe, juízes são assim mesmo, eles brigam o tempo todo’.

 

Há alguns dias, na ONU, em Nova York, o nosso presidente chegou a defender a política ambiental de Bolsonaro!

 

Aqui no Brasil, o Intercept está liderando um grupo de veículos que publica conversas trocadas por outro aplicativo, o Telegram, entre procuradores e o juiz de uma famosa operação contra a corrupção, chamada Lava Jato. As conversas mostram várias irregularidades, inclusive conluio entre acusação e juiz. Esse juiz é hoje ministro da justiça do governo brasileiro e a reação do governo brasileiro tem sido negar às mensagens e nos acusar de ter cometido um crime ao obter o material. Vê algum paralelo?

Me parece uma forma primitiva e estúpida de lidar com isso. Aqui eles se comparam com o governo anterior, inventando histórias falsas. Gostam de dizer ‘nós é que somos os políticos honrados, o partido honrado. Se fizermos algo errado, nós vamos renunciar’. E, claro, há muitas semelhanças entre o governo de vocês e o nosso em termos de ideologia. Há alguns dias, na ONU, em Nova York,  o nosso presidente chegou a defender a política ambiental de Bolsonaro! Além de outras semelhanças, como o papel da religião. Bolsonaro costuma dizer “Deus acima de todos”. O partido do governo aqui tem uma mensagem semelhante, ainda que um pouco mais sofisticada.

A descrição do que está havendo na Polônia após a ascensão da extrema direita é muito parecida com a que vivemos no Brasil: numa sociedade polarizada, o governo fala em “contrarrevolução cultural”, adota precauções contra a imigração (são dois países em que há mais emigrantes que imigrantes), em censura à educação sexual nas escolas, condena o ambientalismo. E ainda há Donald Trump, Matteo Salvini, na Itália, os Le Pén, o Brexit… Caminhamos de fato para a ruína da democracia? Ou o senhor é menos pessimista a esse respeito?

Há uma diferença muito interessante e muito importante entre esperança e otimismo. O otimismo, por assim dizer, é mais racional e olhando de um ponto de vista racional você vê chances muito pequenas de que as coisas melhores. Claro, enquanto no Brasil a situação econômica está muito ruim, na Polônia a economia está florescendo e crescendo o tempo todo. Para além disso, a minha experiência de vida me diz que você deve manter a esperança porque alguma coisa vai acontecer. No final dos anos 1980, quando eu estava nessa revista clandestina, nossa circulação estava caindo, nosso apoio estava caindo, as pessoas estavam cansadas de todos esses protestos que não davam em nada, do movimento Solidariedade e tudo o mais… Havia uma apatia social no ar. E de repente nós entramos no próximo estágio da transformação, e da clandestinidade começamos a participar de mesas redondas, de conversas. Participamos de um evento em 1989 em que começamos a negociar com o comunismo como fazer a transição. Foi uma surpresa tão grande que ninguém acreditava que isso estava realmente acontecendo. Você deve sempre manter a esperança em mundo melhor. E há alguns argumentos para isso. O primeiro argumento é o desastre climático que estamos vivenciando. Na Polônia, por exemplo, as pesquisas mostram que a crítica contra a política ecológica do governo está muito espalhada, chegando até aos apoiadores do governo, em especial os mais jovens. Se você pensar que a geração mais jovem de homens é muito voltada à extrema-direita, isto é um ponto importantíssimo. É bom frisar que quem apoia o governo são homens, e não mulheres, jovens. A resistência das mulheres é um movimento muito forte. Então as fontes de esperança são as pessoas mais jovens, a crise climática e as mulheres. E, você sabe, as coisas inesperadas que irão acontecer, porque elas com certeza acontecerão.

 

Você deve sempre manter a esperança em mundo melhor. E há alguns argumentos para isso.

