Durante as décadas de 1970 e 80, oito ditaduras militares apoiadas pelos EUA planejaram em conjunto o sequestro, tortura, estupro e assassinato transnacionais de centenas de seus oponentes políticos. Agora, alguns dos criminosos estão finalmente enfrentando a justiça.

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(Ilustração: Sr.Garcia/The Guardian)Créditos da foto: (Ilustração: Sr.Garcia/The Guardian)

Anatole Larrabeiti tinha quatro anos, quando viu seus pais pela última vez. Era 26 de setembro de 1976, um dia após seu aniversário. Ele se lembra do tiroteio, dos clarões de tiros e da visão de seu pai caído no chão, mortalmente ferido, do lado de fora de sua casa em um subúrbio de Buenos Aires, Argentina, com sua mãe deitada ao lado dele. Larrabeiti se lembra de, em seguida, ter sido levado por policiais armados, junto com sua irmã de 18 meses, Victoria Eva.

As duas crianças tornaram-se prisioneiras. No início, elas foram mantidas em uma oficina mecânica suja que havia sido transformada em um centro de tortura clandestino. Isso foi em outra parte de Buenos Aires, a cidade para onde seus pais se mudaram em junho de 1973, juntando-se a milhares de militantes de esquerda e ex-guerrilheiros que fugiram do golpe militar em seu Uruguai natal. No mês seguinte, em outubro de 1976, Anatole e Victoria Eva foram levados para Montevidéu, capital do Uruguai, e mantidos na sede da inteligência militar. Poucos dias antes do Natal, eles foram levados para um terceiro país, o Chile, em uma pequena aeronave que voou por cima dos Andes. Larrabeiti se lembra de contemplar os picos nevados do avião.

Crianças pequenas geralmente não fazem viagens épicas por três países em alguns meses sem pais ou parentes. A coisa mais próxima que se assemelhava a uma pessoas da família era uma carcereira conhecida como Tia Mónica. Provavelmente foi tia Mónica quem os abandonou em uma grande praça, a Plaza O’Higgins, na cidade portuária chilena de Valparaíso, em 22 de dezembro de 1976. Testemunhas lembram de duas crianças bem vestidas saindo de um carro preto com vidros escuros. Larrabeiti vagou pela praça, de mãos dadas com a irmã, até que o dono de um carrossel os avistou. Ele os convidou a sentar no passeio, esperando que alguns pais em pânico aparecessem, procurando por seus filhos perdidos. Mas ninguém apareceu, então ele chamou a polícia local.

Ninguém conseguia entender como as duas crianças, cujos sotaques os marcavam como estrangeiros, haviam chegado aqui. Foi como se tivessem caído do céu. Anatole era jovem demais para entender o que acontecera. Como um menino de quatro anos que se encontra no Chile explica que não sabe onde está, que mora na Argentina, mas é na verdade uruguaio? Tudo o que sabia era que estava em um lugar estranho, onde as pessoas falavam sua língua de uma maneira diferente.

No dia seguinte, as crianças foram levadas para um orfanato e de lá foram enviadas para lares adotivos separados. Depois de alguns meses, eles tiveram um golpe de sorte. Um cirurgião-dentista e sua esposa queriam adotar, e quando o magistrado encarregado dos filhos perguntou ao cirurgião qual irmão ele queria, ele disse que queria ambos. “Ele disse que tínhamos que vir juntos, porque éramos irmão e irmã”, Larrabeiti me disse quando nos conhecemos no início deste ano na capital do Chile, Santiago.

Hoje, ele é um promotor público de 47 anos, elegante e bem-vestido, com olhos castanhos e cabeça raspada. “Decidi viver sem ódio”, disse ele. “Mas eu quero que as pessoas saibam.”

O que Larrabeiti quer que as pessoas saibam é que sua família foi vítima de uma das redes internacionais de terrorismo de estado mais sinistras do século 20. Foi chamada de Operação Condor, em homenagem ao abutre de asa larga que voa sobre os Andes, e reuniu oito ditaduras militares sul-americanas – Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Paraguai, Brasil, Peru e Equador – em uma única rede que cobria quatro-quintos do continente.

Demorou décadas para esse sistema ser totalmente exposto. Ele permitiu aos governos enviar esquadrões da morte de um país para outro para sequestrar, assassinar e torturar inimigos – reais ou suspeitos – entre suas comunidades de emigrantes e exilados. A Operação Condor efetivamente integrou e expandiu o terror de estado desencadeado pela América do Sul durante a Guerra Fria, depois que sucessivos golpes militares de direita, muitos dos quais encorajados pelos EUA, apagaram a democracia do continente inteiro. Essa operação foi o elemento mais complexo e sofisticado de um amplo fenômeno em que dezenas de milhares de pessoas em toda a América do Sul foram assassinadas ou desapareceram pelas mãos de governos militares nas décadas de 1970 e 1980.

