Você não encontrará tanques nas ruas do Rio. Mas não se deixe enganar. A extrema direita está se tornando mais e mais poderosa.

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Créditos da foto: “Bolsonaro sugeriu que a polícia deveria poder matar impunemente e os suspeitos deveriam ‘morrer nas ruas como baratas'” (Eraldo Peres/AP)

Eu era criança quando vi o filme Brazil de Terry Gilliam pela primeira vez. Eu esperava um filme sobre os estereótipos do meu país – carnaval, samba e futebol – mas encontrei outra coisa. Na história surrealista de Gilliam, o estado aprisiona, tortura e mata quem quiser. Os direitos humanos desaparecem em um labirinto kafkiano.

Eu conheci Gilliam 20 anos depois. Ele participou de uma exibição em Londres do meu filme Democracia em Vertigem, que narra a recente crise política do Brasil. Ele me disse que se inspirou, para dar o nome Brazil ao seu filme, não apenas na famosa canção, mas também nas ditaduras latino-americanas da década de 1970. Enquanto eu fazia meu filme, o futuro distópico, uma vez imaginado por Gilliam, era agora uma realidade capturada por nossas câmeras.

No início de 2016, filmei um protesto de rua em Copacabana. Centenas de milhares de pessoas estavam pedindo o impeachment de nossa primeira mulher presidente, Dilma Rousseff, e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eu até vi alguns grupos pedindo o retorno da ditadura militar. Eu deixei esse protesto profundamente perturbada pelo fato de as pessoas estarem pedindo a volta de um regime que havia matado centenas e torturado milhares.

O impeachment de Dilma prosseguiu, apesar do fato de a maioria dos congressistas não poder explicar por que motivo real ela estava sendo julgada. “Eu sou Josef K”, disse Dilma à nossa câmera, em referência ao julgamento de Kafka. Na minha avaliação, o governo de Dilma foi culpado de uma variedade de “contabilidade criativa” que não chega ao nível exigido para um impeachment.

Duas semanas após o impeachment de Dilma, o Ministério Público acusou seu antecessor, Lula, de ser o responsável por um esquema de corrupção sem precedentes chamado Lava Jato. No entanto, a prova era duvidosa: um apartamento que não estava em seu nome, do qual ele não tinha a chave, e onde ele não tinha dormido uma única noite. Após um julgamento em ritmo acelerado, Lula foi condenado a 12 anos de prisão.

A Operação Lava Jato expôs um esquema de corrupção de longa data envolvendo executivos de empreiteiras e muitos políticos, vários deles membros do partido dos Trabalhadores de Lula. Pela primeira vez na história do Brasil, políticos e empresários não estavam mais protegidos por um véu de impunidade. Embora isso, no geral, representasse um avanço, houve prejuízos significativos: desde o início, a operação supostamente utilizou procedimentos questionáveis, como vazar informações seletivamente para a mídia e deter pessoas antes de serem condenadas para forçar confissões.

Em junho de 2019, o site The Intercept publicou uma série vazada de mensagens, trocadas pelo aplicativo Telegram, nas quais Sérgio Moro, o juiz responsável pela Lava Jato, ofereceu conselhos aos procuradores sobre como impedir Lula de concorrer nas eleições de 2018.

Lula estava liderando a corrida presidencial; se ele não tivesse sido preso, provavelmente teria vencido. Em vez disso, ele foi preso e Jair Bolsonaro foi eleito em seu lugar. A primeira ação de Bolsonaro foi nomear Moro para o cargo de ministro da Justiça.

Nesse mês de novembro, Lula foi libertado após uma decisão da suprema corte que reafirmou a constituição brasileira de 1988. Todos têm o direito de esgotar seus recursos antes de serem presos, decidiu o tribunal. Em 2016, juízes federais haviam ignorado o mesmo princípio constitucional por causa da crescente pressão política para expor a Operação Lava Jato.

Desde a eleição de Bolsonaro, a destruição da floresta amazônica aumentou dramaticamente, com o desmatamento de um território quase do tamanho do Líbano. Vários líderes indígenas foram assassinados e os assassinatos pela polícia aumentaram em 20%. Quando questionado sobre como acabar com a violência no Brasil, Bolsonaro sugeriu que a polícia deveria poder matar impunemente e que os suspeitos deveriam “morrer nas ruas como baratas”. A mensagem foi clara, e os alvos têm uma cor de pele, classe social e endereço óbvios.

Nos últimos meses, a pobreza e a desigualdade inflamaram protestos em toda a América Latina. Em resposta – e sem dúvida temeroso pela capacidade de Lula de organizar a oposição – o ministro da Economia do Brasil fez recentemente uma ameaça velada, dizendo aos repórteres para não se surpreenderem se o governo decretar um AI-5, um decreto da era da ditadura usado para fechar o congresso e suprimir a dissidência.

O próprio Bolsonaro flertou com a possibilidade de invocar uma lei de segurança nacional para aprisionar Lula. Isso vem de um homem que, nos últimos meses, elogiou ditadores como Augusto Pinochet e chegou a argumentar que, em 1964, não houve golpe de Estado no Brasil.

Seu filho, Eduardo, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, alertou que, se os protestos que abalam outros países da América Latina chegarem ao Brasil, o governo poderá adotar medidas usadas durante a ditadura militar para reprimi-los.

O ex-estrategista de Donald Trump, Steve Bannon, que apoia Bolsonaro, expressou recentemente seu medo da libertação de Lula: “Ele é o líder da esquerda globalista agora que Obama está fora da política.” Como Bannon é o porta-voz da nova extrema direita internacional, aqueles preocupados com a erosão da democracia em todo o mundo devem prestar muita atenção ao que acontecerá a Lula e ao Brasil nos próximos meses.

Se você pousar no Rio hoje em dia, não encontrará tanques nas ruas, nem ouvirá falar de jornalistas presos. Mas não se deixe enganar. A extrema direita brasileira, com a ajuda do próprio governo, está executando uma estratégia bem planejada para encolher a esfera democrática liberal. ONGs e grupos da sociedade civil foram marginalizados da formulação de políticas. O estado de direito enfrenta a morte por mil violações a ele.

Salvaguardar a democracia é uma luta diária, e agora estamos especialmente vulneráveis à devastação do populismo. A extrema direita sempre combaterá inimigos imaginários – sejam eles o comunismo, a imigração ou uma presunçosa União Europeia – para se consolidar no poder e destruir os pilares da democracia.

O caso de Lula é, é claro, tão controverso como sempre. Eu me dei conta, no entanto, que o que cada pessoa acredita sobre a culpa ou a inocência de Lula não é importante. O que importa é a evidência e o devido processo. É isso que nos protege a todos e separa a democracia da ditadura.

À medida que a extrema direita se espalha, uma vacina crucial para essa epidemia é o estado de direito. Caso contrário, o Brasil voltará a ser o “Brazil”, a pior versão de seu pesadelo surrealista, e o fascismo não parará dentro de suas fronteiras.

Petra Costa é uma cineasta brasileira cujo último filme, Democracia em Vertigem, disponível na Netflix, concorre ao Oscar de Melhor Documentário

*Publicado originalmente em 18 de dezembro de 2019 no ‘The Guardian‘ | Tradução de César Locatelli para Carta Maior