Manifestantes entram em conflito com a polícia de Chicago durante um protesto pela morte de George Floyd, em 30 de maio de 2020.Manifestantes entram em conflito com a polícia de Chicago durante um protesto pela morte de George Floyd, em 30 de maio de 2020. Foto: Jim Vondruska/NurPhoto via Getty Images

 

Em 31 de maio, o terceiro dia de protestos, eu acordei em uma cidade que entrava em uma espécie de bloqueio total. O noticiário informava que as pontes que ligavam o centro de Chicago ao seu lado norte haviam sido bloqueadas, para evitar cenas de propriedades destruídas pela cidade. No final do dia, a prefeita anunciaria por meio de tweets que o centro da cidade teria acesso restrito para “liberar recursos e permitir apoio suplementar aos bairros”. No entanto, naquela manhã, os “recursos” e “apoio suplementar” vieram na forma de centenas de policiais a pé, em camionetes SUV e em helicópteros circulando sobre a região. A Guarda Nacional seria chamada em seguida para estabelecer pontos de verificação.

Depois de ouvir as constantes sirenes e helicópteros da janela do meu apartamento em Southside por 30 minutos, decidi dar um passeio. Quando subi a 47th – uma rua cheia de comércios locais – vi que duas fachadas de lojas haviam sido arrombadas. A polícia estava por toda parte, afastando os moradores do bairro de forma agressiva. Não era nada parecido com o que eu tinha visto no noticiário: a polícia percorrendo o centro rico e branco da cidade, cercando “vândalos” e “saqueadores”.

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Mais tarde naquele dia, participei de uma reunião de organização com outros ativistas e líderes de bairros vizinhos, a grande maioria envolvida em ações de base que se organizavam para o Movimento Black Lives Matter. Ouvimos falar de uma marcha nas proximidades. Quando ela se aproximou, alguns de nós decidimos participar do protesto pacífico que seguia para o leste, através do Hyde Park e em direção ao lago Michigan. A marcha terminou pacificamente, perto da Lake Shore Drive: a principal via que segue ao longo da margem do lago. Quando os manifestantes tentavam voltar para o oeste, em direção aos seus carros e ao transporte público, a polícia formou uma barreira que nos impediu de dispersar. Os manifestantes insistiram, ainda sem violência, e a polícia começou a nos empurrar de volta, usando cassetetes. Quando me virei, vi um de meus amigos ser agredido e empurrado, implorando para o policial se acalmar. Enquanto alguns dos manifestantes eram atacados pela polícia, outros tentavam afastá-los do perigo. Não seria a última vez que esse grupo de policiais nos atacaria.

 

Quando nos aproximamos de um corredor de vitrines na rua 53, os policiais, que também se dispersavam, começaram a virar um por um para correr em nossa direção.

 

Duas outras pessoas do nosso grupo pularam por cima de nosso amigo, usando seus corpos para protegê-lo da surra, e recebendo sua parcela de pancadas no processo. Outra mulher pulou sobre seu noivo, na tentativa de protegê-lo dos golpes de cassetete.

No total, cinco negros foram espancados pelos policiais do Departamento de Polícia de Chicago a ponto de serem hospitalizados. Os quatro que foram presos tiveram concussões, ossos quebrados, cortes e contusões. Uma pessoa precisou de atendimento médico imediato para os ferimentos na cabeça, e foi liberada sob custódia dos médicos que compareceram à marcha. Um manifestante foi alvo de spray de pimenta por filmar o ataque da polícia. Uma amiga foi empurrada na frente de uma viatura policial em movimento por um oficial do DPC, e eu também fui derrubado enquanto corria para puxá-la na frente do veículo. Esta, sem dúvida, é apenas uma fração dos milhares de manifestantes que foram agredidos, espancados, alvos de insultos sexistas, homofóbicos ou transfóbicos, e tiveram seu direito a assistência jurídica negado simplesmente por estarem dispostos a defender vidas negras da contínua violência policial.