A maioria das vítimas da Operação Condor desapareceu para sempre. Centenas foram eliminados secretamente – alguns deles lançados ao mar de aviões ou helicópteros depois de serem amarrados, acorrentados a blocos de concreto ou drogados para que mal conseguissem se mover. A mãe de Larrabeiti, Victoria, que foi vista pela última vez em um centro de tortura argentino em 1976, é uma dessas vítimas. Seu pai, Mario, que era um militante de esquerda, provavelmente morreu no tiroteio quando eles foram sequestrados pela polícia. Um número suficiente de vítimas, no entanto, sobreviveu para contar histórias que, quando comparadas com um volume crescente de documentos dessegredados, compõem uma história única e medonha.

Nas últimas duas décadas, a história de Larrabeiti foi contada e recontada em meia dúzia de cortes e tribunais de todo o mundo. Na ausência de um sistema de justiça criminal global totalmente formado, os perpetradores da Condor estão sendo levados ao tribunal por meio de um processo fragmentado. “O problema com as fronteiras é que é mais fácil cruzá-las para matar alguém do que para perseguir um crime”, disse Carlos Castresana, um promotor que perseguiu casos da Condor e os ditadores por trás deles na Espanha. Aqueles que buscam justiça tiveram que confiar em uma teia judicial de leis nacionais, tratados internacionais e decisões de tribunais de direitos humanos. Os indivíduos que eles perseguem são muitas vezes velhos decrépitos e impenitentes, mas uma rede tenaz de sobreviventes, advogados, investigadores e acadêmicos, um pouco como os caçadores de nazistas do pós-guerra, assumiu o desafio de garantir que esse terror de estado internacional não permaneça sem julgamento.

O processo é dolorosamente lento. A primeira grande investigação criminal com foco na Operação Condor – com vítimas e réus de sete países – começou em Roma há mais de 20 anos. Ainda não acabou. Em um dia sufocante de julho de 2019, um juiz do caso de Roma condenou à prisão perpétua um ex-presidente do Peru, um ministro das Relações Exteriores do Uruguai, um chefe da inteligência militar chilena e 21 outros por seu papel em uma campanha coordenada de extermínio e tortura. Os réus estão apelando, e o veredicto final deve ocorrer dentro de um ano.

Muito do que sabemos agora sobre a Operação Condor foi descoberto ou reunido em Roma, Buenos Aires e em dezenas de processos judiciais – grandes e pequenos – em outros países. Outras evidências vêm de documentos da inteligência dos EUA lidando com a Argentina, que deixaram de ser segredo por ordem de Barack Obama. Em 2019, os EUA concluíram a transferência de 47.000 páginas para a Argentina. Esses documentos mostram o quanto os governos dos Estados Unidos e da Europa sabiam sobre o que estava acontecendo na América do Sul, e o pouco que eles se importavam.

Aos sete anos, Anatole Larrabeiti descobriu sua verdadeira identidade, graças à obstinada avó paterna, Angélica, que rastreou os irmãos. Histórias apareceram na imprensa chilena quando eles desapareceram em 1976, embora as manchetes afirmassem que tinham sido abandonadas por “pais terroristas vermelhos” não identificados. Nos anos seguintes, a notícia do paradeiro de crianças desaparecidas se espalhou de uma organização humanitária para outra, antes de chegar ao grupo brasileiro de direitos humanos Clamor, que tinha ativistas em Valparaíso, a cidade no Chile onde Larrabeiti e sua irmã moravam. Após uma denúncia, os ativistas fotografaram secretamente as crianças a caminho da escola e enviaram as fotos para Angélica. Ela imediatamente reconheceu seus netos. “Minha irmã era uma réplica da minha mãe quando criança”, explicou Larrabeiti. “E eu tenho os lábios dela.”

Por acordo com seus avós biológicos, as crianças permaneceram com seus pais adotivos no Chile. Quando Victoria Eva completou nove anos, ela soube de sua verdadeira identidade e os filhos começaram a fazer visitas familiares ao Uruguai. “Eles eram bons pais”, disse Larrabeiti, sobre o casal que os adotou. “Eles mantiveram os laços com o Uruguai e tínhamos apoio psicológico, de que precisei quando me tornei um adolescente muito revoltado.”

Os crimes cometidos pelos regimes militares da América Latina durante a Guerra Fria continuam a assombrar o continente. Somente uma combinação perversa de poder e paranoia pode explicar por que esses regimes se concederam o direito não apenas de assassinar e torturar, mas também de roubar crianças como os Larrabeitis. Os homens que perpetraram tais crimes se viam como guerreiros em uma guerra messiânica e sem fronteiras contra a disseminação da revolução armada na América Latina.

Suas fantasias eram exageradas, mas não totalmente infundadas. Em 1965, o revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara deu um adeus emocionado a seu companheiro de armas Fidel Castro, deixando Cuba. Ele prometeu iniciar uma nova fase de atividade revolucionária, estendendo a guerra de guerrilha por toda a América Latina. Che foi morto enquanto cumpria sua missão na Bolívia em 1967, mas os EUA viam a revolução na América Latina, naquele momento, como uma ameaça existencial – lembrando como as armas nucleares russas haviam alcançado o solo cubano durante a crise dos mísseis de 1962. Em uma tentativa de fortalecer as forças anticomunistas, os EUA injetaram dinheiro e armas para as forças armadas em toda a região, aumentando enormemente o poder dos militares nesses estados e, eventualmente, como escreveu o jornalista americano John Dinges, terminando em um “ abraço íntimo com assassinos em massa que administravam campos de tortura, locais de desova de corpos e crematórios”. Nos anos 1970, quando os golpes militares de direita e o terrorismo de estado varreram o continente, uma tentativa de coordenar uma resposta armada foi feita por meio de uma rede flexível conhecida como Junta de Coordenação Revolucionária (JCR). Formada por grupos do Chile, Uruguai, Argentina e Bolívia em 1973. A JCR tinha planos grandiosos para perseguir o levante continental de Che, mas não tinha fundos, amigos e poder de fogo. Enquanto isso, os regimes militares da América do Sul começaram a colaborar mais estreitamente, inicialmente firmando acordos bilaterais que permitiam aos operativos realizarem seu trabalho em solo estrangeiro.

