“É muito lucrativo se preparar para o omnicídio”, disse Daniel Ellsberg, famoso delator e ativista antinuclear, em uma entrevista recente. “As companhias Northrop Grumman, Boeing, Lochkeed e General Dynamics ganham muito dinheiro preparando-se para uma guerra assim. Os parlamentares recebem contribuições de campanha e obtêm votos em seus distritos e em praticamente todos os estados por se prepararem para isso”.

Mas não fique apenas na palavra de Ellsberg. Em uma conferência de investidores em 2019, um diretor do banco de investimento Cowen Inc. questionou o CEO da Raytheon sobre este assunto. “Estamos prestes a sair do INF [Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário] com a Rússia”, disse o executivo de Cowen. Ele perguntou, então, se isso significava “que vamos de fato ter um orçamento de defesa que realmente beneficiará a Raytheon?” O CEO da Raytheon respondeu com alegria que ele estava “muito otimista” com o rumo que as coisas estavam tomando.

Um novo relatório da Campanha Internacional para Abolir as Armas Nucleares, a ICAN na sigla em inglês, foi divulgado na primeira semana de junho, e examina em detalhes quem está recebendo todo o dinheiro do setor radioativo e por quê. A ICAN recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2017, em reconhecimento por seu trabalho “para chamar a atenção para as consequências humanitárias catastróficas de qualquer uso de armas nucleares e por seus esforços inovadores para alcançar uma proibição baseada em tratados sobre tais armas”.

Atualmente, nove países possuem armas nucleares: Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido, França, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte. A ICAN calcula que eles gastaram, juntos, 72,6 bilhões de dólares de dólares em armas nucleares em 2020.

Os EUA foram responsáveis por pouco mais da metade deste pagamento pelo dia do juízo final, com 37,4 bilhões de dólares de dólares. Segundo o Escritório de Orçamento do Congresso, a previsão é que o gasto nuclear dos EUA aumente de forma acentuada em breve, devido aos planos de atualizações tecnológicas, aumentando para 41,2 bilhões de dólares no ano que vem e totalizando 634 bilhões de dólares ao longo dos 10 anos entre 2021 e 2030.

 

“Sempre há mais [gasto nuclear] por aí … e ainda mais à espreita nas sombras.”

 

A China ficou em segundo lugar em 2020 com gastos estimados em 10,1 bilhões de dólares. A Rússia veio em terceiro, com 8 bilhões de dólares. Notavelmente, em um ano em que a economia mundial foi assolada pela pandemia de coronavírus, os gastos nucleares continuaram em uma trajetória ascendente sem qualquer obstáculo.

Apesar desses números elevados, é provável que eles estejam subestimados. “Sempre há mais [gasto nuclear] por aí … e ainda mais à espreita nas sombras”, disse Susi Snyder, coautora do relatório e diretora do projeto Don’t Bank on the Bomb [“Não aposte na bomba”, em tradução livre]. Snyder aponta que os “governos, especialmente dos EUA, Reino Unido [e] França, estão sempre exigindo ‘transparência’… mas não seguem os padrões que exigem dos outros”.

Grande parte dos gastos nucleares dos EUA consistem em contratos lucrativos com empresas privadas. As quatro empresas que Ellsberg disse estarem ganhando dinheiro “se preparando para a guerra” de fato receberam a maior parte do dinheiro em 2020:

  • Northrop Grumman — 13,7 bilhões de dólares
  • General Dynamics — 10,8 bilhões de dólares
  • Lockheed Martin — 2,1 bilhões de dólares
  • Boeing — 105 milhões de dólares

Esses enormes contratos criam incentivos óbvios para que essas empresas façam lobby por mais gastos do governo rumo ao Armagedom, e elas fazem isso assiduamente. De fato, o lobby é, sem dúvida, o investimento mais lucrativo que essas empresas fazem. De acordo com o relatório da ICAN, para cada dólar gasto em lobby, essas empresas receberam 239 dólares em contratos de armas nucleares.

Os detalhes são dignos de nota. A Northrop relatou 13,3 milhões de dólares em despesas de lobby em 2020. No ano passado, foi formalmente concedido um contrato inicial enorme para desenvolver um novo sistema de mísseis balísticos intercontinentais chamado “Dissuasor Estratégico em Terra”, GBSD na sigla em inglês. Ele inevitavelmente receberá o contrato para todo o programa, estimado em um total de 85 bilhões de dólares. Em discussão sobre o GBSD, o secretário assistente da Força Aérea para a aquisição afirmou que não viu a pandemia afetando os gastos nucleares.

O lobby também envolve muito mais do que aquilo que o nome diz. No documentário “Why We Fight” [Por que lutamos], de 2006, o jornalista Gynne Dyer explicou que o presidente Dwight Eisenhower considerava que o complexo militar-industrial na verdade tinha três componentes: os militares, as corporações de defesa e o Congresso. Mas agora, dizia Dyer, havia um quarto elemento: os think tanks, que geralmente promovem as políticas de seus financiadores sob um fino verniz de estudo acadêmico.

De acordo com o relatório, as empresas que lucram com armas nucleares contribuíram com 5 a 10 milhões de dólares para think tanks em 2020. Só a Northrop gastou pelo menos 2 milhões de dólares financiando nove deles, incluindo o Atlantic Council, a Brookings Institutions, o Center for a New American Security e o Center for Strategic and International Studies.

No entanto, a ICAN não produziu o relatório para consumo passivo ou como um incentivo ao desespero. Em vez disso, é parte de uma estratégia sofisticada para eventualmente tornar as armas nucleares um tabu tão grande em todo o mundo quanto as armas químicas e biológicas são agora.

A ICAN foi uma força fundamental por trás do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, adotado em 2017 nas Nações Unidas. Ele torna ilegais quaisquer atividades relacionadas a armas nucleares e foi assinado por 86 países, e ratificado por 54. o tratado entrou em vigor em janeiro deste ano.

Nenhuma das potências nucleares é signatária. No entanto, elas não precisam ser para o tratado criar um laço em torno desses países e suas empresas, que deve apertar com o tempo. Por exemplo, a Airbus produz mísseis para o arsenal de armas nucleares da França. Mas, como está sediada na Holanda, se aquele país ratificou o tratado, a empresa não poderia mais fazer isso.

Essa ameaça financeira agora atrai a atenção dos acionistas dessas empresas nucleares. Snyder observa que uma resolução de acionistas da Northrop, em 2020, declarou que a empresa “tem pelo menos 68,3 bilhões de dólares em contratos de armas nucleares, que agora são ilegais segundo a lei internacional”, e recebeu 22% de apoio. Uma resolução semelhante da Lockheed obteve mais de 30% de apoio. O KBC Group, o 15º maior banco da Europa, anunciou que não vai financiar nenhuma atividade relacionada a armas nucleares por causa do tratado.

O sucesso nesse assunto obviamente exigirá uma campanha de longo prazo e aumento do ativismo ao redor do mundo. Mas a trajetória está indo na direção certa. “Os dias de gastar impunemente com armas de destruição em massa”, acredita Snyder, “estão contados”.

Tradução: Maíra Santos para The Intercept Brasil