A violência policial contra corpos e territórios racializados tem expressão gritante nos bairros periféricos dos grandes centros urbanos. Nestes espaços, as forças de segurança atuam como se estivessem numa zona de guerra. Relembramos neste artigo alguns dos exemplos mais atrozes dessa violência.
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                                                                Foto Esquerda.net.

 

 

Mariana Carneiro.

Vários relatórios, nacionais e internacionais, têm denunciado a violência policial que recai sobre as populações racializadas dos bairros periféricos dos grandes centros urbanos. Cova da Moura, Quinta do Mocho, Quinta da Fonte, Quinta da Princesa ou Bela Vista são disso exemplo.

Quotidianamente, somos confrontados e confrontadas com um discurso público que criminaliza parte significativa dos moradores das periferias. Os bairros periféricos, habitados maioritariamente por população negra, intensamente afetada pela precariedade laboral, habitacional e discriminação racial, são apresentados como espaços perigosos, onde o crime prospera em cada esquina, e cuja população representa uma ameaça que é preciso conter. E essa narrativa é utilizada para justificar o caráter de exceção das intervenções policiais. Os jovens negros são os principais alvos da brutalidade policial. Maltratados e humilhados, agredidos sistematicamente e, muitas vezes, assassinados pelas forças de segurança. Entre 2002 e 2013, mais de uma dezena de jovens negros com uma média de idade de 19 anos foram mortos pela polícia.

A cobertura mediática sobre estes territórios perpetua a narrativa de criminalização. Por outro lado, o arquivamento da expressiva maioria dos casos de violência policial e a ausência de condenações daqueles que, no seio das forças de segurança, continuam a cometer crimes de ódio contra comunidades racializadas, alimenta o sentimento de impunidade.

Neste artigo, relembramos apenas alguns dos exemplos mais atrozes de discriminação racial por parte das autoridades e de violência policial racista.

1994, 8 de junho
Romão Monteiro, 33 anos, de etnia cigana, morto a tiro pela PSP de Matosinhos na esquadra enquanto estava detido e algemado. A PSP tentou encobrir crime, alegando ter sido suicídio. Romão Monteiro foi detido no âmbito de uma rusga a um acampamento cigano junto ao hospital Magalhães de Lemos. O agente Domingos Antunes viria a ser condenado pelo crime de homicídio por negligência, tendo-lhe sido aplicada uma pena de três anos de prisão, suspensos por quatro anos, e uma pena acessória de expulsão da PSP, mais tarde anulada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

2001, 5 de dezembro – Cova da Moura, Amadora
Ângelo “Angoi” Semedo, 17 anosmorto pelas costas por um agente da PSP com um tiro de caçadeira. Angoi foi abordado por dois polícias perto de sua casa por suspeita de roubo de um automóvel. O agente foi suspenso 75 dias.

2002, 20 de junho – Bela Vista, Setúbal
Manuel António Tavares Pereira, (Tony), 24 anos, operário da construção civil, morto por dois tiros(link is external) de uma ‘shot-gun’ à queima-roupa disparada por um polícia. O agente da PSP foi absolvido. Em tribunal, o diretor nacional da PSP da altura dizer que eles desconheciam o caráter letal da arma que matou Tony.

Já José Falcão, dirigente do SOS Racismo, foi condenado pelo Tribunal de Setúbal a 20 meses de prisão – com pena suspensa – e mais 4 mil euros de multa, pelo crime de “difamação agravada” do coletivo de juízes. José Falcão acusou os juízes de adotarem “uma justiça para ricos e brancos e outra para pobres e pretos”.

2003, 26 de março – Zambujal, Amadora
Carlos Reis (PTB), 20 anos, baleado na cabeça por um agente da PSP, durante uma ‘operação stop’. Segundo a polícia, foi mandado parar, mas desobedeceu à ordem.

2004, 18 de junho – Bairro 6 de Maio, Amadora
José Carlos Vicente, conhecido por “Teti”, 16 anos, foi agredido pela polícia acabando por morrer no hospital Amadora-Sintra. Vítima de uma hemorragia, entrou em paragem cardíaca.

2005, 23 de março – Bairro Amarelo, Almada
João, 17 anos. GNR dispara, em perseguição, contra viatura que circulava na Quinta do Raposo de Cima, Monte da Caparica, matando um jovem de 17 anos e ferindo outros dois, um deles com 14 anos.