 

Como o Brasil, a Polônia é um país de maioria católica, o que dá ensejo a governos como os atuais, que se dizem defensores “da família”, mas apenas de um tipo de família: a formada por homem e mulher. Quão grave se tornou a homofobia na Polônia de hoje?

O governo tem usado a homofobia como uma ferramenta política, de uma forma parecida com o que Bolsonaro faz. Só que aqui no Brasil vocês têm o casamento entre pessoas do mesmo sexo legalizado e antes disso legalizaram as uniões estáveis. É interessante, porque enquanto há por parte do governo polonês uma campanha homofóbica radical horrenda e uma defesa do que seria a família tradicional polonesa, com homem e mulher casados e com dois filhos, a realidade do país é completamente diferente. Cheguei a contar quantas famílias na Polônia se encaixavam nesse modelo. Não chegam a 60%, especialmente porque temos taxas de fertilidade muito baixas, com a maior parte das famílias com um ou nenhum filho. E também temos muitos homens e mulheres solteiros no país. E ainda uma taxa de divórcio de 60% ao ano no país. O modelo é completamente abstrato, não se encaixa na realidade. Ainda assim ele é usado com ferramenta política em conjunto com o slogan “Mãos longe das nossas crianças”. Foi espalhada a ideia de que casais gays estariam adotando crianças para abusar delas. Por mais absurda que seja, essa narrativa nojenta se espalhou e algumas pessoas acreditam nela. E, assim como no Brasil, há uma campanha contra a sexualização das crianças. O governo diz que a oposição tenta “sexualizar” as crianças ao defender uma educação sexual apropriada. A única educação sexual possível para os conservadores de extrema-direita é a pureza, a virgindade e tudo o mais, os gays, as lésbicas, os transexuais, são vistos como algo errado. Eles são o mau. Ao mesmo tempo há um crescimento da aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Está agora em 45% e aumentando, de acordo com as pesquisas. Também temos muitos protestos contra a homofobia e pelos direitos da população LGBT. No último sábado, por exemplo, dois de nossos repórteres apanharam feio quando cobriam uma espécie de parada gay em uma cidade do interior. E quem bateu neles foram pessoas contrárias a marcha – sempre há esses grupos de extrema-direita, tentando conter esses movimentos, as paradas gay.

 

Pro-Democracy Protesters March In WarsawAssim como no Brasil, a sociedade polonesa está “rachada”. Quando foram às ruas para protestar contra o PiS, que ficou com quase metade das cadeiras do Parlamento nas eleições desse fim de semana, poloneses levantaram o símbolo da União Europeia junto da bandeira de seu país. Foto: Sean Gallup/Getty Images

 

E como está a questão dos direitos reprodutivos das mulheres, em especial do aborto?

O aborto é legal em situações muito limitadas. A maior parte dos casos envolve situações em que o feto está doente e o número de abortos desse tipo no país é menor do que 1.000 por ano. As mulheres polonesas usam muito do chamado “turismo do aborto”. Elas viajam para outros países da União Europeia em que a legislação é diferente, em especial a República Tcheca, para abortar. Agora há uma luta da igreja e de setores conservadores para impedir que mesmo esses poucos casos em que o aborto é permitido sejam proibidos. Há pouco tempo o governo aprovou uma lei que oferece cerca de mil dólares de compensação para uma mulher que optar por levar até o fim a gestação de um feto com má formação. Esse foi um dos nossos maiores furos e gerou muito ódio contra nós. “Como vocês podem escrever algo assim?” Se espalhou como o fogo na Amazônia. Era incrível, algo puramente ideológico e, ao mesmo tempo, muito cruel. No geral, eles têm medo das mulheres porque boa parte dos protestos mais bem sucedidos no país partiu delas. Depois desse caso, quando tentaram tornar a legislação contra o aborto ainda mais dura, as mulheres foram para as ruas protestar, mobilizaram a sociedade noite e dia, e conseguiram impedir o governo, que voltou atrás. Esse é um dos poucos exemplos de uma ação do governo que protestos nas ruas conseguiram mudar. Outro exemplo bem sucedido de protesto foi quando grupos de jovens se reuniram contra a derrubada de uma das florestas mais antigas do país. Um grupo de ativistas, a maioria da Polônia, foram até essa floresta tentar impedir a derrubada das árvores. Esse protesto foi muito forte e se manteve por meses. Finalmente, a União Europeia decidiu pedir ao parlamento polonês que parasse com esses cortes. Nós temos essa vantagem em relação a vocês: somos parte da União Europeia. Ainda que ela tenha um poder limitado – a legislação do aborto, por exemplo, é nacional –, há diversos julgamentos nos tribunais europeus que a Polônia perdeu, sendo obrigada a retroceder em algumas mudanças que eles queriam implementar. A UE está tentando disciplinar o governo polonês, fazê-lo seguir o Estado de Direito.

