Centro de Reeducação Feminino

As 700 detentas do Centro de Reeducação Feminino (CRF) de Ananindeua, município paraense vizinho a Belém, relatam terem sido espancadas e obrigadas a sentarem apenas de calcinha em cima de um formigueiro, como mostram vídeos com relatos das presas a membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Pará obtidos com exclusividade pelo Intercept.

As imagens foram gravadas pelos advogados, em seus celulares, nos dias 11 e 12 de setembro. Além de situações de tortura, assédio e humilhação, as presas também foram mantidas incomunicáveis por uma semana, sem acesso tanto aos familiares quanto aos seus defensores.

 

 

No dia em que foram apresentadas à “metodologia de trabalho” da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), as 700 presas do CRF logo perceberam a brutalidade dos novos guardas. Nos vídeos, elas relatam que foram acordadas aos gritos às 4h para tirarem a roupa e sentarem no chão. Algumas afirmam ter apanhado com cassetete e terem sido atingidas com spray de pimenta. É possível ver marcas de hematomas nos braços e no rosto de diversas detentas. Casos de desmaio e ameaças de morte também foram mencionados.

Não foi só a violência: após a chegada da força-tarefa, contam, a rotina mudou. Comida e produtos básicos de higiene viraram luxo. Nas revistas, mulheres menstruadas afirmam terem sido obrigadas a se agachar com as pernas abertas, sem calcinha ou absorvente íntimo. “Nós se vazando de sangue, menstruadas, e eles disseram que não querem nem saber”, relata uma detenta em um dos vídeos.

Mais de 60 presas do CRF Ananindeua foram ouvidas pela equipe da Comissão de Direitos Humanos da OAB no Pará. Desde a intervenção, que começou em agosto em unidades masculinas e dia 4 de setembro no centro feminino, os detentos estavam impedidos de receber visitas de familiares e advogados. Até a OAB e o Copen, órgão de controle prisional, tiveram a entrada barrada nas unidades. A justifica para isso: nenhuma. Essa situação só foi revertida após uma ação civil pública apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o estado e a União.

 

‘Às vezes a gente pede à Deus pra Ele matar a gente porque não é fácil.

 

Em vídeos e fotos, a advogada da OAB Juliana Fonteles e sua equipe registraram histórias parecidas, mesmo com presas que estão em celas separadas e sem contato. “Quando você tem pessoas de diferentes setores, que não têm contato e, portanto, não podem combinar um discurso, descrevendo a mesma cena, é um indício forte de que as acusações são graves e verdadeiras”, diz Fonteles.

Os relatos foram incluídos em um relatório entregue ao MPF e ao Ministério Público estadual do Pará, além dos órgãos que integram o sistema prisional do estado, e devem ser publicado no fim de outubro. Os depoimentos são reforçados por uma série de inspeções feitas pela equipe de peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que visitou unidades prisionais de Altamira e Belém poucos dias depois, entre 16 e 21 de setembro. Em Ananindeua os peritos pediram com urgência exame de corpo de delito em uma detenta devido à gravidade de seus ferimentos, além de médicos para outras 22 mulheres.

Apenas nas unidades de Belém visitadas pelo Mecanismo, e que estão sob intervenção federal, os peritos solicitaram outros 12 exames de corpo de delito e 80 exames médicos.

‘Vagabunda!’, ‘Gorda fedorenta!’, ‘Puta!’, ‘Aberração!’

Além de agressões verbais como os xingamentos de “vagabunda”, “gorda fedorenta”, “puta” e “aberração”, as detentas do CRF relatam diversos casos de tortura nos vídeos gravados pela OAB. “Fui colocada de calcinha em cima do formigueiro. O agente deu com cassetete nas minhas costas porque eu não conseguia levantar. Fiquei 10 minutos sentada no formigueiro só de calcinha”, conta uma detenta. Outra relata que elas foram deixadas por horas sentadas no piso molhado enquanto eram agredidas verbalmente. “Chamaram a gente de puta, de aberração. Que o sistema ia piorar pra nós. Ficamos mais de três horas sentadas no molhado, com frio e com fome”.

A falta de remédios e atendimento básico de saúde para as presas é outro ponto abordado nos vídeos. Uma idosa portadora de HIV aparece deitada no chão de uma cela, sem forças para se levantar, sendo cuidada por outras detentas. Em outro vídeo, algumas mulheres citam que uma presa estava grávida e perdeu o filho por causa da violência da operação do primeiro dia da intervenção federal na unidade. A comissão da OAB paraense solicitou exame de corpo de delito ao Instituto Médico Legal na detenta para verificar a denúncia. A resposta ainda não chegou.