2009, 4 de janeiro – Falagueira, Amadora
Edson Sanches (Kuku)14 anos, morador no Bairro da Laje, Amadora, morreu baleado pela polícia. Três agentes da PSP à paisana encurralam um veículo com cinco suspeitos de furto, incluindo Kuku, filho de emigrantes cabo-verdianos, que frequentava uma escola na Reboleira. Depois de uma perseguição, Kuku foi abatido à queima-roupa com um tiro na cabeça a uma distância de menos de 20 cm. O agente responsável pelo disparo foi absolvido.

No tribunal, durante as alegações finais, foi animalizado postumamente, comparado a uma gazela

2010, 15 de março – Alcântara, Lisboa
O rapper ‘Mc Snake’ (Nuno Rodrigues), de 30 anos, morreu depois de ter sido baleado por um agente da PSP. MC Snake desobedeceu a uma ordem de paragem numa “operação stop” e foi perseguido por uma carrinha com cinco agentes da PSP. Depois de imobilizarem o seu carro, na Radial de Benfica, dispararam três vezes. O rapper morreu devido aos ferimentos causados pela bala que lhe atravessou as costas. O agente responsável pelo disparo de homicídio qualificado foi condenado por homicídio por negligência grosseira – 20 anos, pena suspensa.

2013, março
Jovem despistou-se e morreu na sequência de uma perseguição policial no Bairro da Bela Vista, Setúbal. O adolescente seguia numa mota, sem capacete, e não parou numa operação STOP. PSP admite que disparou(link is external) balas de borracha para intimidar jovem.

2013, 13 de junho – Bairro 6 de Maio, na Amadora
Diogo Filipe Borges Seidi (Musso), 15 anos, foi detido a 10 de maio de 2013 na sequência de um alegado furto no interior de um supermercado. Na esquadra de Alfragide foi agredido por agentes da PSP(link is external). Deu entrada nas urgências do Hospital Amadora-Sintra, queixando-se de dores de cabeça e de ter sido torturado pela polícia. Acabou por morrer no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, após um mês de internamento. A PSP abriu um inquérito ao caso mas ninguém foi responsabilizado.

2013, 27 de outubro – Casal de São Brás, Amadora
Adriano Augusto Lima Pires (Guto Pires) foi agredido e algemado dentro de casa do pai, Agostinho Reis Pires, de 96 anos, que presencia o ocorrido e é agredido. A filha de Adriano, de 15 anos, é também agredida. Agressões continuam fora de sua casa. É levado para a esquadra onde é espancado enquanto estava algemado e deitado no chão. Foi alvo de todo o tipo de insultos racistas. Com hematomas no cérebro, duas costelas partidas e lesões numa terceira, três dentes danificados e a vista esquerda com lesões (falta de visão, dores agudas), foi internado nos cuidados intensivos do Hospital Amadora-Sintra. No dia 1/11/2013, dia de alta hospitalar, é visitado pelo chefe Luís Martins que apresenta desculpas em nome da PSP e lhe oferece um cheque, que Guto recusa. O caso foi arquivado.

2015, 5 de fevereiro – Cova da Moura e na esquadra de Alfragide, Amadora
Durante uma rusga na Cova da Moura, a polícia revistou aleatoriamente os moradores. Um jovem, Bruno Lopes, foi detido de forma extremamente violenta pela PSP(link is external), o que motivou vários protestos, principalmente por mulheres do bairro que se encontravam no local. A polícia dispersou as e os moradores com balas de borracha. Uma moradora que estava na varanda de sua casa foi atingida.
O jovem detido foi agredido novamente durante o transporte até à esquadra.

 

Cinco jovens, alguns dos quais dirigentes da Associação Cultural Moinho da Juventude, deslocaram-se até à esquadra de Alfragide para obter informações sobre a detenção. Os jovens foram agredidos à porta da esquadra com pontapés, murros, cassetetes e balas de borracha. Foram então levados para o interior da esquadra, onde continuaram a ser agredidos, ameaçados e humilhados. Ficaram com hematomas e feridas no corpo e na face. Um foi baleado na perna com duas balas de borracha, dois tiveram dentes partidos. Passadas 48 horas, os jovens foram libertados com termo de identidade e residência.

