Ultradireita vê, no conflito, brecha para desmontar direitos sociais. Lei Marcial permite transferências de postos sem consentimento, demissões em massa, violação dos contratos e suspensão dos acordos coletivos. Oposição está censurada.

 

 

 

Santiago Mayor

Em maio de 2022, dois meses e meio após o início da invasão russa na Ucrânia, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou um informe em que destacou que 4,8 milhões de postos de trabalho haviam sido perdidos no país. Além disso, estimou que, se o conflito prosseguisse, esse número poderia chegar a 7 milhões.

Além disso, não só há menos trabalho, como as condições também pioraram. O portal ucraniano de busca de empregos GRC divulgou dados referentes a uma queda de 10% em média nos salários em relação aos índices anteriores à guerra. Mas, em alguns casos, a queda chegou a até 30%.

Guerra sem direitos

Frente esse cenário – e com o recrutamento massivo para qualquer homem abaixo de 60 anos –, o governo da Ucrânia propôs avançar uma agenda de reforma trabalhista. Aproveitando a Lei Marcial em voga no país, que proíbe manifestações públicas, o Congresso aprovou a lei 2136, que entrou em vigência no dia 24 de março, exatamente um mês após o início da invasão.

A lei estabelece, entre outras coisas, que “durante o período da Lei Marcial, o empregador tem o direito de transferir seu empregado a outro trabalho que não esteja estipulado no contrato, sem seu consentimento”. Diz ainda que “está permitido despedir um empregado por iniciativa do empregador durante o período de incapacidade temporal para o trabalho (por exemplo se foi ferido ou fugiu frente à invasão), assim como durante o período de férias”.

Por outro lado, a lei também amplia a jornada laboral a até 60 horas semanais e permite reduzir o descanso a só 24 horas para este mesmo período de tempo. Finalmente, possibilita a suspensão dos acordos coletivos vigentes e, portanto, a contribuição sindical que é descontada dos salários para financiar as organizações de trabalhadores.

Além dessa legislação, foi apresentado o projeto de lei 5371, que havia sido rechaçado em 2021 pelos sindicatos. Se trata de uma tentativa de desregulação permanente das relações trabalhistas – independente do que ocorra em relação ao conflito bélico –, e que se enquadra como parte do processo de “reconstrução” do país quando a guerra terminar.

A proposta foi elaborada pela ONG Escritório de Soluções e Resultados Simples, criada pelo ex-presidente georgiano nacionalizado ucraniano Mikheil Saakashvili, com o apoio de associações empresariais e de um programa da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). O objetivo, segundo os defensores do projeto, é terminar de “dessovietizar” as regras trabalhistas.

O texto estabelece que aquelas empresas que tenham até 250 empregados estejam isentas em relação ao Código Trabalhista vigente. Em seu lugar, se poderão realizar contratos individuais com cada trabalhador, sem nenhum tipo de parâmetro pré-estabelecido. Segundo estimou o jornalista ucraniano Serhiy Guz para o OpenDemocracy, esta medida afetaria mais de 70% da classe trabalhadora do país.

A deputada Ivanna Klympush-Tsintsadze, do partido de centro-direita Solidariedade Europeia (Bloco Petro Poroshenko) opinou que se o projeto fosse aprovado, violaria a Constituição. “São oferecidas diferentes leis trabalhistas para diferentes empregadores. Pessoas num mesmo cargo não podem ter direitos diferentes”, declarou, dizendo ainda que “adotar esta política seria um golpe não só aos direitos trabalhistas das pessoas, que já estão mal, mas também a nossas posições de negociação com os europeus”.

“Os empresários deram as costas ao diálogo social. Pensávamos que era por causa do início da guerra, e então descobriu-se que eles estavam esperando que a lei fosse aprovada”, completou Anton Gorb, dirigente sindical do maior serviço postal privado da Ucrânia, o Nova Poshta, e que atualmente serve como soldado.