Naquela noite e no dia seguinte, começaram a se espalhar notícias de que os manifestantes em Chicago estavam presos e inacessíveis, sem que se soubesse deles havia muitas horas, com seu direito a advogado desrespeitado, telefonemas impedidos e solicitações de máscaras para proteção negadas – apesar do fato de que muitas cadeias são focos da covid-19. Nas redes sociais, a prefeita de Chicago, Lori Lightfoot, classificou como justa a raiva dos manifestantes, e disse que as restrições e os postos de controle da Guarda Nacional estavam lá para proteger os habitantes de Chicago. Na verdade, as restrições municipais andaram de mãos dadas com a violência e a impunidade da polícia. As ações, que incluíram a decisão da prefeita de encerrar o programa de almoço oferecido aos estudantes de escolas públicas durante a quarentena pela covid-19, juntamente com a presença esmagadora da polícia, pareciam mais uma forma de punição coletiva e um esforço para proteger a propriedade do centro rico da cidade, do que a uma estratégia de proteção aos manifestantes. O aumento da presença policial nos bairros negros combinado às restrições trouxeram à tona tristes lembranças da escassez que existia nas comunidades negras durante a recessão de 2008, e tantas vezes antes disso. O desrespeito de Lightfoot contra os supostos “agitadores” ilustra a repugnante ideia de equivalência entre propriedades – edifícios, tijolo e argamassa – e vidas negras. Para nós, isso apenas reforça o que está na raiz do racismo contra o qual o país se levantou para protestar: o capitalismo racial. Afinal, não é possível acumular riqueza a ponto de tornar-se um bilionário sem estar envolvido em um sistema que sustenta o racismo.

 

A demanda para cortar investimentos na polícia também é um apelo para investir em recursos, instituições e práticas capazes de reconstruir comunidades e pessoas historicamente negligenciadas.

 

À medida que a demanda pelo corte nos orçamentos dos departamentos de polícia se espalha por todo o país, a resposta contraditória dos prefeitos à esquerda e centristas que usam políticas progressistas como discurso se torna cada vez mais visível. Lightfoot enviou policiais extremamente agressivos usando equipamento para controle de rebeliões, especialmente nos bairros negros, para reprimir de forma violenta as manifestações antirracistas contrárias à violência policial, enquanto ela mesma elogiava os manifestantes. Protestos e levantes – assim como o voto e a greve – são ferramentas que pertencem ao povo. Eles são tão importantes para a democracia quanto qualquer outra ferramenta política à disposição das pessoas. Para os negros, levantes e protestos foram ferramentas poderosas na luta pela sua libertação.

Em sintonia com a liderança do Partido Democrata, as propostas da prefeita Lightfoot para a reforma da polícia são uma tentativa de fugir das demandas pelo corte nos investimentos no Departamento de Polícia de Chicago. Ela oferece um programa de “bem-estar” e mais financiamento para a polícia, em vez de oferecer ajuda às comunidades não brancas aterrorizadas por gerações pela violência das forças da lei, e que mais recentemente sofrem com o impacto do fracasso do governo dos Estados Unidos em conter o surto de covid-19.

O que a prefeita não percebe é que os pedidos pelo fim do financiamento da polícia não são apenas para controlar os abusos de autoridade, poder e recursos. As demandas decorrem do inegável fato de que os negros continuam sendo violentados e explorados por um sistema que usa o policiamento para conter, controlar e concentrar essa brutalidade nas comunidades negras e em outras comunidades não brancas. Além disso, as demandas para cortar investimentos e até extinguir departamentos policiais são um chamado para o fim do investimento em instituições que prejudicam os negros, entre eles a polícia e as prisões. A demanda para cortar investimentos na polícia também é um apelo para investir em recursos, instituições e práticas – mais novas e eficazes – capazes de reconstruir comunidades e pessoas historicamente negligenciadas. Realocar a quantidade exorbitante de dinheiro e recursos destinados às forças da lei para as comunidades que, durante gerações, foram diretamente afetadas pelo policiamento racista e violento. No momento, não cabe aos políticos dizer às massas o que devem fazer, pois estas já estão cansadas da incapacidade do país em abordar de forma duradoura ou significativa sua história racista. O papel deles – se existe algum – é ouvir e agir em defesa da vida dos negros.

Tradução: Antenor Savoldi Jr.