A excepçom que se afunda

Borxa Colmenero é advogado, professor da Universitat Oberta da Catalunha e colaborador habitual de movimentos populares que, como o antirrepressivo, questionam os abusos do poder. Em conversa com este meio, afirma que “o feito de falarem de nova normalidade tam insistentemente, anuncia que umha nova fase do controlo social está a desenhar-se.” Porém, esclarece, “nom será totalmente desconhecida nem radicalmente diferente.” Para Colmenero, levamos décadas de avanço de espaços de excepcionalidade no interior das democracias liberais, acompanhadas por umha vigiláncia da populaçom exaustiva, que no mundo post-Covid viveremos “a sua intensificaçom. É a típica governança neoliberal em situaçons de risco, que se consolida como paradigma mundial.” Longe das visons mais despreocupadas, que vem na emergência mundial a ocasiom para um repensamento a fundo do capitalismo como sistema económico e como determinante das lógicas de governo, o advogado adverte: “no canto do travom de emergência do capitalismo do que tanto se fala, parafraseando Walter Benjamin, se calhar estamos ante a sua aceleraçom.”

Esta reflexom pode ajudar a esclarecer um aparente paradoxo: as medidas mais severas contra as liberdades e o cativo auto-governo permitido por Espanha toma-as um governo que se diz de esquerdas; um executivo que, em dissonáncia com o que acontece na Europa, dá conferências de imprensa com presença de mandos militares e policiais. Fernando Blanco, advogado e membro de Esculca. Observatório de Direitos e Liberdades, é claro na sua valoraçom: “os que temos umha certa idade, e que precisamente nos formamos politicamente nos anos 80, contra o PSOE, sabemos o que acontece nestes casos: que a suposta legitimidade moral da também suposta esquerda permite uns atropelos que à direita nom lhe seria tam fácil executar. Por isso o terrorismo de Estado, a lei de estrangeiria e outros abusos fórom cozinhados por executivos “socialistas”. Blanco recorda como em vários países da Europa o direito de manifestaçom se permitia, embora em novos formatos, nestes meses. “Se no Estado espanhol governasse o PP, estou certo que o 1 de maio ia celebrar-se, mesmo ilegalmente, e produziriam-se distúrbios. Em troca, baixo este governo, topamo-nos com o reforçamento-legitimaçom mais profunda das forças policiais que vivemos em décadas.” Com a única excepçom da CUP, todas as forças políticas institucionais do Reino de Espanha fórom mui tímidas em qualquer crítica ao governo em matéria de direitos.

Por darmos um dato assustador que nom se salienta em meios comerciais, em apenas 50 dias de estado de alarme 1500 pessoas fórom condenadas a prisom por delitos relacionados com a desobediência. “Podem-se incluir nesta categoria delitos como que umha corredora dea umha má resposta aos polícias que pretendem identificá-la, ou qualquer réplica à autoridade. Entramos numha etapa em que infracçons que jamais fórom consideradas susceptíveis de condena de prisom mudam de categoria”, explica Borxa Colmenero. Blanco ratifica este ponto de vista: “com instrumentos legislativos aparentemente neutros, e com a excusa seráfica da ‘protecçom da saúde’, o controlo e a puniçom alcançarám novas quotas.”

Que enfrentaremos

Com toda a prudência que exigem sempre as previsons, Colmenero está certo em que se vam escurecer práticas já de por si lesivas para os direitos das pessoas. “Todo o que já conhecemos e vinha de atrás acadará plena normalidade”, diz-nos Borxa: “obviamente videovigiláncia, mas também monitoreio de dispositivos móveis, medida que há apenas cinco meses nenhum governo se atreveria a tomar.” Para Fernando Blanco, a total transparência da informaçom íntima e pessoal, de novo com o pretexto do vírus, pode virar quase incontestada: “a dia de hoje, nom sabemos que vai acontecer com os dados que estám a tomar sobre a nossa saúde, e que estám armazenados em servidores de grandes empresas privadas.”

