A Comissão Europeia está a ponderar a possibilidade de “permitir viagens” durante o período das férias desde que as pessoas se submetam ao rastreio dos seus telemóveis para fiscalizar os contactos que estabeleçam – um método de controlo dos cidadãos que adquire cada vez mais adeptos entre membros das principais instâncias da União Europeia.

 

 

 

Numa comunicação feita aos eurodeputados da Comissão do Mercado Interno, a comissária europeia para os assuntos digitais, a dinamarquesa Margaretha Vestager, afirmou que as aplicações móveis de rastreio podem ser “suportes substanciais” para fazer a identificação de contactos, contribuindo assim para que possam ser levantadas medidas restritivas.

A União Europeia “pode aproveitar ao máximo essas aplicações para permitir viagens durante as férias”, declarou a comissária. A afirmação foi proferida na sequência de uma reunião dos ministros do Interior da União Europeia na qual foi abordado o assunto do rastreio, que “poderia contribuir para facilitar ou abolir os controlos nas fronteiras internas e o potencial levantamento das restrições de circulação no interior da União Europeia”.

Vestager disse que os aspectos da transparência e da confiança podem ser fundamentais para a adopção voluntária dessa tecnologia, mas acrescentou imediatamente que sem a disponibilização das pessoas para serem vigiadas “será muito difícil abrir a sociedade na medida em que todos queremos”.

Em Abril, a Comissão Europeia divulgou um conjunto de normas sobre o uso de aplicações móveis de rastreio de contactos, incrementadas sob a alegada necessidade de combate à pandemia de coronavírus.

Uma maioria de deputados do Parlamento Europeu fez aprovar também, em 17 de Abril, uma resolução segundo a qual “os dados apurados pelas aplicações não devem ser armazenados em bancos de dados centralizados, que estarão sempre em risco e que podem comprometer a adopção em larga escala dessas aplicações”.

Desde que o Estado de Israel, um dos países que mais recorre à vigilância pessoal testada na submissão das comunidades palestinianas a estados de excepção, numerosos Estados europeus e as instâncias da União Europeia têm manifestado grande simpatia por esses métodos, interligando-os com as medidas a estabelecer nas fases de abrandamento dos confinamentos.

Privacidade em causa

A Holanda tem avançado para a utilização da metodologia e, depois da escolha de sete propostas entre as mais de 700 apresentadas a concurso, verificou-se que nenhuma delas acautelou questões como a segurança dos dados, a privacidade dos rastreados e outras normas essenciais no âmbito do respeito pelos direitos e liberdades cívicas.

Entre os próprios Estados membros não existem consensos sobre o destino a dar aos dados, havendo correntes que pretendem, por exemplo, a centralização nas autoridades de saúde. Porém, recentemente e já em termos práticos, o governo do Reino Unido entregou a base de dados do Serviço Nacional de Saúde ao organismo central de espionagem do país.

“Instituir o funcionamento destes mecanismos, mesmo que envolvidos nas melhores das intenções e cobertos pelas máximas garantias é como abrir uma caixa de Pandora: num mundo em que o acesso às bases de dados e a sua comercialização especulativa são autênticas guerras ninguém pode considerar-se seguro a partir do momento em que esteja a ser seguida, por exemplo, através do seu telemóvel”, disse uma especialista em controlo de privacidade de uma organização não-governamental que acompanha o comportamento das instituições europeias nesta matéria.

Margrethe Vestager afirmou que existe uma tentativa de conseguir um consenso entre os Estados membros para que os dados apurados fiquem descentralizados, mas há dois aspectos a ter em conta, segundo a mesma especialista: o facto de as informações serem descentralizadas “não garantem, à partida, uma maior defesa da privacidade dos rastreados”; e “numa Europa cada vez mais tentada pelo recurso a mecanismos de controlo dos cidadãos não é muito provável que haja consenso sobre a descentralização”.

Tanto mais que, acrescentou, entre os países que mais defendem a “abordagem centralizada” estão os dois pesos pesados da União Europeia, a Alemanha e a França.

Google e Apple com a mão na massa

A Google e a Apple, com todo o seu historial de concorrência desleal e os conhecidos abusos da privacidade dos utilizadores, são os dois gigantes mais envolvidos na criação da tecnologia de rastreio de cidadãos.

Vestager admite como inevitável a entrada desses dois grupos no processo, uma vez que “o sistema operacional é basicamente o seu domínio”. Além disso, a comissário considerou fundamental que a União Europeia invista em infraestrutura digital estratégica no âmbito do chamado plano de recuperação do coronavírus, incluindo 5G, Inteligência Artificial, supercomputação, segurança cibernética e blockchain – todas elas tecnologias que têm como uma das suas potenciais vertentes o aperfeiçoamento do controlo dos cidadãos, com ou sem coronavírus.

A Comissão Europeia mostra-se assim especialmente actuante e recuperada na fase de preparação do pós-coronavírus depois do desaparecimento e fracasso total na fase de combate humanitário contra os efeitos directos da pandemia. Isto é, depois de ter abandonado os cidadãos em sofrimento, a Comissão regressa intervindo em matérias de controlo dos cidadãos e de “salvação económica”, onde tem um histórico de austeridade para os mais desfavorecidos e de generosos resgates para grandes empresas e bancos.

Pilar Camacho, Bruxelas; Exclusivo O Lado Oculto