 

Eles têm medo das mulheres. Quando tentaram tornar a legislação contra o aborto ainda mais dura, elas foram para as ruas protestar, mobilizaram a sociedade e conseguiram impedir o governo.

 

Nos chamou a atenção a descrição do OKO.news. Separamos um trecho:  “Somos uma ferramenta de controle cívico do poder. Populismo, fundamentalismo de extrema direita e nacionalismo se fazem acompanhar por meias-verdades, distorções e palavras ditas sem responsabilidade. Como em vários lugares do mundo, enfrentamos uma paralisia democrática. Mais e mais grupos sentem que seus direitos estão sendo ou serão violados. Nossa resposta é buscar o fundamento do jornalismo – a verdade”. Como fazer isso no dia-a-dia?

Primeiro de tudo você tem que manter o seu entusiasmo. E você não pode concordar com o mau. Você tem que estar alerta para todo e qualquer caso de maldade, e há muitos deles. Você pode acabar alerta o tempo todo. Isso, claro, se você quiser ser um jornalista, porque você não precisa ser um jornalista. Mas se você quer ser, um esse é o seu dever. Em países como o Brasil e a Polônia, hoje, você não pode se dar ao luxo de escrever o que um lado disse e o que o outro disse e só, sem dar nenhuma pista aos leitores de onde está a verdade, quem está certo. Na semana passada, Macron acusou o governo polonês de ser anti-ecológico, o que é 100% verdade. E o governo polonês deu qualquer resposta estúpida, desmentindo isso com números falsos. A imprensa francesa apenas citou as aspas do governo, sem nenhum comentário, nenhum contexto. O autoproclamado “jornalismo objetivo”. Um leitor desavisado pode vir a pensar, “olha, ele pode estar certo e Macron errado”. As pessoas não tem como saber o que está acontecendo, cabe aos jornalistas explicar isso. E você tem que manter a esperança. Essa esperança vai te dar a motivação para trabalhar, então você vai ser um jornalista e você vai ser feliz. Porque cabe a você servir a verdade. E a controlar o mau que vem do governo. É um belo trabalho. Mesmo que pareça que não está fazendo a diferença por enquanto, mesmo que você pense  que está sendo ignorado, os seus leitores não ignoram você. Eles são agradecidos a você pelo que você escreve e por descobrir as mentiras e a estupidez que os outros tentam esconder. Porque é baseado em mentiras, estupidez e crueldade. É assim que funciona.

Pesquisas mostram que o jornalismo no Brasil havia perdido boa parte de sua credibilidade mesmo antes de ser alvejado por campanhas difamatórias do governo. Menos da metade de nós confiam na imprensa. Entre os mais jovens, uns 10%. Como está a credibilidade da imprensa na Polônia em que, como você comentou, também há uma campanha de mentiras e fake news?

