28 de abril de 2021 marcará a Colômbia como o dia em que houve uma explosão social sem precedentes na história recente, o mais próximo, talvez, do que aconteceu desde esse dia até hoje, foram as mobilizações do famoso «Bogotazo», ou melhor “Colombianazo” de 9 de abril de 1948 após o assassinato de Jorge Eliecer Gaitan o «caudillo del pueblo».
Antes de partilhar uma breve leitura do que aconteceu desde 28 de abril, considero necessário enunciar cinco elementos através de uma contextualização:
- Durante a década anterior, foram realizados processos de mobilização que ultrapassaram as margens históricas da esquerda, e que conseguiram, pouco a pouco, convocar novos sujeitos que sentiram indignação por determinadas situações. Isto reflete-se em momentos tais como a formação do Congresso dos Povos em 2010, a Greve Agrária de 2013, as mobilizações em defesa do Acordo de Paz em 2016, a Greve Nacional de 2019, entre muitos outros.
- O Estado colombiano, sob o governo de Juan Manuel Santos (2010-2018) assinou um Acordo de Paz (2016) com a insurgência que, na altura, era a mais antiga e com maior número de homens, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia -FARC-EP-, da mesma forma, conseguiram avançar nas negociações com o Exército de Libertação Nacional -ELN-. Esta atmosfera de negociação e acordo foi apresentada no meio do ataque dos setores de ultradireita, que conseguiriam obter a presidência com Iván Duque, personagem pouco conhecido na cena nacional, mas que cumpriria fielmente o compromisso do Uribismo de atacar e incumprir o Acordo de Paz.
- Desde 2018 que a Colômbia regista um aumento significativo da violência contra antigos combatentes, 270 assassinados, e contra líderes sociais, com até 900 assassinados. Do mesmo modo, há uma escalada de ações no quadro do conflito armado por parte de múltiplos atores.
- Durante 2019, as mobilizações alcançaram o seu pico em 21 de novembro e nos dias seguintes. Estas mobilizações eram principalmente urbanas e com a chegada de dezembro iriam perdendo gradualmente a sua força.
- Com a pandemia, as condições de desigualdade, pobreza e miséria de uma grande parte da população pioraram. Em março de 2021, o nível de pobreza no país terá chegado, de acordo com alguns relatórios, a 42,5%. Além disso, o desemprego atingiu máximos históricos, afetando mais as mulheres e os jovens.
Com esta breve contextualização, chegamos a abril de 2021. O governo nacional, caracterizado como um governo completamente afastado da realidade das maiorias, apresenta um projeto de reforma fiscal. Este projeto, em resumo, propunha aumentar a base tributária passando ainda a aplicar o IVA aos artigos do cabaz familiar. Isto, no meio da maior crise económica do país.
Diferentes setores e organizações apelaram a uma mobilização contra a Reforma a 28 de abril, rios de pessoas percorreram as ruas de todo o país, em grandes cidades como Cali e Bogotá; cidades intermédias como Ibagué ou Barranquilla; mesmo pequenos municípios que também foram considerados bastiões do Uribismo ou da direita, por exemplo: Puerto Boyacá. A mobilização acabaria por acender a faísca de uma revolta popular.
Quero destacar o caso de Cali, a terceira maior cidade da Colômbia, que experimentaria um cenário que poucos ou ninguém poderia ter previsto, dadas as suas condições económicas, sociais e culturais, era o cenário perfeito para libertar a juventude e a fúria popular. Assembleias, panelaços, marchas…. A resposta do Estado foi a repressão, 17 mortos em dois dias, feridos e capturados, mesmo assim, não conseguiram deter a expressão popular. Da mesma forma, todas as estradas de acesso/saída para a cidade foram bloqueadas. Lugares como a Loma de la Cruz, agora chamada Loma de la Dignidad, a ponte dos Mil Dias, agora a ponte das Mil Lutas, um setor anteriormente chamado Puerto Rellena, tornou-se Puerto Resistencia, e Cali, a Sucursal del Cielo, tornou-se a Sucursal da Resistência.