Aurora Meloni, uruguaia que foi para o exílio na Argentina com o marido, Daniel Banfi, e duas filhas, foi uma das primeiras a suspeitar que a violenta direita da América do Sul operava uma rede internacional de terror e extradição. Às 3h da manhã de 13 de setembro de 1974, Meloni e Banfi estavam em casa em um subúrbio de Buenos Aires quando cerca de meia dúzia de homens armados irromperam pela porta. Meloni, então com 23 anos, reconheceu imediatamente um deles como o notório inspetor da polícia uruguaia Hugo Campos Hermida. Ainda no Uruguai, Hermida certa vez interrogou Meloni e Banfi – então estudantes de literatura e história respectivamente – depois que eles participaram de uma manifestação em seu país em apoio à guerrilha Tupamaro, de esquerda, à qual Banfi pertencia. “Eu me lembrei de como ele [Hermida] tinha me batido”, disse Meloni. “Ele era muito agressivo.”

Meloni não conseguia entender por que Hermida estava trabalhando livremente em um país estrangeiro. Naquela época, a Argentina ainda era uma democracia, o estado de direito ainda vigorava. (O golpe militar veio depois, em março de 1976.) Policiais estrangeiros não tinham o direito de agir ali. Depois que seu apartamento foi saqueado em busca de pistas sobre o paradeiro de outros Tupamaros exilados, Hermida levou Banfi embora. Aurora presumiu que logo descobriria para qual delegacia ou prisão ele fora levado, mas houve silêncio.

Em setembro de 1974, este ainda era um evento incomum. “Nunca tínhamos ouvido falar de pessoas desaparecidas na Argentina antes. Eu tinha certeza de que o encontraria”, disse Meloni. Por fim, ela convocou uma coletiva de imprensa. Como alguém pode desaparecer assim? A resposta veio cinco semanas depois, quando três corpos com marcas de tortura foram descobertos pela polícia a 120 quilômetros de distância. Faróis de carros e um grupo de homens foram vistos em um local remoto à noite, e uma pilha de terra fresca foi deixada para trás. Daniel Banfi foi um dos três uruguaios assassinados encontrados na cova cavada às pressas.

No mês seguinte, Meloni deixou a Argentina e acabou se mudando para a Itália, onde, como seu pai era italiano, ela tinha dupla nacionalidade. Ela voltou ao Uruguai por três períodos nos 25 anos seguintes, em busca de justiça. Mas, assim como no Chile e na Argentina, o preço do fim da ditadura no Uruguai em 1985 foi uma anistia, que determinava que os funcionários do Estado não podiam ser acusados de crimes cometidos durante os 12 anos do regime. Parecia que nada poderia ser feito.

Somente no final do século é que as rachaduras no status quo legal começaram a aparecer. No final dos anos 90, um juiz espanhol chamado Baltasar Garzón começou a tentar aplicar uma lei anteriormente ignorada, que obrigava a Espanha a perseguir quaisquer supostos violadores dos direitos humanos em qualquer lugar do mundo, caso seus próprios países se recusassem a julgá-los. Garzón e um grupo de promotores progressistas abriram investigações por genocídio e terrorismo contra a ex-junta militar argentina e o regime de Pinochet, e “uma conspiração criminosa” entre eles.

Como o acusado não morava na Espanha, a busca de Garzón era vista como quixotesca. “As pessoas riam de nós”, disse-me recentemente em Madrid o procurador espanhol que instaurou estes casos, Carlos Castresana. Em 16 de outubro de 1998, no entanto, Pinochet foi preso pela polícia em uma clínica de Londres após uma pequena cirurgia de hérnia. Ele era um visitante frequente da cidade, tomando chá na Fortnum & Mason e dando uma passadinha para ver sua velha amiga e aliada Margaret Thatcher.

Em meio às manchetes e à enxurrada de documentos enviada a Londres nos dias seguintes, poucas pessoas notaram que o mandado inicial de prisão de Pinochet se baseava em um caso da Operação Condor. O mandado nomeava uma vítima chilena desaparecida na Argentina, Edgardo Enríquez, e afirmava que “há evidências de um plano coordenado, conhecido como Operação Condor, do qual participaram vários países”.

Pinochet foi detido por 17 meses enquanto os senhores da lei da Grã-Bretanha aprovaram, por duas vezes, sua extradição para a Espanha. O secretário do Interior do Partido Trabalhista, Jack Straw, impediu a extradição, enviando Pinochet para o Chile por motivos de saúde. Na volta, o ex-ditador zombou dessa justificativa, saltando da cadeira de rodas para acenar alegremente para seus apoiadores. No entanto, algo importante mudou, conforme promotores, juízes e ativistas perceberam que os ditadores da América do Sul e seus capangas não eram mais intocáveis.