Perante um caso tão flagrante, o Alto-Comissariado para as Migrações divulgou um comunicado onde referia que os acontecimentos indiciavam uma “eventual prática de atos de violência racial” e que seria instaurado um processo para averiguar os factos. Foi realizada uma concentração em frente à Assembleia da República contra a violência policial racista. E, a julho de 2015, foi movido um processo disciplinar contra nove elementos da PSP, que resultou na suspensão de três dos agentes por um período de 90 dias.
O Ministério Público abriu um processo contra 18 polícias da esquadra de Alfragide e foi retirada a acusação de invasão da esquadra imputada a cinco dos jovens.

Dezassete agentes da PSP foram acusados de denúncia caluniosa, injúria, sequestro, ofensas à integridade física qualificada, tortura, falso testemunho e falsificação de documentos, todos agravados por ódio racial.
A 20 de maio de 2019, o coletivo de juízes deu como provadas as agressões aos jovens da Cova da Moura. A sentença absolveu nove polícias, condenou sete a penas suspensas (de dois meses a cinco anos) e um a pena efetiva de um ano e seis meses, por ter antecedentes pelo crime de ofensa à integridade física. Nas alegações finais, o Ministério Público havia já retirado as acusações de tortura e racismo, apesar de o tribunal ter dado comprovado que foram feitos insultos racistas.
Inspeção-Geral da Administração Interna não reabriu entretanto processos aos cinco polícias que foram condenados às penas mais pesadas.

Celso Lopes foi um dos seis residentes da Cova da Moura torturados na esquadra de Alfragide, na Amadora, em 2015. Em entrevista ao Fumaça, contou como lhe disseram “tu vais morrer, preto do caralho”, “temos que extinguir a vossa raça”. Foi torturado, atingido com balas de borracha, pontapeado, obrigado a deitar-se numa poça com o seu próprio sangue e, para que não sofrer mais agressões, fingiu estar inconsciente.

2016, 16 de agosto
Um cidadão negro foi surpreendido com uma rusga da PSP ao seu estabelecimento comercial, na Portela de Carnaxide, durante a qual foi agredido por polícias. O homem foi depois “arrastado até à carrinha da polícia, algemado e insultado com declarações racistas dos agentes da PSP”, sofreu uma “fratura da cabeça do perónio do joelho esquerdo”.

2016, 22 de agosto
Matamba Joaquim, ator do teatro Griot, e um amigo foram barbaramente agredidos por agentes que circulavam numa viatura de patrulha da PSP, após uma altercação com os polícias. Matamba e o seu amigo foram detidos para serem conduzidos à esquadra da Baixa e durante a viagem foram agredidos e insultados por agentes. As agressões e os insultos racistas, acrescidos de troça, continuaram no interior da esquadra.

2016, outubro
As demolições recomeçaram no Município da Amadora. Sem notificação ou aviso prévio aos moradores, as retroescavadoras fizeram-se anunciar pela presença policial que, bem cedo, chegava para prevenir qualquer possibilidade de resistência. Relatora Especial das Nações Unidas para a Habitação Adequada, Leilani Farha, veio juntar-se a várias organizações que alertaram para a urgência de interromper as demolições, sob pena de estas violarem tacitamente o direito à habitação.

2019, 20 de janeiro
PSP é chamada a uma situação de conflito entre duas mulheres na sequência de uma festa no Bairro da Jamaica e envolve-se em confrontos com os moradores. Vão a tribunal quatro moradores e um agente da esquadra da PSP de Cruz de Pau, os que estavam inicialmente acusados pelo Ministério Público. O juiz de Instrução Criminal do Seixal recusou levar a tribunal outros dois agentes da PSP que também estiveram envolvidos na situação de agressões.

2019, 21 de janeiro
Polícia dispersa manifestação contra brutalidade policial no Bairro da Jamaica com carga violenta e disparo de balas de borracha em plena Avenida da Liberdade, em Lisboa.

2019, fevereiro
O CICDR manifestou-se porque, através de duas páginas de Facebook, vários agentes da PSP manifestam atitudes racistas e discursos que incentivam ao ódio, racismo, fascismo, misoginia e também proferem algumas ameaças contra alguns cidadãos.