Contra a invasão e contra a reforma

A Federação de Sindicatos da Ucrânia (FPU), que representa cinco milhões de trabalhadores, publicou uma declaração no dia 18 de maio. Nela, questionaram o fato do projeto ter sido apresentado “quando o principal peso da luta pela liberdade e independência da Pátria recai sobre os ombros das pessoas comuns, quando toda a força e a atenção do povo estão dedicadas a isso”.

A organização declarou ainda que “as associações sindicais nacionais demonstraram oficial e publicamente ao presidente da Ucrânia, ao governo, aos chefes de facções e grupos parlamentares a posição de milhões de trabalhadores ucranianos de não aceitar o projeto de lei 5371, que introduz formas extremas de trabalho, liberalização das relações e discriminação dos direitos dos trabalhadores que trabalham em empresas de até 250 empregados”.

Apesar de se mostrarem dispostos a um diálogo para reformar a legislação, que tenha em conta “as normas internacionais e os padrões sociais definidos pelas convenções da OIT e os atos legislativos da União Europeia”, advertiram que “o incumprimento destes princípios prejudicará a rápida adesão da Ucrânia à UE”, algo que “o povo ucraniano está tratando de conquistar com todas suas forças”.

Uma reclamação específica que ganhou força durante as últimas semanas é a do Sindicato dos Trabalhadores de Educação e Ciência, que difundiu um comunicado dizendo que é “inadmissível” que durante o verão (que começou há pouco na Europa) os contratos sejam suspensos. O sindicato exige que os salários continuem sendo pagos frente à tentativa de deixá-los sem renda durante o recesso escolar.

Por sua vez, o Movimento Social, uma organização que se autodefine como “socialista democrática” e que apoiou o envio de armas à Ucrânia para combater a Rússia, elaborou uma “Lista Negra” de empregadores. Ali apontaram que “a suspensão dos contratos de trabalho é feita de maneira seletiva, de forma que aqueles que expressaram insatisfação com as condições de trabalho perdem  antes a oportunidade de trabalhar”.

A lista inclui companhias que suspenderam unilateralmente a totalidade ou parte dos acordos coletivos, ou que tenham mudado substancialmente as condições de trabalho, violando inclusive as flexibilizadas leis trabalhistas da Ucrânia. Entre as empresas mais destacadas aparecem a planta de energia nuclear de Chernobyl, a companhia ferroviária nacional, o porto de Odessa e o metrô de Kiev.

Apesar desta disputa com o governo, a FPU tem uma posição inequívoca em relação à guerra. No dia 30 de junho, em uma reunião do conselho da Federação, o presidente da organização, Hryhoriy Osovy, expressou sua “gratidão e respeito pelos valentes soldados das Forças Armadas da Ucrânia”. Lembrou ainda que desde o começo da invasão “os esforços e recursos dos sindicatos” tiveram como finalidade “a proteção da integridade territorial do Estado e o apoio às Forças Armadas”.

Oposição censurada

Desde o golpe de estado de 2014 e a consolidação de governos pró-europeus, a perseguição cada vez mais contundente contra organizações políticas e de trabalhadores que não coincidiam com essa posição vem avançando. Naquele ano se deu o Massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa, no qual grupos de extrema-direita atearam fogo a um edifício, assassinando 42 militantes comunistas.

A isso seguiu a proscrição e expulsão do Parlamento dos deputados do Partido Comunista e de duas organizações de esquerda, em 2015. O Partido Comunista foi totalmente colocado na ilegalidade no começo de julho de 2022, quando o Oitavo Tribunal Administrativo de Recursos decidiu contra uma apelação da organização, ordenando a entrega de todos os seus bens, incluindo os edifícios e fundos, ao Estado. Esta decisão judicial se apoia em uma lei aprovada em maio, que permite tomar esse tipo de ações contra organizações que tenham um “caráter antiucraniano”. Por sua vez, em março deste ano, já se haviam suspendido as atividades de onze formações políticas qualificadas como “pró-russas”.

Esse processo limitou consideravelmente a incidência da esquerda ucraniana no movimento operário e em qualquer tipo de oposição política ao governo. Não obstante, não impediu que os sindicatos resistam à reforma trabalhista que visa prejudicar ainda mais os trabalhadores que estão pagando o custo da guerra.