Em 1999, inspirada por Garzón, Aurora Meloni abriu um caso de assassinato na Itália contra oficiais de segurança uruguaios que eram suspeitos de matar Banfi e outros. Famílias de outras vítimas da Condor com cidadania italiana se juntaram a Meloni, e o caso foi ampliado para cobrir crimes da operação em vários países. De sua casa em Milão, Meloni – agora com 69 anos – manteve o caso vivo desde então. “Demorou muito”, ela me disse. Após a sentença do ano passado em Roma, os demandantes ficaram maravilhados, mas Meloni ressalta que, até que saibamos o resultado dos recursos, a história não acabou.

Quando Daniel Banfi foi assassinado no final de 1974, a Condor ainda não existia formalmente. Sua morte pode ser vista como uma ação precursora, ou um ensaio. Hermida Campos era um de um punhado de oficiais de segurança uruguaios que estavam testando secretamente maneiras de caçar exilados com seus colegas argentinos.

Outro dos preparadores do programa de extradições com a Argentina, que mais tarde seria absorvido pela Condor, foi o tenente da marinha uruguaia Jorge Tróccoli. Agora com 73 anos de idade, grisalho e queixudo, Tróccoli foi o único réu presente no julgamento de Roma. Ele havia se mudado para a Itália e foi preso em Salerno, perto de Nápoles, em 2007. Nos anos 90, Tróccoli escreveu dois romances semiautobiográficos sobre como os militares do Uruguai haviam abraçado a tortura, o assassinato e a repressão. Em La Hora del Depredador (A Hora do Predador), um torturador que parece agir como procurador do autor (embora Tróccoli insista que isso é ficção) declara: “Quando isso acabar, teremos que fazer as pazes. E isso não acontecerá se usarmos métodos como este … Além do mais, você começará a se sentir mal com o passar dos anos.” Ainda assim, no tribunal, Tróccoli não mostrou remorso, alegando inocência. “Ele sentou-se ao meu lado um dia”, Meloni me disse. “Ele estava com raiva, não com vergonha.”

A maior parte do que sabemos sobre a Operação Condor só surgiu anos depois que ela acabou. Escritórios de coordenação formais existiam em vários países, e a rede gerava uma papelada considerável à medida que documentos e mensagens criptografados iam e vinham por uma rede de comunicações dedicada chamada Condortel. Mas na época as vítimas não entendiam a escala da conspiração internacional.

Por mais de uma década, o conhecimento público da Operação Condor foi amplamente limitado a uma nota obscura do FBI citada em um livro, publicado em 1980, por John Dinges e seu colega jornalista Saul Landau. Eles estavam investigando os assassinatos de um ex-embaixador chileno e seu assistente norte-americano, que foram mortos em Washington DC em 1976 pelos agentes de Pinochet. Em um telegrama enviado logo após os assassinatos, um oficial do FBI escreveu: “Operação Condor é o codinome para a coleta, troca e armazenamento de dados de inteligência relativos a esquerdistas, comunistas e marxistas que foi recentemente estabelecida entre os serviços cooperantes na América do Sul.” A nota seguia mencionando “uma fase mais secreta” da Condor, que “envolve a formação de equipes especiais dos países membros que devem viajar a qualquer parte do mundo para cumprir sanções, [incluindo] assassinatos”.

Além disso, relativamente pouco se sabia. Foi no Paraguai onde ocorreu o primeiro grande avanço. Em 1992, um jovem magistrado, José Agustín Fernández, recebeu uma denúncia sobre o paradeiro do arquivo da polícia secreta do ex-homem forte do país, general Alfredo Stroessner, que assumiu o poder em 1954 e permaneceu até 1989. De madrugada, três dias antes do Natal, Fernández fez uma visita surpresa a uma delegacia de polícia fora da capital, Assunção. Com uma caravana de câmeras de televisão como companhia, mas armado apenas com um mandado assinado de próprio punho, o magistrado obrigou a outrora intocável polícia do Paraguai a entregar os documentos. “Os jornalistas tiveram que nos emprestar um caminhão para levar tudo de volta ao tribunal”, Fernández me disse. “Talvez o mais chocante sejam as fotos. Eles incluíam pessoas que foram ‘desaparecidas’ pela Condor.”

A bagagem de Fernández ficou conhecida como Arquivo do Terror. Aqui, enterrada entre meio milhão de folhas de papel detalhando três décadas de repressão doméstica sob Stroessner, estava a história de como a Operação Condor foi criada, e por quem. Não era o que Fernández procurava originalmente e ele ficou chocado. “Tínhamos ouvido histórias sobre isso, mas aqui estava uma prova escrita”, ele me disse.