“A gente precisa de um socorro. A gente não aguenta mais tanta humilhação. Estamos pagando pelo nosso crime, mas o que a gente passa aqui não é fácil. Às vezes a gente pede a Deus pra Ele matar a gente porque não é fácil. Eu tô sofrendo”, conta uma detenta.

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Força-tarefa sem lenço, documento ou diretriz

Além do CRF, outras duas unidades prisionais para homens na região metropolitana de Belém também estão sob intervenção federal, incluindo o Complexo Penitenciário de Americano, em Santa Izabel, o maior do Pará, com cerca de 6 mil detentos. O “procedimento” não chega a ser uma novidade para órgãos de fiscalização do sistema prisional federal. Desde 2017, quando foi criada por uma portaria do Ministério da Justiça, a Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) acumula denúncias de prática de tortura e humilhações contra presos em ações anteriores feitas no Rio Grande do Norte, no Ceará, no Amazonas, em Roraima e agora no Pará.

Criada por meio de uma portaria ministerial em janeiro de 2017 pelo então ministro da Justiça Alexandre de Moraes, hoje integrante do Supremo Tribunal Federal, a força-tarefa inicialmente serviria apenas para “guarda, vigilância e custódia de presos”. O órgão, no entanto, ampliou o seu escopo de trabalho sob a batuta de Moro, que em janeiro deste ano assinou uma nova portaria adicionando “atividades de inteligência de segurança pública” às funções dos agentes. Nas unidades da região metropolitana de Belém, nos presídios masculinos de Americana e Santa Izabel, e na cadeia feminina em Ananindeua, a ação federal controlou toda a administração operacional, decidindo quem poderia entrar ou sair, e os horários de alimentação e revista.

Mais de dois anos depois de sua criação, não há ainda uma diretriz sobre como funciona a força-tarefa, formada por agentes penitenciários federais e estaduais. “Apesar de estarem a serviço da União, os agentes estaduais são investigados pelas corregedorias em seus estados. Então você pode ter um caso de um agente de Santa Catarina que cometeu alguma irregularidade em uma operação no Rio Grande do Norte. O processo de apuração e responsabilização fica completamente prejudicado. Não temos registro de um agente punido até hoje”, me disse o promotor Domingos Silveira, da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão Prisional do Ministério Público Federal, de Brasília, responsável por auxiliar procuradorias regionais sobre a atividade prisional.

 

‘Fui colocada de calcinha em cima do formigueiro. O agente deu com cassetete nas minhas costas porque eu não conseguia levantar.’

 

O promotor continua: “Os registros que temos de ações do FTIP são de excesso de força, além de deixarem presos incomunicáveis logo quando chegam nas unidades. Isso é grave, pois é preciso que se preserve os direitos dos presos. E o que vemos é que esse comportamento de violações de direitos humanos se tornou em uma metodologia de trabalho”.

Mesmo sendo convocada logo após o massacre de Altamira, a FTIP nunca colocou os pés na cidade. Segundo o Ministério da Justiça, trata-se de uma “decisão de inteligência”, uma vez que os mandantes da rebelião estariam nos presídios da capital e região metropolitana. Coube à PM a administração em caráter extraordinário do Centro de Recuperação Regional, em Altamira, onde os presos foram assassinados. O “procedimento” adotado pelos agentes no local, no entanto, foi similar ao da força-tarefa.

“Em Altamira também houve uma repressão muito grande com os detentos. Há presos com marcas de bala de borracha, hematomas, feridas, doentes e precisando de medicamentos. Encaminhamos esses casos ao MP estadual porque a FTIP não participa diretamente da administração desse local”, diz o perito Luis Gustavo Magnata Silva, que descreve o tratamento como desumano.

Lá os peritos constataram também que ainda há 12 presos que correm risco de serem assassinados e que não foram transferidos do local, além de nem todos os presos terem sido ouvidos por órgãos de investigação após o massacre. “A investigação já está avançando, e algumas pessoas estão em situação de risco. Estamos encaminhando uma lista sigilosa com o nome dessas pessoas para que elas sejam ouvidas. O que a gente compreende é que as pessoas precisam ser ouvidas para que o contexto inteiro seja entendido. Pelo menos 12 detentos de Altamira podem estar sob risco de morte”, diz o perito.

A Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará, a Susipe, não respondeu às perguntas sobre os procedimentos adotados pelos órgãos estaduais de segurança nas unidades prisionais de Altamira. A Defensoria Pública do Pará também não respondeu sobre como está o atendimento a presos no estado.

 

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Nos vídeos, elas relatam que foram acordadas aos gritos de madrugada aos gritos. Além de humilhadas, também dizem terem apanhado com cassetete e terem sido atingidas com spray de pimenta. Foto: OAB-PA

The Intercept