Bruno Neto é coordenador de uma missão humanitária que garante o acesso à saúde a comunidades de várias províncias no Afeganistão. Nesta entrevista, fala da incerteza que se vive no terreno e do vazio de alternativas que a intervenção militar externa deixou no país.
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O coordenador da missão da ONG Intersos em Kandahar está há vários meses no Afeganistão a trabalhar com as comunidades locais para implementar projetos focados no acesso à saúde e à nutrição. Assistiu à entrada dos talibãs na província onde esteve envolvido nas negociações com as novas autoridades locais para a continuidade do projeto, sem que até agora tenham sido colocados obstáculos. Quando tomaram o poder em Cabul, Bruno Neto encontrava-se em Portugal, mas irá regressar a Kandahar assim que possível. Enquanto isso, recorre à internet para continuar a acompanhar a situação no terreno e a coordenar as centenas de trabalhadores afegãos ligados a este projeto humanitário.

Nos últimos dias temos assistido a cenas de desespero de gente que tenta sair do país. Para as ONG que atuam no Afeganistão – e para a vossa em particular – qual é o impacto que trouxe este início de transição de poder?

Nós fomos uma das únicas organizações internacionais que continuaram a trabalhar de forma permanente durante todo este período. Desde há vários meses que a mudança territorial estava a acontecer. Mesmo depois de haver um controlo por parte dos talibã, nós continuámos a trabalhar. Não houve para já um grande impacto na forma como estamos a trabalhar. Tanto para o anterior governo como para os talibã, o nosso propósito era claro: não era uma questão política, mas de emergência, de apoiar as populações em termos de saúde e nutrição. Para já, estamos a acompanhar passo a passo a situação para tentar perceber se todos e todas as nossas trabalhadoras estão a salvo e podem fazer o seu trabalho. Por exemplo, estávamos reticentes quanto à situação das nossas trabalhadoras afegãs, mas continuam a trabalhar e a ir para as clínicas ou para o nosso escritório. A esse nível não houve alteração e para já parece claro que os trabalhadores internacionais não serão um alvo.

Como se explica o avanço talibã praticamente sem resistência em todo o território?

Este avanço não teve grandes resistências, à exceção de algumas cidades, por razões históricas e/ou políticas. Em Kandahar tivemos frentes de batalha complexas perto da nossa organização. Houve bastante resistência, mas sobretudo por parte das forças armadas afegãs. Em relação ao resto da população, acaba por ser uma matemática relativamente simples: tivemos 20 anos de uma ocupação muito questionável. Enquanto defensor da educação e da construção, entendo que não podemos levar a um país os direitos humanos com bombas.

Combatente talibã ergue a sua bandeira num veículo em Kandahar. Foto de STRINGER/EPA/Lusa.

 

Tivemos o programa de drones do presidente Obama que bombardeou dez vezes mais que o próprio presidente Bush e matou muitos inocentes. Durante estes 20 anos, ainda que em 2001 e 2002 não houvesse tanta vontade que os talibã permanecessem no poder, desta vez houve uma quase aceitação, porque a alternativa era também bastante duvidosa. Isto é muito complexo quando não se sabe o que é a alternativa e as pessoas acabam por ficar no meio disto tudo e basicamente sem escolhas. Não se sabe o que virá aí e não se percebe o que vai acontecer, no entando qualquer que seja o desenlace, tempos complexos virão.

Ao verem as suas tropas baterem em retirada, os apoiantes da ocupação militar do Afeganistão elogiam-na agora pelos benefícios que terá trazido em matéria de respeito pelos direitos humanos do povo afegão e em particular para as mulheres. Foi isso que testemunhou no terreno?