Os documentos estabelecem que a Condor foi formalmente criada em novembro de 1975, quando o chefe de espionagem de Pinochet, Manuel Contreras, convidou 50 oficiais de inteligência do Chile, Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil para a Academia de Guerra do Exército em La Alameda, avenida central de Santiago. Pinochet os recebeu pessoalmente. “A subversão desenvolveu uma estrutura de liderança que é intercontinental, continental, regional e sub-regional”, Contreras disse a eles, referindo-se à resistência organizada dos oponentes dos regimes militares do continente. Ele propôs uma rede sofisticada conectada por “telex, microfilme, computadores, criptografia” para rastrear e eliminar inimigos.

O clube, com os primeiros cinco países como membros, foi criado em 28 de novembro. O Brasil aderiu no ano seguinte, enquanto Peru e Equador aderiram em 1978. No seu auge, o Condor cobria 10% da massa de terra povoada do mundo e formou o que Francesca Lessa, da Universidade de Oxford, chama de “uma área sem fronteiras de terror e impunidade”.

Os documentos do Arquivo do Terror foram reveladores, mas eram registros burocráticos e secos. Atrás deles estava a realidade do sequestro, tortura, estupro e assassinato de pelo menos 763 pessoas, de acordo com um banco de dados que Lessa está construindo. No entanto, foi somente depois que o arquivo foi encontrado – e especialmente depois que a Condor foi nomeada no caso Pinochet de Garzón – que as histórias desconexas das vítimas começaram a se transformar em uma história maior.

Laura Elgueta mora em uma pequena casa em La Reina, um subúrbio tranquilo de Santiago onde florescem jacarandás roxos. Ela é uma das sobreviventes da Condor. Sua amiga Odette Magnet – cuja irmã de 27 anos, María Cecilia, desapareceu na Argentina em 1976 – mora a cinco minutos a pé. “Quando estava procurando um lugar para morar, queria morar perto dela”, Magnet explicou enquanto caminhávamos até a casa de Elgueta. Juntas, as duas mulheres há muito suportam o fardo de explicar a Condor aos chilenos em conferências de direitos humanos e na mídia.

Embora os agentes da Condor caçassem alvos em todos os estados membros, seu trabalho se concentrou na Argentina em particular, que era um refúgio para exilados que escapavam de ditaduras militares em todo o continente antes de cair também sob controle militar. Os esquadrões da Condor enviados do Uruguai e do Chile para a Argentina usaram uma série de prisões improvisadas e centros de tortura fornecidos por seus anfitriões. O primeiro foi a oficina mecânica abandonada, Automotores Orletti, onde Anatole Larrabeiti foi detido e sua mãe Victoria foi vista viva pela última vez. Larrabeiti ainda se lembra de ter visto um pote de metal brilhante na oficina, onde as alianças de casamento das vítimas eram guardadas.

Mais tarde, as vítimas do Condor foram levadas para o Club Atlético, codinome do porão de um depósito da polícia em Buenos Aires. Foi aqui que Laura Elgueta, de 18 anos, vendada, chegou em julho de 1977 com sua cunhada, Sonia, depois que chilenos e argentinos armados as sequestraram de sua casa nas proximidades. Na época, a família chilena de Elgueta – parte da qual agora está exilada na Argentina – ainda procurava por seu irmão ativista, Kiko, desaparecido em Buenos Aires em julho do ano anterior. “Sabíamos que ele tinha sido sequestrado, mas era só”, disse-me Elgueta.

No carro, começaram os abusos sexuais, físicos e verbais. Que continuaram no Club Atlético – onde as mulheres foram despidas, algemadas, encapuzadas e receberam seus números, K52 e K53. “Quem passasse te insultava, ou batia em você, ou te jogava no chão”, lembra Elgueta. Elas podiam ouvir outros prisioneiros andando acorrentados. Os torturadores chilenos não tentavam disfarçar sua nacionalidade, e o interrogatório de Elgueta e Sonia se concentrou apenas na comunidade exilada do Chile na Argentina. As mulheres eram levadas alternadamente para a sala de tortura. Seguiram-se espancamentos, mais abusos sexuais e choques elétricos. “Eles diziam: ‘Agora a festa pode realmente começar.’ Apesar de tudo o que sabemos e lemos, você não pode imaginar do que os seres humanos são capazes. Era uma casa de horrores”, disse-me Elgueta. “Quando minha cunhada saiu de uma sessão, eles tinham lhe dado choques elétricos tão fortes que ela ainda tremia.”

Após oito horas, Elgueta e a cunhada foram libertadas. Seus torturadores perceberam que as duas mulheres nada sabiam sobre os oponentes políticos ou armados de Pinochet. “Quando eu saí, aquele [torturador] que decidiu que eu era sua namorada estava lá gritando: ‘não a levem embora. Eu quero ficar com a minha garota!’” Elgueta ainda estava com os olhos vendados quando foi levada e jogada em uma esquina perto de sua casa.

Embora Elgueta e Magnet fizessem campanha para que a Operação Condor fosse investigada no Chile durante anos, eles dizem que a mídia e os políticos de lá só se interessaram depois que Pinochet foi preso em Londres. “Os países não queriam reconhecer que haviam permitido que unidades armadas de outros países operassem em seu território”, disse-me Elgueta. “A ignorância sobre a Condor aqui era incrível.”