Como é de supor, as recém estreadas medidas, que pioram com muito as assumidas pola “lei mordaça”, que o actual governo espanhol nom derogou, ainda vam aplicar-se com maior zelo contra determinados colectivos. “Sem dúvida que esta bateria de medidas, que punem ao máximo todo questionamento da ‘orde pública’, vam dirigir-se contra a dissidência política”, diz Colmenero. Blanco, bom conhecedor do submundo penitenciário, acrescenta que “for por legislaçom, for por praxe, a sobre-limitaçom de direitos na prisom, ainda por cima do que supom a privaçom de liberdade, pode normalizar-se.” Com efeito, a suspensom da comunicaçom física com familiares e a aberta desatençom médica ocupárom cabeçalhos nestas semanas, mesmo na imprensa do Regime. O organismo anti-repressivo Ceivar recordava nas suas redes sociais que a prisom de Estremera, onde apenas existe um médico para mais de 1000 presos e presas, era umha das que registava casos positivos do vírus. Os reclusos doentes, num exercício de crueldade manifesto, eram conduzidos para o módulo de isolamento, no canto de irem dirigidos ao módulo de enfermaria.

Fascistizaçom e medo

Como em outras jeiras históricas sombrias, o medo inoculado numha sociedade leva a respostas agressivas, e a agressividade nom topa expressom mais doada que o afecto incondicional a um poder autoritário e protector. Por isso é de prever que as mudanças legislativas, ou na praxe judicial e policial, sejam paralelas a novas mentalidades regressivas: “boa parte da legislaçom, aparte da letra, tende a conformar mentalidades”, comenta Fernando Blanco: “por exemplo, na reforma laboral de 2012 instalou-se a mentalidade popular de que se rematara a protecçom da trabalhadora nos tribunais ante o abuso patronal; e a lei mordaça, além de se nos multam ou nom nos multam, situou muitas pessoas num estado de pánico ante a manifestaçom. Eu, se som sincero, confesso que estivem a viver os passos que dava o Estado nesta semana com tensom e preocupaçom”. Neste sentido, a engenharia punitivista mais moderna mestura-se com o pior da nossa história: “o franquismo sociológico acordou de novo nestes dias, com o fomento do chivateo, na pressom à vizinha que saía, sem saber se era por motivos laborais ou de força maior. E nom acordava em velhas geraçons, olho, senom em pessoas muito novas.”

“Sem dúvida que imos cara umha polícia horizontal”, engade Colmenero, onde o Estado descarrega parte das suas funçons repressivas na comunidade: “Um conhecido meu, penso que com muito acerto, dizia que o confinamento desenhou para o conjunto da sociedade umha espécie de ‘módulo de respeito’ carcerário para toda a populaçom: há que denunciar qualquer incumprimento, levar-se bem com as autoridades; se um se porta bem, prémio com mais horas de saída; se se porta mal, castigo.”

Desafios e esperança

Como toda crónica negra, esta deve de ser matizada: “onde há poder há resistência, manifesta Colmenero”. As semanas mais duras da crise fórom também as semanas de múltiplas iniciativas comunitárias e solidárias, protagonizadas polos vários grupos de ajuda mútua. No soporte aos sectores mais espezinhados, organismos como Ceivar intensificárom, com as limitaçons consabidas, o seu labor de denúncia. O colectivo anti-repressivo lançou nas redes umha campanha contra a chamada “polícia de varanda” e organizou em aberto encontros de formaçom auto-defesa legal; também animou a rachar reciprocamente confinamentos com correspondência às presas e presos independentistas, campanha que, segundo reconhecem membros do organismo “foi ainda mais exitosa do esperado.” Ante um poder omnipotente e principalmente apoiado na cumplicidade social e na alta tecnologia, a imaginaçom activista procura as formas de manter espaços de liberdade e capacidade de resposta. Na França, já sacudida pola violência estatal desde o movimento dos coletes amarelos, activistas socializam já entre a populaçom umha app que grava e fiscaliza os abusos policiais. A Galiza que luita, se quer sobreviver, terá que dotar-se de escudos semelhantes.