O último filme de Steven Spielberg, “The Post”, aborda uma das mais importantes fugas de informação da história dos EUA, Os Documentos do Pentágono. O centro do filme é mostrar os bastidores da decisão tomada pelo jornal Washington Post de prosseguir a publicação de artigos baseados naquela fuga de informação, apesar de o governo Nixon ter conseguido na Justiça a suspensão da sua divulgação por parte do New York Times. Mas esta foi apenas uma das muitas decisões neste caso.

 

Alterações na legislação reforçaram os poderes do executivo e obrigaram Snowden a refugiar-se no estrangeiro. Ao contrário de Ellsberg, Snowden não tinha a menor hipótese de evitar a cadeia e sequer teria direito a um julgamento justo.

 

Daniel Ellsberg e Edward Snowden: o primeiro ficou detido apenas dois dias; o segundo arriscava a prisão perpétua. Daniel Ellsberg e Edward Snowden: o primeiro ficou detido apenas dois dias; o segundo arriscava a prisão perpétua.

 

1971: Enquanto fugia de casa em casa, iludindo a perseguição do governo, e distribuía a um número crescente de jornais cópias dos Documentos do Pentágono, Daniel Ellsberg, o autor da histórica fuga de informação, estava convencido de que quando a missão a que se propusera tivesse terminado se entregaria à polícia e passaria o resto dos seus dias na cadeia.

Quando esse momento chegou, um jornalista perguntou-lhe: “Como se sente indo para a cadeia?” A resposta foi: “O sr. não iria para a cadeia para ajudar a acabar com a guerra?” Ambos, jornalista e Ellsberg, estavam convencidos de que o segundo cometera um grave crime.

Foi portanto uma enorme surpresa quando ficou claro que o Espionage Act, uma lei de 1917 que o governo invocara contra Ellsberg, não se aplicava ao caso e portanto ele não cometera crime algum, pois os Documentos do Pentágono eram de interesse público e a Primeira Emenda garantia ao autor da fuga de informação a legitimidade para fazê-la. Ellsberg passou apenas duas horas detido. Mais tarde seria julgado, mas o juiz, diante dos atropelos do governo, anulou e encerrou o processo.

2013: Edward Snowden escolheu Hong Kong para fazer as suas revelações. Foi lá que se encontrou com os jornalistas Glenn Greenwald e Laura Poitras, com quem acertou a estratégia de divulgação do material secreto da National Security Agency. Por essa altura, Bradley Manning (depois Chelsea Manning), já fora condenada a 35 anos de prisão por ter fornecido à Wikileaks documentos secretos sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão. Snowden estava consciente de que se a conferência de imprensa que planeara se realizasse em solo americano, ele seria imediatamente preso e a divulgação das denúncias se tornaria impossível.

Mais de um mês à espera de asilo político

A escolha, porém, não foi a melhor, já que as pressões dos EUA se exerceram brutalmente sobre as autoridades chinesas. Snowden teve a sorte de ainda conseguir permissão para embarcar num voo da Aeroflot para Moscovo, apesar de o seu passaporte ter sido revogado pela Casa Branca, mas permaneceria ainda mais de um mês na área internacional do aeroporto de Sheremetyevo até obter asilo político na Rússia, com a condição, imposta por Putin, de que parasse de divulgar os documentos da NSA. Durante a estadia no aeroporto, pediu asilo político a 21 países e só recebeu resposta positiva de um: a Venezuela. No fim optou por ficar em Moscovo, pois a viagem para Caracas seria muito arriscada.

Edward Snowden: um mês no aeroporto de Moscovo à espera de asilo. Foto de coolloud, FlickR
Edward Snowden: um mês no aeroporto de Moscovo à espera de asilo. Foto de coolloud, FlickR

Parece assim evidente que nos 42 anos que separam a fuga de informação de Ellsberg da de Snowden, muita coisa mudou, e não foi a favor da democracia nem da liberdade de expressão nos Estados Unidos.