A consciência da Condor agora está mais difundida e muitas mortes estão finalmente sendo investigadas pelos tribunais, mas isso não significa que todos os chilenos pensem que foi uma má ideia. Na verdade, assim como na Argentina, Uruguai e Brasil, uma pequena, mas significativa parte da sociedade chilena, defende a ditadura e seus executores.

Em uma tarde de março em Santiago, caminhei até La Alameda, a larga avenida principal, oficialmente chamada de Avenida Libertador Bernardo O’Higgins, onde batalhas diárias aconteciam entre manifestantes que jogavam pedras e policiais que atiravam gás lacrimogêneo. Protestos exigindo reformas no estado neoliberal e na constituição imposta por Pinochet ressoavam desde outubro de 2019, refletindo ampla raiva pelos mal-estares daquela época – incluindo alegações de abuso policial sob o governo conservador do presidente bilionário Sebastián Piñera – o quinto homem mais rico do país, cujo irmão serviu como ministro sob Pinochet. As supostas vítimas, muitas das quais eram manifestantes, falam de tortura, estupro, assassinatos e tentativas de homicídio. “Nunca pensamos que teríamos de voltar ao Chile nessas circunstâncias”, declarou José Miguel Vivanco, da Human Rights Watch, quando apresentou um relatório que contabilizou ferimentos em mais de 11.000 pessoas em protestos até novembro de 2019. “Achamos que isso era parte da história.”

Na avenida, uma lata de gás lacrimogêneo vazia entre pedras recém-arremessadas trazia, por coincidência, o nome de “Condor” – empresa que há muito abastece o exército e a polícia chilenos. Os manifestantes alegaram que os disparos estavam sendo feitos diretamente no rosto das pessoas, ajudando a contabilizar mais de 400 ferimentos nos olhos. Piñera a princípio condenou os manifestantes como “em guerra contra todos os bons chilenos”, mas desde então ordenou investigações e substituiu seu ministro do Interior, Andrés Chadwick (um ex-apoiador de Pinochet e primo de Piñera), que foi punido pelo parlamento com proibição de ocupar cargos públicos por cinco anos. Um referendo sobre a mudança constitucional, que foi adiado por causa da Covid-19, está agendado para 25 de outubro.

Nos arredores da cidade, Magnet me levou para Villa Grimaldi, um centro de detenção em um antigo complexo de restaurantes onde as vítimas às vezes ficavam trancadas por dias dentro de pequenas caixas de madeira. Hoje é um museu que reúne desenhos da médica inglesa Sheila Cassidy, que ali foi torturada depois de tratar um líder ferido da oposição armada a Pinochet. Mais tarde, Cassidy contou como mulheres presas receberam choques elétricos na vagina e foram estupradas, inclusive por cães. Em exposição na Villa Grimaldi está uma das vigas de concreto às quais as vítimas erram amarradas antes de serem levadas por helicópteros para serem jogadas no mar.

Magnet e eu procuramos o nome de sua irmã María Cecilia entre as 188 pequenas placas de cerâmica colocadas ao lado de roseiras para homenagear cada uma das vítimas femininas de Pinochet. A irmã de Magnet tinha sido uma parte ativa da oposição exilada. “Às vezes, gostaria que ela não tivesse sido tão corajosa e tivesse fugido da Argentina antes que isso acontecesse, como outros fizeram”, disse Magnet. Por fim, encontramos a placa de María Cecilia, ao lado de um arbusto de rosas amarelo-claras.

Embora muitos dos homens que executaram a Operação Condor fossem ex-alunos da Escola das Américas do exército dos EUA – um campo de treinamento no Panamá para militares de regimes aliados em todo o continente – esta não foi uma operação liderada pelos Estados Unidos. Revelações recentes, entretanto, mostram o quanto os serviços de inteligência ocidentais sabiam sobre a Condor.

Pouco antes de minha viagem ao Chile em março, surgiram notícias surpreendentes sobre uma empresa suíça que, durante décadas, forneceu máquinas de criptografia para militares, polícias e agências de espionagem em todo o mundo. A empresa, revelou o Washington Post, pertencia secretamente à CIA e ao serviço de inteligência BND da Alemanha Ocidental. Quaisquer mensagens enviadas por meio de suas máquinas de criptografia poderiam, sem o conhecimento dos usuários, ser lidas pelos Estados Unidos e pela Alemanha Ocidental. Entre os clientes da empresa estavam os regimes da Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai. Como disse o Washington Post, a CIA “estava, na verdade, fornecendo equipamento de comunicação enganoso para alguns dos regimes mais brutais da América do Sul e, como resultado, em [uma] posição única para saber a extensão de suas atrocidades”.

As novas informações sobre as máquinas criptográficas fraudadas seguem as revelações, de um documento dessegredado entregue à Argentina pelos EUA no ano passado, de que os serviços de inteligência da Alemanha Ocidental, britânicos e franceses chegaram a explorar a possibilidade de copiar pelo menos parte do método Condor na Europa. Uma mensagem da CIA fortemente editada, para obscurecer informações sensíveis, de setembro de 1977 tem como título: “Visita de representantes dos serviços de inteligência da Alemanha Ocidental, França e Inglaterra à Argentina para discutir métodos para o estabelecimento de uma organização antissubversiva semelhante à Condor”. A visita coincidiu com campanhas de terror na fronteira da grupo alemão Baader-Meinhof, das Brigadas Vermelhas da Itália e do Exército Republicano Irlandês. De acordo com o telegrama, os visitantes explicaram que “a ameaça terrorista / subversiva atingiu níveis tão perigosos na Europa que eles acreditavam que seria melhor agrupar seus recursos de inteligência em uma organização cooperativa como a Condor”.