2020, 19 de janeiro – Reboleira, Amadora
Motorista do autocarro da Vimeca onde viajava chamou a polícia por ter visto que Vitória, a filha de oito anos de Cláudia Simões, viajava sem o passe, ainda que as crianças com menos de 12 anos possam viajar de autocarro sem pagar. Agente da PSP agrediu violentamente a passageira, que ficou com o rosto desfigurado.
Ministério Público acusa o agente Carlos Canha dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, abuso de poder e injúria agravada. Outros dois agentes que presenciaram agressões são acusados de abuso de poder e de nada fazerem para impedir agressões.

2020, 12 de março
O cidadão ucraniano Ihor Humenyuk foi torturado e morto no Aeroporto Humberto Delgado por três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Em maio de 2021, três inspetores do SEF foram condenados a penas entre sete e nove anos de prisão. Foram posteriormente constituídos mais cinco arguidos pelo crime de omissão de auxílio a Ihor Homenyuk. Os arguidos são seguranças da empresa Prestibel. Demitido do cargo a 30 de março de 2020, o ex-diretor de fronteiras do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Sérgio Andrade, foi também demitido da função pública por proposta da Inspeção-Geral da Administração Interna.

2020, 1 de maio
Polícia impediu jovem Telmo Santos, de 22 anos, de gravar rusga no Bairro da Bela Vista, agrediu-o e chamou-lhe palhaço.

 

2020, 30 de maio
A intervenção sanitária no Bairro da Jamaica, no Seixal, transformou-se numa operação policial de grande aparato. Surgiu um foco de Covid-19 neste bairro, que, curiosamente, foi considerado prioridade número um para realojamento devido às condições sub-humanas em que se encontram os seus moradores há mais de 30 anos. O paciente zero desse bairro terá sido um operário da construção civil infetado no trabalho. As autoridades de saúde fizeram-se acompanhar por dezenas de agentes das Equipas de Intervenção Rápida da PSP e da Unidade Especial de Polícia, num aparato com cobertura televisiva. Os medias fizeram o seu papel para nos mostrar o quão perigosos são os moradores do Bairro da Jamaica para a saúde pública.

2021, abril
Agente da PSP impediu indevidamente filmagem de ação policial no bairro da Bela Vista em Setúbal. Polígrafo confirma o caso: “A interrupção forçada por um polícia da filmagem de uma rusga tornou-se viral no Instagram, exibindo o momento em que um agente da PSP desfere um safanão no telemóvel que estava a registar em vídeo a situação ocorrida no bairro da Bela Vista, em Setúbal”.

2021, 17 de abril
Agente da PSP intimidou jovem negro no miradouro de Santa Catarina. Polígrafo confirmou que o agente “não cumpriu a lei na abordagem ao cidadão no espaço público, assegurando erradamente que um residente da Amadora não podia estar no concelho de Lisboa e que a carta de condução não servia como documento de identificação”.
Cidadão Pê Feijó gravou o episódio. Mais tarde, com o vídeo a circular nas redes sociais, Feijó recebeu uma carta emitida pelo DIAP, visando o pagamento de uma injunção de 800 euros por “gravação ilícita” e “difamação”.

 

 

2021, 6 de maio
TVI divulgou testemunhos de migrantes africanos vítimas de agressões físicas e verbais por parte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Os cinco cidadãos chegaram ao aeroporto de Lisboa a janeiro de 2017, vindos de países africanos em guerra. Um deles conta que um elemento do SEF lhe pediu 700 euros o deixar seguir viagem.
“Agrediram-me na cabeça, na orelha e, quando és detido e algemado, as algemas estão tão apertadas que quando as tiram parece que te cortam o braço (…) Começaram a bater-me na boca… quando me pediam para tirar fotografias, eu baixava a cabeça e eles começaram a dar-me socos (…) Não podia fazer nada, sempre que eu abria a boca, eles vinham na minha direção e agrediam-me…”, descreveu Barry Moudou à TVI.

2021, 9 de novembro
O Bairro da Jamaica foi invadido por um contingente de dezenas de polícias. De acordo com a autarquia da CDU, as autoridades foram ao local fechar bares ilegais por queixas de moradores. Mas o aparato policial foi acompanhado de retroescavadoras. Advogada de um dos proprietários disse que a autarquia nunca poderia ter procedido à demolição, somente fazer procedimento de despejo administrativo.