Num artigo recente, Isaac Lourido apontava esperançado que a crítica radical ao cárcere ganhava devagar um oco nos movimentos populares. Além do projecto mais directamente atingido pola puniçom carcerária no ámbito nacional -o independentismo, que acumula nas últimas quatro décadas pesadas condenas no desterro-, outras vozes clamam contra esta engrenagem de impunidade que é o sistema penitenciário: comunistas e antifascistas, que enfrentárom quase em solitário a dispersom e as cadeias perpétuas encobertas; o anarquismo, historicamente enfrentado a grades e barrotes; parte do feminismo que nom adere à soluçom punitiva estatal; e também associaçons defensoras dos direitos humanos, como a já veterana Esculca, colectivos cristaos de base, ou também académicos críticos.

 

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A extensom da crítica é evidente e, porém, a um assalta-lhe sempre a sensaçom de a denúncia anti-repressiva ficar confinada numha margem social estreita, muito por baixo do limiar que qualquer exigência de justiça elemental devesse alcançar. Com efeito, nom cumpre ser um revolucionário para se alarmar polos maus tratos a presos desarmados, nem para entender a inumanidade de módulos de isolamento com 20 horas de cela diárias e pátios de 15×10; nom há que aderir a nenhuma ideologia específica para entender que presos e presas enfermos tenhem direito a um tratamento sanitário tam digno como o oferecido na rua; nem tampouco há que professar ideias avançadas para decatar-se, por exemplo, que doenças mentais graves nunca poderám ser superadas em espaços de confinamento massificado, atravessados sempre pola violência, a vigiláncia e a tensom.

Obviamente, se o alcanço da crítica é menor do que poderia acadar, parte da responsabilidade recai em todos os movimentos e associaçons dum modo ou outro dedicados à solidariedade além dos muros. Nada mais confortável, nem mais prejudicial, que culpabilizar insuperáveis obstáculos exteriores das nossas carências militantes e organizativas, como tantas vezes fazemos. Nom, nom pretendemos a exculpaçom; mas si sugerir que, enquanto os movimentos solidários devem fazer na sua vida interna um permanente exame de auto-crítica e melhora, há circunstáncias específicas da luita anti-carcerária que multiplicam as limitaçons de toda causa colectiva.

 

“Fazer pedagogia contra a puniçom penitenciária supom, na rua, adentrar-se no terreno do tabu: mentar o que ninguém quer ouvir, preocupar-se do que quase ninguém se preocupa…”

 

Algumhas obviedades, por sê-lo, chegam a esquecer-se, e por isso devem ser recordadas decote: a luita solidária tem um grau de carga e exigência mental especialmente gravosas. Dedicamos boa parte da nossa prosa política, e do nosso debate informal, a grandes fonduras ideológicas, e demasiado pouco a assuntos centrais do nosso dia-a-dia que condicionam as apostas activistas. Há uns meses, Ximena González escrevia nestas mesmas páginas (e perdom por citarmos de cor), que a alternativa revolucionária e a acçom directa eram sedutoras, mas para materializá-las cumpria umha energia mormente ausente do corpo militante. Com efeito, nos entornos conscienciados -como no resto da sociedade-, a precariedade laboral, as pressas, a liquidez e insinceridade das relaçons virtuais, provocam um estado de fadiga crónica e malestar psicosomático que gora muitos esforços. Fazer pedagogia contra a puniçom penitenciária supom, na rua, adentrar-se no terreno do tabu: mentar o que ninguém quer ouvir, preocupar-se do que quase ninguém se preocupa, e desmontar umha série de tópicos associados à justiça e à puniçom que atravessam todas as classes sociais. O povo maioritariamente entende a prisom como umha forma de sançom do Mal (e o Mal, como sabemos, existe); e sem embargo, por cada exemplo de puniçom do Mal, a cadeia dá mil exemplos da puniçom e ensanhamento gratuitos contra a pobreza e a exclusom.

 

“Mas o que a luita tem de luminoso só se pode entender em relaçom com o seu reverso, o das realidades mais escuras. Para valorizar todo o mistério e formosura da vida, dixera um filósofo, cumpre pensar acotio na morte.”