Não há evidências de que esse plano tenha ido mais longe, mas sabemos que a essa altura os países vinculados à Operação Condor planejavam uma campanha de assassinatos em toda a Europa. O Chile já havia realizado de forma independente ataques na Europa, incluindo uma tentativa de assassinato em Roma, em outubro de 1975, contra o exilado político chileno Bernardo Leighton. Agora, as equipes da Condor deveriam matar pessoas de qualquer nacionalidade que vivessem na Europa que considerassem líderes terroristas – embora “os não terroristas também fossem supostamente candidatos”, revela um relatório da CIA de maio de 1977. O relatório afirma que “líderes da Anistia Internacional foram mencionados como alvos”.

Felizmente para aqueles na lista de alvos, o nacionalismo violento de generais em diferentes países da América Latina, que passaram grande parte de suas carreiras se preparando para lutar uns contra os outros – ao invés de “subversivos” em casa – chegou ao auge em 1978, quando o Chile e Argentina se desentenderam por suas fronteiras marítimas no Canal de Beagle. A briga impossibilitou a continuidade da cooperação militar entre eles e acabou provocando o colapso da rede mais ampla da Condor, pondo fim à campanha na Europa. Poucos anos depois, o Chile ajudaria secretamente a Grã-Bretanha na guerra das Malvinas, o que, por sua vez, levaria à queda da junta militar argentina em 1983.

As ditaduras caíram, uma a uma, durante os anos 80. Na esteira dessas convulsões, as tentativas de processar os violadores dos direitos humanos nos países da Condor eram inexistentes ou facilmente paralisadas, em meio ao temor generalizado de que os militares se rebelassem e impusessem novamente a ditadura. Os ex-líderes da junta militar argentina foram julgados e considerados culpados por abusos aos direitos humanos em 1985, mas logo foram perdoados – e foi introduzida uma lei de anistia. No Uruguai, uma anistia foi aprovada em 1986, horas antes de oficiais da Condor e outros serem julgados pela primeira vez. Parecia que alguns dos crimes mais hediondos do século 20 estavam destinados a ficar impunes.

Isso começou a mudar com a prisão de Pinochet em Londres. “Foi Garzón quem despertou o mundo para isso”, disse-me Laura Elgueta. Como destacou a prisão de Pinochet, as leis de anistia não forneciam proteção universal e a Condor era um ponto fraco. Em retrospecto, aqueles que esperavam impunidade para toda a vida por seu envolvimento na Condor cometeram três erros principais. Em primeiro lugar, eles roubaram crianças, um crime que nem mesmo as anistias cobriam. Em segundo lugar, eles presumiram erroneamente que as anistias cobririam crimes cometidos em solo estrangeiro. Finalmente, eles esconderam suas mortes fazendo as vítimas desaparecerem – assim transformando esses crimes em sequestros contínuos e não resolvidos, que, ao contrário de um assassinato em que um corpo é encontrado, não pode ser coberto por um estatuto de limitações ou anistia para eventos passados. Esses erros permitiram que um grupo ousado de promotores e juízes contornasse as leis de anistia em um punhado de casos cuidadosamente selecionados. Estes, por sua vez, revelaram verdades tão horríveis que alguns governos se sentiram envergonhados e acabaram por anular as leis de anistia.

Na Argentina, o julgamento de um dos sequestradores chilenos de Elgueta, por um assassinato separado em 1974, produziu uma decisão judicial de 2001 que determina que as prescrições não se aplicam a crimes contra a humanidade – que incluem tortura, assassinato e sequestro. Como se tratava de crimes cometidos rotineiramente por um regime militar que havia “desaparecido” mais de 20.000 de seus cidadãos durante a chamada guerra suja, essa decisão minou as leis de anistia argentinas, que foram anuladas em 2003. A lei de anistia do Uruguai, por sua vez, foi anulada em 2011 por ordem da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Costa Rica, após ter investigado o caso de um bebê sequestrado que estava detido com Anatole Larrabeiti e sua irmã na sede da inteligência militar em Montevidéu.

A lei de anistia do Chile ainda está em vigor, mas, em 2002, uma série de decisões judiciais a deixaram quase inofensiva, declarando que não poderia ser aplicada a operações no exterior, desaparecimentos forçados ou casos com crianças vítimas. Dos principais países da Condor, apenas o Brasil conserva intacta sua lei de anistia e continua sendo o país onde menos avanços foram feitos na perseguição dos crimes cometidos por sua ditadura militar.