Semelhanças na atuação dos governos

Recordemos que a reação do governo Nixon diante da divulgação dos Documentos do Pentágono foi processar Ellsberg ao abrigo do Espionage Act e entrar com medidas cautelares para forçar o New York Times, e depois o Washington Post, a suspender a publicação dos documentos embaraçosos para vários governos. Essa suspensão viria a ser derrubada pelo Supremo Tribunal, por violar a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.1

No caso de Snowden, o governo Obama reagiu de forma muito semelhante ao de Nixon, afirmando que a vigilância da NSA sobre milhões de cidadãos tinha sido essencial para as ações de contraterrorismo e que “valiam a pena” as “modestas invasões de privacidade” envolvidas na recolha dos registos das chamadas telefónicas e das ações na net.

O que mudou

O governo Obama, porém, contava já com mudanças na legislação que lhe permitiam, caso apanhasse Snowden, confiná-lo pelo resto dos seus dias.

As mudanças começaram no próprio processo de Ellsberg. O julgamento foi anulado diante das flagrantes ações ilegais do governo, que incluíram a invasão clandestina do consultório do psiquiatra de Ellsberg, na tentativa de encontrar informações que pudessem servir para chantagear o ativista e assim impedi-lo de prosseguir as suas denúncias. Esta invasão viria a preceder aquela que finalmente provocaria a renúncia de Nixon, a do escritório do Partido Democrata no edifício Watergate. Mas o mesmo juiz que anulou o julgamento aceitou um protesto dos advogados do governo que conseguiram impedir que Ellsberg explicasse a sua decisão de divulgar os Documentos do Pentágono. Para o governo, a explicação de Ellsberg atentava contra a segurança nacional. A medida criou jurisprudência: pela primeira vez um acusado foi impedido de explicar por que fizera aquilo de que era acusado.

A Lei FISA e o Patriot Act

Em 1978 foi assinado o Foreign Intelligence Surveillance Act, que autoriza o presidente a decretar atividades de vigilância sobre indivíduos e entidades estrangeiras nos Estados Unidos durante até um ano sem uma ordem judicial. No caso de cidadãos dos EUA, o Procurador Geral tem de pedir uma autorização ao Tribunal especial do Foreign Intelligence Surveillance (FISA).

Em 2001, na sequência do 11 de setembro, foi aprovado o Patriot Act, que deu às agências de informações e segurança praticamente um cheque em branco para as suas atividades de vigilância. Ainda assim, o presidente George Bush ainda deu ordens secretas, nos três anos que se seguiram, para que cidadãos dos EUA fossem sujeitos a serem espionados sem o devido pedido de autorização ao tribunal FISA. Finalmente, uma alteração da lei FISA de 2008 permitiu a coleta de registos de comunicações sem mandato, desde que pelo menos um dos receptores das chamadas não fosse cidadãos dos EUA.

Desta forma, o governo Obama pôde contar com um conjunto de leis que lhe deram cobertura à interceptação maciça de comunicações em todo o mundo, pondo praticamente o planeta sob vigilância e ultrapassando mesmo os limites daquelas leis. Mas, desta vez, o autor da denúncia não podia esperar um julgamento justo, nem sequer o direito a defender-se apropriadamente no tribunal.

Como disse Bas Wizner, advogado de Snowden, “quando dizemos que o julgamento não seria justo, não nos referimos às práticas consideradas justas pelos advogados de direitos humanos; o que dizemos é que a lei, os próprios estatutos, eliminam qualquer tipo de defesa que Snowden pudesse apresentar e essencialmente o equivalem a um espião.”

Luis Leiria

Para saber mais:

“Daniel Ellsberg, Secrets – A Memoir of Vietnam and the Pentagon Papers”, New York, Viking Penguin, 2002

Lieke Malcorps, “Daniel Ellsberg, Edward Snowden and the Importance of Government Whistleblowing. How the release of the Pentagon Papers and the NSA revelations have demonstrated that American democracy was, and still is, threatened by government abuse”

Tese de Mestrado apresentada na Universidade de Ghent.

Greenwald, G., MacAskill, E., & Poitras, L. (2013). Edward Snowden: the whistleblowerbehind the NSA surveillance revelations.

1“O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos.” Ver aqui.

Fonte: esquerda.net