 

Por outra banda, a solidariedade activa em forma de carteio, visitas a prisons, assessoramento legal, marchas às cadeias… pressupom umha certa integridade, a predisposiçom a dedicar tempo a mitigar sofrimentos alheios, e a olhar em fite umha realidade muito distante da conhecida nos ecrás: viver e sentir um mundo de soidades verdadeiras, desamparos, agressons impunes, incertezas, e todo elo soportado em períodos longos de desgaste, por vezes décadas, que desafiam o nosso imediatismo e ponhem a prova as nossas esperanças. Nom se crea que há dramatismo nestas linhas: na luita solidária e na resistência aos cárceres -dentro e fora dos muros- há também muita alegria, satisfaçom, dignidade, e provavelmente mais aprendizagem que em nengures. Mas o que a luita tem de luminoso só se pode entender em relaçom com o seu reverso, o das realidades mais escuras. Para valorizar todo o mistério e formosura da vida, dixera um filósofo, cumpre pensar acotio na morte.

De todas as frentes de trabalho que um puder imaginar, a solidária é a menos submetida a cálculos e prazos; por dizê-lo assim, a mais puramente ética. Um é solidário simplesmente porque deve sê-lo, e a noçom de sucesso ganha umha dimensom mais humilde: sabemos que com umha carta, com umha denúncia, umha visita ou umha pintada som grauzinhos de areia postos nessa engrenagem gigantesca, e que aliás tenhem um poder decisivo no mantimento da moral e dos afectos de quem aguentam nas suas celas.

Por isso mesmo, numha esquerda massivamente confundida polos mitos do reformismo e a contenda eleitoral, a assunçom destes ritmos e estas lógicas fai-se complicada. Adere-se ao que dá pé a cabeçalhos na imprensa comercial, adere-se ao que dá imediata rendibilidade no mercado do voto, adere-se àquilo que pode suscitar o aplauso da intelectualidade crítica consentida, e adere-se, finalmente, àquilo que nom provoca demasiadas incomodidades na vida quotidiana. A paixom solidária extendida no nacionalismo institucional com os presos cataláns, em contraposiçom com a inibiçom ou timidez mostrada com os nossos arredistas presos, nom é fundamentalmente um problema moral; tampouco nom se explica polo feito de os patriotas galegos serem relacionados com a resistência violenta. Parte dumha filosofia política mui velha, alimentada dos compromissos a médias e da séria confusom de prioridades e de ritmos.

 

“A paixom solidária extendida no nacionalismo institucional com os presos cataláns, em contraposiçom com a inibiçom ou timidez mostrada com os nossos arredistas presos, nom é fundamentalmente um problema moral.”

 

E precisamente, umha incomodidade radical é a que remata de explicar o grande manto de silêncio que cerca a luita solidária. Nom muito longe da opulência material que evitamos, e dos direitos democráticos formalmente consagrados, existem espaços de impunidade para os pobres onde os castigos físicos e psicológicos som frequentes e crueis, onde há morte em desatençom e soidade, onde qualquer elemento de sentido que poida ter a vida humana se enfraquece até o extremo, e onde as garantias legais som directamente proporcionais ao nível de renda e de alfabetizaçom do preso. Estes som os espaços onde resistem -ainda endurecidos por dispersom, 1º grau penitenciário e Regime FIES- aqueles nossos compatriotas que se tomárom o dever com o país mais a sério que qualquer outra cousa.

 

“O silêncio por volta das prisons tem a ver com a pretensom compreensível -por outra parte inútil- de ocultar-nos tranquilizadoramente umha parte sangrante da nossa realidade.”

 

A ingenuidade democraticista fijo-nos crer que quem enfrentavam tais condiçons faziam-no por terem apostado em vias violentas ; por palavras dos reformistas, «sofrem o excesso como resposta à sua escolha de outro excesso». Mas quem estiver disposto a olhar a realidade com mirada franca, decatará-se que os presos cataláns, como os tuiteiros, como os rapeiros, como onte os jornalistas de Egin ou Egunkaria, ou como hoje os activistas de Causa Galiza e Ceivar processados pola audiência nacional, retratam o Regime que vivemos desde 1978. Ou, dizendo-o de outra forma, ilustram com toda transparência as condiçons que qualquer luita emancipadora vai enfrentar.

O silêncio por volta das prisons tem a ver com a pretensom compreensível -por outra parte inútil- de ocultar-nos tranquilizadoramente umha parte sangrante da nossa realidade. As vozes que as denúnciam som a melhor garantia para conhecer enteiramente o nosso mundo, e para enfrentar com afouteza o que tem de intolerável.

Antom Santos