Foto: Cali, Puerto Resistencia
Da mesma forma, mas com outras intensidades e momentos, a mobilização continuaria (e continua) a desenvolver-se em todo o país, e já resultou: i) na retirada da reforma fiscal, ii) na demissão do Ministro das Finanças, iii) na demissão do Ministro dos Negócios Estrangeiros, iv) na renúncia à reforma sanitária, e v) na demissão da Vice-Presidente Marta Lucia Ramirez, que nas sondagens era a principal candidata da direita, como candidata presidencial. Isto, somado à crise de legitimidade do governo, que termina o seu mandato no próximo ano, e à rejeição por parte da maioria da resposta autoritária e militar, são as realizações deste ciclo de mobilizações.
Por outro lado, é necessário salientar que, embora os movimentos de esquerda, as centrais sindicais, entre outros, tenham exigido e participado no processo de mobilização, uma grande parte dos cidadãos que se mobilizaram e resistiram a estes dias transborda o cenário de representação em alguns líderes destes setores e movimentos. Por esta razão, assistimos a processos assembleares, de construção e expressão a partir de baixo, baseados na necessidade de grupos que não foram incluídos nas discussões públicas serem ouvidos e de a sua participação seja considerada para decidir, e não apenas como um instrumento de legitimação.
A Comissão Nacional de Greve procurou espaços de diálogo e negociação com o Governo Nacional, contudo, até à data não existe nenhum acordo que nos permita vislumbrar uma possível saída para a situação em que nos encontramos
Para além do acima referido, quero destacar outras vitórias dos movimentos e lutas: i) o apoio, receção e aprovação numa grande parte da sociedade das causas da greve e da mobilização em geral, ii) a demonstração de que a mobilização de massas pode alcançar vitórias concretas, que se tornam vitórias e que inserem no imaginário coletivo a necessidade de tomar as ruas para lutar ou defender algo, iii) as forças políticas de direita, principalmente o Uribismo, sofreram o pior ataque nos seus 20 anos de liderança política no país, iv) conseguiu envolver no mesmo cenário de mobilizações diversas, organizações plurais, lutas e movimentos, e v) o apoio massivo das diásporas dos colombianos em diferentes partes do mundo.
Foto: Primeira linha em Bogotá.
Finalmente, durante estas três semanas pelo Estado colombiano as violações dos direitos humanos têm sido múltiplas, até à data temos 42 mortos, 16 casos de violência sexual, aproximadamente 400 desaparecidos, torturas, tratamentos cruéis e desumanos, inúmeros excessos das forças de segurança contra os manifestantes. Também é preocupante a continuidade do discurso estigmatizante e criminalizante por parte do Governo Nacional, que, enquanto histórico patrão do Estado, relaciona os manifestantes com as insurreições do ELN, dissidentes das FARC-EP, e até lhe chama terrorismo urbano e de baixa intensidade.
É por esta razão que múltiplas organizações exigimos que o Estado Colombiano: i) se sente para negociar com o Comité Nacional del Paro e abrir o palco para a participação de outros setores, ii) investigue e esclareça as violações dos direitos humanos cometidas pelas forças de segurança e indivíduos privados contra os manifestantes, iii) uma reforma imediata da Polícia Nacional que inclua pelo menos dois elementos: a saída do Ministério da Defesa e a sua transferência para o Ministério do Interior, e a eliminação da jurisdição militar para os membros dessa instituição iv) autorize a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH – de modo a verificar a situação das violações do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e v) garanta o exercício do direito de protesto e a não criminalização dos manifestantes.
Em conclusão, a situação a 19 de maio permanece incerta quanto às possibilidades de negociação e acordo entre os cidadãos mobilizados e o Governo Nacional. No entanto, a cidadania mobilizada conseguiu muitas vitórias que devem ser destacadas; estamos especialmente gratos aos jovens que têm estado na linha da frente a defender e a resistir à ofensiva neoliberal e criminosa.
Sergio Ovalle
Fuerza Común Colômbia