Temos vários “Afeganistãos”, dado tratar-se de um país com fronteiras complexas. Por exemplo, o povo pashtun está nos dois lados da fronteira com o Paquistão, com uma cultura e prática religiosa semelhante. Não temos um país unificado, temos várias culturas, o peso das diversas partes do Islão, com xiitas, sunitas e várias minorias. Acaba por ser um retalho lindíssimo em termos antropológicos e etnológicos. É quase como um tapete com muitas cores e o entrelaçar de questões culturais.

A nossa visão é sempre uma visão de fora, com peso ocidental. Há zonas onde existe mais conservadorismo por parte da população em geral e não por pressão de uma determinada força. Sem querer julgar ou generalizar, existem muitas diferenças na situação das mulheres em Cabul e em Kandahar. Há muito mais conservadorismo, visível na forma de vestir e também no caso dos homens. Em Cabul os meus colegas vestem calças de ganga. Mas não é hébito nem costume para os homens de Kandahar vestirem qualquer outra coisa que as vestes (líndíssimas) locais, as quais por questões de aceitação e conforto, também uso no meu dia-a-dia.

Estamos todos expectantes em relação ao futuro da questão dos direitos. Se poderíamos já nestes últimos 20 anos questionar a questão dos direitos e em especial das mulheres, não só por causa dos talibã, iremos continuar a fazê-lo. Ouvimos as promessas que foram feitas, mas sabemos que tudo o que vier será sempre relativo.

A média etária da população afegã é de apenas 18 anos, ou seja, boa parte da população viveu sempre sob uma ocupação militar que terá custado mais de cem mil vidas, entre civis e combatentes. Como será o futuro do país após a retirada da NATO?

Este é um momento de transição enorme, não só em termos politicos operativos, de quem está a gerir o país, mas temos de ter em perspetiva que este foi um país constantemente ocupado e utilizado pelas forças internacionais ou pelas questões do petróleo, ou do gás natural, ou mesmo do ópio. É um país que nunca chegou a amadurecer, onde houve sempre uma oligarquia muito bem identificada. Sempre houve uma enorme diferença entre uma classe privilegiada e a grande parte da população que sobrevive e luta no dia a dia para ter pão na mesa e para que os filhos e filhas possam comer ou ir à escola. Nos últimos regimes sempre foi assim. Houve sempre forças externas a pressionar e a condicionar.

Não se mudam populações de forma bélica, não se mudam conceitos de direitos humanos de forma coerciva, não se mudam mentalidades com retórica. O Afeganistão tem de crescer como país e as pessoas têm também elas de crescer com todo o apoio da comunidade internacional de forma construtiva. Fazer com que as pessoas tenham acesso a educação, a programas que lhes possam dar o poder de começar a exigir direitos e uma sociedade com mais dignidade e liberdade. É nesta altura que temos de apoiar o Afeganistão, no sentido em que não é virados uns contra os outros que conseguiremos mudar mentalidades. Se nós não virmos em conjunto a linha do horizonte, jamais poderemos caminhar em conjunto para ela.

Temos a democracia como a nossa grande bandeira, mas não nos podemos esquecer que aqueles que a tentaram forçar ao máximo – os Estados Unidos – têm uma democracia muito questionável, com um colégio eleitoral com mais poder do que o próprio povo. Não podemos ser demasiadamente etnocêntricos a olhar para as coisas. Temos de acompanhar a situação e ajudar o povo afegão, as pessoas e as comunidades a terem direitos humanos fundamentais e uma sociedade mais justa. Isto vai demorar tempo e até lá, como em quase todas as revoluções ou mudanças de regime, haverá periodos menos bons e mais conturbados.

Mas sublinho que o meu trabalho não é político, é de apoiar e ajudar a salvar vidas de afegãos e afegãs, é de estar todos os dias a garantir que as pessoas têm acesso à saúde e a uma melhor qualidade dos serviços de saúde. E é de apoiar tanto os governos como as entidades locais e nacionais a reforçarem-se de forma a serem cada vez mais independentes na prestação deste tipo de serviços que são básicos para a população do Afeganistão.


Entrevista de Luís Branco para o esquerda.net