Se você olhar as pesquisas de opinião sobre a confiança nas mais diversas profissões, a confiança nos jornalistas não é muito alta. Claro, é bem maior do que a confiança em políticos. Me parece que agora na Polônia temos duas sociedades divididas, duas opiniões públicas, infelizmente. Dentro da bolha da oposição em que nós estamos a nossa credibilidade é muito alta. As pessoas acreditam que o que estamos escrevendo é verdade. Claro que nós cometemos erros, mas há uma credibilidade associada aos valores, a visão de democracia que nós apoiamos e que nós tentamos expressar. Também somos de alguma forma de esquerda em termos do entendimento dos problemas causados pela desigualdade que, ainda que não seja tão grande quanto no Brasil, é muito grande da Polônia. O que é muito difícil de aceitar é que há uma estrutura de classe muito clara que dá apoio ao governo e à oposição. O governo tem o apoio de mais de 60% da população menos educada, o que corresponde a mais de 50% da população vivendo no interior, em cidades pequenas, e 60% entre os mais velhos. São os mais pobres entre os mais pobres. O governo tem procurado manter o apoio das classes mais baixas através de simplificações ideológicas e crueldade e também pagando um monte de dinheiro, porque a base do poder do partido governante são transferências imensas de dinheiro para a população em que cada família recebe 500 zlotys ao mês por filho. Nas famílias mais pobres, com três filhos ou até mais, isso acaba sendo muito dinheiro, mas não há nenhuma contrapartida social.

Mas essa distribuição de renda para os mais pobres é necessariamente ruim? Aqui no Brasil temos um programa chamado Bolsa Família, que distribui pequenas quantidades de dinheiro para famílias pobres manterem seus filhos na escola. Apesar de ter sido muito criticado no início, em especial pelo oposição ao então governo Lula, ele se manteve mesmo no atual governo e levou a mudanças visíveis no país, em especial no interior mais pobre.

Lula, me parece, entendia o papel das mulheres e a necessidade de contrapartida social. Na Polônia, não é preciso confirmar a baixa renda, todos recebem essa verba, mesmo se forem ricos; eles estão comprando apoio. E isso tem funcionado, e muito. No começo, prometeram que esse programa era uma forma de aumentar a natalidade, que é muito baixa, mas a questão da natalidade não é apenas financeira, é muito mais complicada. As mulheres na Polônia não querem ter mais de um filho, isso quando tem filhos, por conta do risco que isso representa para as suas carreiras e futuro e muitas outras razões. No nosso contexto, isso tem funcionado como uma espécie de propina eleitoral e não é a única forma que o governo tem usado para se manter no poder. Por exemplo, duas, três semanas antes da última eleição para o parlamento, em que tudo indicava que a oposição iria vencer, o governo introduziu uma pensão extra para os aposentados. Eles dizem, “as pessoas mais velhas merecem esse dinheiro, nunca receberam nenhum suporte extra” e os nossos filhos, que são de esquerda, dizem que há verdade nisso. E há. O governo anterior, que era liberal, era louco por controle fiscal, controlar o orçamento, a inflação. E todos pensávamos que essas transferências imensas de dinheiro iriam acabar com o orçamento e a economia do país. Mas não foi o que aconteceu. Na verdade, aconteceu o contrário. O resultado foi um aumento enorme do mercado consumidor o que foi, de alguma forma, positivo para a economia. Mas, ao mesmo tempo, como não há nada acontecendo em termos de política econômica moderna, nossas taxas de investimento e de inovação estão baixíssimas. Deveríamos ter 25% do produto interno bruto em investimentos, temos 18%. A longo prazo, essa política pode ser prejudicial, mas por enquanto tem funcionado. Para as pessoas das classes mais baixas não é só uma questão de dinheiro. Eles veem essa política como uma uma “transferência de dignidade”, como definiu um autor polonês. E é um nome apropriado. Essa população foi muito negligenciada pelos governos anteriores. Quem sabe no futuro consigamos combinar democracia e o seus valores, e os valores liberais e esse tipo de política social.