Em 2011, com a maioria das anistias canceladas ou consideradas em grande parte inaplicáveis, os casos da Condor puderam finalmente ser investigados com mais liberdade – e as informações começaram a fluir entre os investigadores de vários países. Dois casos de longa data – o instigado por Aurora Meloni na Itália, junto com outro na Argentina – chegaram a julgamento nos últimos cinco anos. Em 2016, o julgamento na Argentina, que centrou-se em 109 vítimas da Condor de seis países, terminou com 15 sentenças de prisão – incluindo para o ex-presidente da junta militar Reynaldo Bignone, que tinha então 87 anos. Sete outros acusados morreram durante o julgamento de três anos. A sentença foi a primeira a reconhecer “uma conspiração transnacional e ilegal… dedicada a perseguir, sequestrar, repatriar à força, torturar e assassinar ativistas políticos”. A Argentina, acrescentou, tornou-se “um campo de caça”.

O caso de Roma estendeu a investigação a suspeitos do Peru, Bolívia e Chile. Como na Argentina, exigiu colaboração sem precedentes – embora lenta e às vezes com falhas – entre os países, mas a conclusão foi a mesma: a Condor era uma rede internacional ilegal de terrorismo de estado. Ambas as sentenças forneciam não apenas justiça, mas, em sua investigação detalhada e descrição do que havia acontecido, também contavam a história.

Graças também a dezenas de casos menores em oito países, muitas vítimas da Condor tiveram seu dia no tribunal. Francesca Lessa contou um total de 469 vítimas da Condor durante sua fase mais coordenada, entre 1976 e 1978, e mais 296 nos anos de operações mais bilaterais imediatamente anteriores e posteriores ao período principal da Operação Condor. Eles incluem 23 casos envolvendo crianças e pelo menos 370 assassinatos. Quase 60% desses casos foram a tribunal, ou estão em processo de fazê-lo – com 94 pessoas condenadas à prisão (embora muitas vezes os condenados sejam homens que não podem ser extraditados de seus países de origem para cumprir suas penas).

Pelos padrões das investigações de direitos humanos, onde o progresso costuma ser lento e hesitante, esse é um bom trabalho. No entanto, dada a enormidade dos crimes, é difícil sentir que a justiça foi realmente feita. Apenas algumas dezenas de pessoas – a maioria homens idosos que já estão na prisão – foram considerados culpados. Muitos outros, como Campos Hermida, morreram sem ter que justificar seus atos. Ninguém pediu perdão ou revelou onde os corpos estão enterrados. “Ninguém aqui confessou”, disse a promotora uruguaia Mirtha Guianze, cujo país tem o maior número de vítimas, mas apenas um punhado de condenações.

O medo da violência de extremistas de direita ainda persegue a América do Sul, especialmente entre os sobreviventes. A defesa da ditadura de seu país pelo presidente Jair Bolsonaro é especialmente preocupante. A ideia de que uma rede semelhante à Condor possa um dia reaparecer não é fantasiosa. O melhor escudo contra isso é garantir que os perpetradores do terrorismo de estado sejam presos, mesmo que isso leve décadas. “Seria presunção alegar que a tirania vai parar por causa disso”, disse-me Pablo Ouviña, o promotor que liderou o julgamento em Buenos Aires. “O que podemos mostrar, porém, é que, se novamente acontecer, provavelmente uma hora será julgado.” Esse é o presente que as vítimas da Operação Condor podem deixar para as gerações futuras.

Anatole Larrabeiti está chegando ao fim de sua maratona judicial pessoal. “Tem sido um contínuo durante quase toda a minha vida adulta”, disse ele. Ele e sua irmã levaram o caso pela primeira vez a um tribunal civil na Argentina em 1996, como forma de determinar a verdade sobre o que havia acontecido com eles e receber uma compensação. Após duas décadas de tentativas infrutíferas de encontrar reparação e constantes rejeições dos tribunais argentinos, em 2019 seu caso foi levado ao Tribunal Interamericano de Direitos Humanos – que pode exigir que os Estados paguem indenizações e alterem as leis. “Tenho certeza de que vamos vencer”, disse Larrabeiti. A decisão do tribunal pode obrigar a Argentina a mudar a forma como trata casos como este e abrir precedentes para outros países. Também pode significar que Larrabeiti e sua irmã finalmente receberão uma compensação. Mas isso não é o que mais importa para ele. “Até agora, a tarefa de encontrar evidências tem sido muitas vezes nossa. Queremos que isso mude”, disse ele.

Quando terminamos de conversar, Larrabeiti admitiu que sentiu sua voz falhando enquanto mergulhava em suas memórias, pensando em seus pais ou nas outras crianças roubadas. Prestou atenção? Estava na minha garganta”, disse ele. “Minha irmã era muito jovem e, ao contrário de mim, ela não tem lembranças concretas de nossos pais, mas isso não significa que não haja cicatrizes emocionais.” A justiça no tribunal é importante para evitar a repetição do passado, ele acredita, mas também o é a memória. “Podemos contribuir para isso”, disse ele.

O próprio Anatole optou por viver sem amargura, engolindo a raiva que um dia sentiu – mesmo em relação aos seus pais biológicos e aos perigos aos quais expuseram a família. “ Eu ficava furioso. Por que eles tiveram filhos? Então eu percebi – foi um ato de fé”, ele me disse. “Assim como é um ato de fé falar sobre isso agora, mesmo que as pessoas possam pensar que é impossível que algo assim pudesse ter acontecido.”

*Publicado originalmente em ‘The Guardian‘ | Tradução de César Locatelli para Carta Maior